O Globo / Folha de S. Paulo
Morrem 600 mil pessoas numa epidemia que o
monarca republicano chamou de “gripezinha“, e a Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias ainda não se deu conta de que cloroquina é um
medicamento ineficaz para a Covid
Na sexta-feira completam-se 140 anos do dia
em que Machado de Assis começou a publicar a história do médico Simão
Bacamarte, “O alienista”. Ele era “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e
das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua”. Essa obra-prima está na rede. Lendo-a,
recua-se no tempo e descobre-se que o doutor Bacamarte tinha suas razões. Bem
que D. Pedro II avisaria, oito anos depois, na noite em que o embarcaram para o
desterro: “Os senhores são uns doidos”.
Morrem 600 mil pessoas numa epidemia que o
monarca republicano chamou de “gripezinha“, e a Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias ainda não se deu conta de que cloroquina é um
medicamento ineficaz para a Covid. Em dois anos, dois ministros da Saúde foram
embora porque não queriam receitar a poção. Já o ministro da Tecnologia, um
astronauta e coronel da reserva, garantiu, em abril de 2020, que pesquisadores
do governo haviam descoberto um remédio contra o vírus. Não disse o nome, mas
garantiu que ele estaria disponível em poucas semanas.
Os doidos estavam chegando, mas não se pode dizer que avançavam apenas sobre a saúde pública. Na semana passada, a Petrobras leiloou 92 blocos oceânicos e 87 encalharam por falta de interessados. Ninguém quis se meter com a exploração em áreas de proteção ambiental próximas à ilha de Fernando de Noronha e ao Atol das Rocas. O diretor da Agência Nacional de Petróleo veio à vitrine e anunciou: “O leilão foi um sucesso”. (No dia 1º de novembro começa em Glasgow, na Escócia, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas.)
Machado de Assis conhecia os doidos de seu
tempo. Nos Estados Unidos um grande empresário subornava servidores para
sustentar que a condução da eletricidade por fios incendiaria cidades inteiras.
No Brasil, os três homens mais ricos da terra, com três mil escravos, tinham um
patrimônio equivalente a 10% do valor de todo o capital investido em ações e
empresas. No Senado, um magano dizia que a escravidão era uma prova de caridade
cristã, pois os senhores prestavam um grande serviço aos escravos.
Machado criou seu Simão Bacamarte, D. Pedro
foi-se embora reclamando dos doidos. Ambos sabiam que, de tempos em tempos, os
malucos dão as cartas.
A BBC via a ditadura pelo andar de baixo
Começa a chegar às livrarias a partir desta
semana “Nossa correspondente informa — Notícias da ditadura brasileira na BBC
de Londres: 1973-1985”, da jornalista Jan Rocha. É uma coleção de centenas de
textos curtos que a repórter mandou para a emissora inglesa. O primeiro trata
do lançamento da anticandidatura de Ulysses Guimarães à presidência da
República. Era uma anticandidatura porque não tinha chance de vitória. A
eleição seria indireta, e o presidente seria o general Ernesto Geisel. Um dos
últimos textos, de 1985, conta o enterro de Tancredo Neves, eleito
indiretamente numa ditadura que agonizava.
Em geral, os correspondentes estrangeiros
olham muito para o andar de cima. Jan Rocha olhava quase sempre para o andar de
baixo. Índios, fome, meio ambiente e, sobretudo, a repressão política. Tratava
de assuntos que a censura proibia e da própria censura. Enquanto o “milagre
brasileiro” encantava muita gente, a correspondente da BBC ouvia as queixas da
Igreja Católica que, liderada pelo cardeal Arns, de São Paulo, opunha-se aos
governos.
Os textos de Jan Rocha atravessam as
dificuldades da política de abertura do governo Geisel. Em 1974, ela contou as
prisões de professores paulistas, entre os quais esteve o sociólogo Fernando
Henrique Cardoso, chamado para um interrogatório. Anos depois, escreveu sobre a
primeira greve de um movimento sindical supostamente domesticado. Lá estava a
figura de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 1985, Rocha registrou a saída de João
Batista Figueiredo, o último general do ciclo.
Ele deixou o Palácio do Planalto por uma
porta lateral.
É boa leitura para quem quer saber da época
e volume valioso para pesquisadores que queiram ver além da névoa da censura.
Tunga de livreiros voltou ao ar
Renasceu das cinzas uma ideia que pareceu
enterrada durante o governo Temer. É o tabelamento dos livros à francesa. Se
vingar, nenhuma livraria, física ou eletrônica, poderá dar descontos superiores
a 10% do preço de capa durante o primeiro ano de circulação de um livro. Lei
parecida existe na França há 40 anos.
Quando essa girafa surgiu, Jeff Bezos era
um garoto a caminho da universidade de Princeton. De lá para cá, do nada, ele
criou a Amazon e se tornou um dos homens mais ricos do mundo. Começou vendendo
livros a US 9,99 (hoje custam cerca de US$ 15). Seu negócio é dar desconto, em
tudo. Não há no mundo quem tenha reclamado por ter comprado uma coisa barata na
Amazon ou em qualquer outro lugar. Desde que surgiu o Estado, apareceram
tabelamentos para impedir que se cobre a mais. Nesse caso, querem tabelar para
impedir que se cobre a menos.
O mercado editorial brasileiro melhorou
durante a pandemia. Quando ele esteve no apogeu, algumas editoras brasileiras
imprimiam seu livro na China, onde a mão de obra era barata. Desde então,
grandes redes de livrarias quebraram porque se meteram numa ciranda de vendas
consignadas. Problema de quem micou, dando-lhes crédito.
O projeto da tunga no preço do livro dorme
no Senado. O tabelamento de um produto para impedir que os consumidores paguem
menos é a joia que falta ao mandarinato liberal de Paulo Guedes.
Recordar é viver
Hostilidade da infantaria petista não
começou com a vaia a Ciro Gomes na Avenida Paulista.
Em 1984, o PT queria iniciar sozinho sua
campanha pelas eleições diretas, mas o comício que organizou ficou fraco. Pouco
depois, o governador paulista Franco Montoro começou a montar o comício na
Praça da Sé.
Todo mundo sabia que seria um sucesso, mas,
para não ser vaiado pela infantaria petista, Montoro chegou ao palanque com
Lula. Quem costurou a cena foi o advogado Márcio Thomaz Bastos.
Classificado
O feirão de imóveis da Viúva no Rio incluiu
a casa que pertenceu ao general Osório, o grande comandante da cavalaria
durante a Guerra do Paraguai. É uma construção térrea, com 13 janelões e
bonitos azulejos. Fica na Rua Riachuelo, perto da Lapa, e é um bonito exemplar
da arquitetura da época em que ela se chamava Matacavalos.
Quem comprar o casarão ficará com um pedaço
da história do Brasil no seu patrimônio.
Tem gato na tuba
A ruína da marca da Prevent Senior provocou
um estranho movimento no mercado de operadoras de planos de saúde.
Começou uma satanização das empresas
verticalizadas, que operam com plantéis médicos, hospitais e laboratórios
próprios, controlam seus custos e cobram menos.
Tem gato nessa tuba, pois as malfeitorias cometidas pelo Executivo, pelas agências reguladoras e pelas operadoras verticalizadas ou não, foram coisa de malfeitores, nada a ver com os seus modelos.
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