O Estado de S. Paulo
Brasil não quer fuzil, quer arroz, feijão,
absorvente, vacina, ciência e... justiça
A boa notícia é que o porcentual de
brasileiros vacinados com as duas doses aproxima-se de 50% e a pandemia está
arrefecendo. A má notícia é que o Brasil atingiu 600 mil mortos, com média
móvel ainda em torno de 450 a cada 24 horas (queda de dois Boeings por dia) e
sequelas incômodas, zunindo nos nossos corações e mentes, em busca de respostas
e responsabilização.
O pior, aparentemente, passou, mas centenas
de famílias ainda perdem seus entes queridos todos os dias, há dúvidas quanto
ao futuro e um rastro de dor: pelos mortos, os efeitos em muitos sobreviventes
e a sensação desesperadora de que não precisava ter sido assim. Com o aperto no
coração de quem chora a morte dos seus: e se?
E se o presidente da República fosse razoável, sensato, responsável, reverente à ciência? Se tivesse mantido médicos com autonomia e caráter no Ministério da Saúde? Se, em vez de dar ouvidos a filhos, terraplanistas e gabinetes paralelos, se guiasse pela OMS e as agências de saúde do mundo civilizado?
E se o presidente não fosse negacionista,
desumano, indiferente à dor e ao pânico dos cidadãos? Se, em vez de comemorar
os primeiros dez mil mortos num jet ski e dizer que “não é coveiro”, cumprisse
seu dever e fosse solidário com a Nação? E se não desprezasse a vacina da
Pfizer, não atacasse a Coronavac, não fizesse propaganda contra as máscaras e a
favor da cloroquina?
Tantos “e se?” não deixam margem para
dúvidas e complacência no relatório final da CPI da Covid, a ser apresentado no
dia 19. A tropa bolsonarista vai atacar o relator Renan Calheiros, mas, sem
entrar no mérito, todo o País e as famílias e amores dos mortos estarão atentos
ao que realmente interessa: sua excelência, os fatos.
Os fatos são acachapantes, com início, meio
e fim – um fim cruel. Começam com o negacionismo e o “gripezinha” do líder
máximo da Nação, ganham corpo com a estratégia definida no gabinete paralelo do
Planalto, blindam-se com aliados no Conselho Federal
de Medicina e na ANS, a agência reguladora
dos planos de saúde, e são massificados pelos robôs e fake news da internet.
Foi assim a construção do caos, num
contexto de desconstrução da imagem do Brasil, da economia, da Amazônia, da
cultura, da educação, do humanismo, da generosidade, dos esforços pela
igualdade. Não se ouve uma única palavra para famílias esmolando ossos para a
“sopa” das crianças. O presidente dá de ombros: “Nada está tão ruim que não
possa piorar”.
Ele propõe que todos tenham fuzis e chamou
de “idiotas” quem prefere feijão. A ministra Damares Alves vai na mesma linha:
“Tem de definir a prioridade, vacina ou absorvente, tirar o arroz da cesta
básica para por absorvente?” O presidente e a ministra – vejam bem, da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos – acham um absurdo o povo querer arroz,
feijão, vacina e absorvente. As prioridades são fuzis, tratoraço e cloroquina.
Como um manda e todos obedecem, o ministro
da Saúde, Marcelo
Queiroga, vai na contramão da Fiocruz e se
diz “absolutamente contra” a obrigatoriedade de máscaras e o “passaporte de
vacinação”. E que tal o corte de 92% na Ciência? E o secretário da Cultura,
Mário Frias, posando com fuzis? Com a economia nos trinques, essas coisas
poderiam passar por bizarrices, não com falta de emprego, queda de renda e a
maior inflação para setembro desde 1994.
Quanto mais a pandemia recua e a inflação
avança, mais as conversas migram da Covid para arroz, feijão carne, luz, gás,
gasolina... Mas uma coisa não anula a outra, elas se somam. Até a eleição, a
tropa bolsonarista da internet e das fake news conseguirá culpar o Supremo pela
pandemia e os governadores e prefeitos pela economia? Tudo é possível, mas está
se tornando improvável.
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