EDITORIAIS
Cassandra de ocasião
O Estado de S. Paulo
Os brasileiros que se virem para lidar com a carestia e o desemprego, porque do presidente só é possível esperar desculpas esfarrapadas e alarmismo oportunista
A inflação – que em setembro foi a maior
(1,16%) para o mês desde 1994 – corrói mais a renda dos que menos podem,
restringe o consumo, reduz os estímulos à produção e já assombra o governo
incapaz de agir com eficiência e credibilidade diante das dificuldades que se
acumulam. A seu estilo pernicioso de governar, marcado pela incapacidade de
assumir responsabilidades que o cargo lhe impõe, o presidente Jair Bolsonaro
adicionou outra característica nociva: uma espécie de alarmismo preventivo.
Trata-se de anunciar que, segundo suas próprias palavras, “nada está tão ruim
que não possa piorar”. Mas, se isso ocorrer, não será por falta de aviso. Será,
como sempre ele diz, por culpa dos outros.
Bolsonaro tenta se justificar alegando que a alta dos preços não é um problema só do Brasil, é mundial. “Está reclamando que está alto aqui? Lá (nos Estados Unidos e em outros países) também está. Essa crise é no mundo todo. Não é só no Brasil”, disse, na sua live das quintas-feiras.
Cobrando dos que o criticam as soluções que
competem sobretudo ao governo, aproveitou para espalhar alarmismo ao prever
que, por causa da eventual escassez de fertilizantes, a produção agrícola
brasileira poderá ser afetada, o que fará subir ainda mais a inflação. E tudo
será por culpa da China, que reduziu a produção de fertilizantes. Apresenta,
assim, argumentos prévios para se defender de problemas com que, já sabe,
continuará a se defrontar no futuro próximo e que ele não tem a menor ideia de
como resolver.
A última vez que a inflação do mês de
setembro foi mais alta do que a deste ano ocorreu em 1994, apenas dois meses
depois da entrada em vigor do Plano Real. Era o momento em que os brasileiros
ainda se acostumavam a uma vida econômica completamente diferente da que haviam
enfrentado, até com hiperinflação.
Nos
12 meses até setembro deste ano, a inflação alcançou 10,25%, a mais alta
desde fevereiro de 2016, quando o País enfrentava a crise política que
culminaria, dali a seis meses, no impeachment da presidente Dilma Rousseff.
A alta do Índice Nacional de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo IBGE, tem sido impulsionada por
combustíveis, gás de cozinha e alimentos. É um problema mundial. Cotações de
commodities energéticas e agropecuárias batem recordes.
O governo Bolsonaro vem dando, a seu modo
equivocado, atenção ao preço da gasolina e do diesel, por causa do interesse
particular do presidente com a situação dos caminhoneiros. Para fugir de suas
responsabilidades, Bolsonaro e seus seguidores, inclusive o presidente da
Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), atribuem a culpa aos governos estaduais.
Os combustíveis estão caros, dizem, por causa do ICMS, tributo de natureza
tipicamente estadual na atual estrutura tributária nacional.
É falso. Os combustíveis estão caros, na
verdade, porque a cotação do petróleo em dólar está nos seus níveis mais altos
dos últimos anos. E a cotação do dólar em reais está igualmente em seu nível
mais alto em muitos anos por causa da instabilidade política, das incertezas
sobre o equilíbrio das finanças públicas e da falta de credibilidade das ações
do governo na área econômica.
Assim, se sobe em outros países, a gasolina
sobe mais no Brasil porque as oscilações frequentes no mercado mundial são
multiplicadas por uma taxa de câmbio que reflete o clima gerado por um governo
incompetente e criador de tensões e conflitos.
Da mesma forma, por isso, o preço da
alimentação no prato do brasileiro sobe mais do que as cotações internacionais
dos principais produtos de exportação do agronegócio nacional. Só em setembro o
frango inteiro ficou 4,50% mais caro, e o frango em pedaços, 4,42%.
O custo da habitação também subiu muito
(2,56% no mês) por causa principalmente da alta da energia elétrica, de 6,47%
no mês. Também neste caso o papel do governo Bolsonaro é nítido: nada foi feito
tempestivamente para enfrentar a prevista crise hídrica, e agora o País vive
sob o risco de desabastecimento.
Os brasileiros que se virem para lidar com
a carestia, a escassez e o desemprego, porque do presidente da República só é
possível esperar desculpas esfarrapadas e alarmismo oportunista. Como disse
Ulysses Guimarães, “estadista é o arquiteto da esperança, não é coruja que pia
mau agouro nem Cassandra de catástrofes”.
A fusão do DEM com o PSL
O Estado de S. Paulo
União Brasil deve estar à altura da responsabilidade de um grande partido político
A fusão do DEM e do PSL, recém-aprovada
pelos diretórios nacionais de ambas as legendas, dará origem ao maior partido
político do Brasil, o União Brasil. O novo partido, que ainda tem de ser
homologado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nascerá com uma bancada de
82 deputados (a maior da Câmara, superando o PT, que tem 53 parlamentares), 8
senadores e 4 governadores, além de centenas de prefeitos País afora. O União
Brasil contará ainda com as maiores parcelas do Fundo Partidário e do Fundo
Especial de Financiamento de Campanha, o chamado fundo eleitoral. Será,
portanto, um partido muito rico, representativo e de influência capital na
definição dos rumos do País.
O movimento de aproximação entre as duas
legendas é um passo em direção à melhoria do quadro de representação partidária
no Congresso, hoje muito fragmentado. O advento do União Brasil, aliado a
medidas saneadoras já adotadas pelo Poder Legislativo, como a proibição das
coligações partidárias em eleições proporcionais e a instituição da cláusula de
desempenho, poderá estimular outras legendas a seguirem o mesmo caminho
trilhado pelo DEM e pelo PSL. Que assim seja. Não há qualquer justificativa
republicana para que, em um futuro próximo, haja mais do que oito ou nove
partidos com assento no Congresso. São sobejamente conhecidos os males causados
pela chamada crise de representatividade.
O União Brasil representará o predomínio de
um partido de direita no Poder Legislativo pela primeira vez em duas décadas. A
última vez que isso aconteceu foi há 20 anos, durante o segundo mandato do
presidente Fernando Henrique Cardoso. Àquela época, o PFL elegeu mais de uma
centena de parlamentares, em boa medida em decorrência do reconhecimento dos
eleitores aos importantes serviços prestados pelo partido ao País na transição
democrática e na garantia da estabilidade do governo FHC. Com uma grande
bancada e, sobretudo, densidade programática, o PFL foi determinante para o
País domar a inflação e recuperar o valor da moeda, entre outras conquistas.
O legado do PFL, partido que deu origem ao
DEM, é um ativo que pode ajudar o União Brasil a vencer o seu primeiro, e
talvez mais importante, desafio: como a nova legenda quer ser vista pela
sociedade? O União Brasil, em pouco tempo, terá de mostrar se deve ser recebido
como um partido político de fato, ou seja, com uma clara carta de propósitos
para o País, ou como mais uma amorfa legenda do Centrão, embora a maior e mais
poderosa do bloco. O União Brasil deseja ser um indutor de políticas públicas
que desenvolvam o País ou quer apenas ter mais cacife para barganhar cargos e
controlar o Orçamento? A resposta a essas perguntas determinará o futuro do
partido nascente.
Do ponto de vista estritamente pragmático,
a fusão aplaca o instinto de sobrevivência tanto do DEM como do PSL. Em que
pese ter conquistado prefeituras importantes na eleição de 2020, o DEM é um
partido que nem de longe tem o poder e os recursos financeiros que já teve. Por
sua vez, o PSL saltou de um partido nanico para se tornar uma das maiores e
mais ricas legendas do País em decorrência da onda bolsonarista de 2018. É
muito clara para a direção do PSL a natureza acidental daquele sucesso
estrondoso.
Nada há de ilegítimo, diga-se, nessa busca
por sobrevivência e mais espaço político que parece ser a razão de fundo para a
criação do União Brasil. Os dois partidos que lhe dão vida são legítimas forças
de representação da sociedade. Espera-se, entretanto, que o União Brasil se
mostre à altura da responsabilidade que passará a ter como força política após
sua homologação pelo TSE.
Dos partidos nanicos, como a designação
sugere, é esperada a politicagem miúda. Estes desaparecerão, e se espera que
seja logo. Já dos grandes, como é o caso do União Brasil, espera-se uma atuação
com maturidade e espírito público. Isso significa que seus filiados devem ter
consciência da importância dos partidos não só para o constante aprimoramento
da democracia representativa, mas também – e principalmente – para defender as
reformas de que o País precisa para construir um futuro mais próspero e menos
desigual.
Mais um recuo da indústria
O Estado de S. Paulo
Iniciada há anos, a crise da indústria se agravou no mandato de Jair Bolsonaro
Não adianta culpar o vírus pela crise da
indústria brasileira. Efeitos da pandemia, como a escassez de insumos, o
desarranjo das cadeias produtivas e os custos em alta explicam só em parte a
retração industrial no Brasil. Com exceção de alguns segmentos e de algumas
empresas, o setor vai mal há muitos anos e seu desempenho piorou, claramente,
antes de aparecer no País a covid-19. Com o recuo de 0,7% em agosto, a
indústria completou três meses seguidos de desempenho negativo, com perda
acumulada de 2,3%. Com mais essa queda, o total produzido ficou 2,3% abaixo do
patamar pré-pandemia, de fevereiro de 2020.
O mau desempenho, generalizado, ocorreu em
15 dos 26 segmentos cobertos pela pesquisa mensal do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e em três das quatro grandes categorias. Houve
redução de 0,8% na produção de bens de capital, de 0,6% na de bens
intermediários e de 3,4% na de bens de consumo duráveis. Só a fabricação de
bens de consumo semiduráveis e não duráveis cresceu, com variação de 0,7%. No
período de janeiro a agosto a produção foi 9,2% maior que a de um ano antes,
mas a comparação, nesse caso, é com uma base muito deprimida pelo impacto
inicial da covid-19.
Não há como atribuir essa queda
generalizada apenas à escassez de insumos e à elevação custos, embora esses
problemas tenham afetado seriamente algumas indústrias, como a automotiva.
Também é preciso levar em conta as condições da demanda no mercado interno. O
gerente da pesquisa, André Macedo, aponta fatores como o desemprego, a redução
dos salários, a diminuição da massa de rendimentos e a corrosão da renda
familiar pela inflação acelerada. A inflação anual, poderia ter acrescentado o
técnico, já bate em 10% ao ano e é mais que o dobro da média dos países da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essa média
chegou a 4,3% nos 12 meses até agosto, com os preços puxados principalmente
pelos custos da alimentação e da energia.
No caso do Brasil, é preciso levar em conta
alguns detalhes especiais para bem avaliar o desempenho da indústria. Os
problemas do setor vêm se acumulando há anos, especialmente a partir do governo
da presidente Dilma Rousseff. Agravaram-se, no entanto, desde o início do
mandato do presidente Jair Bolsonaro. Nos quatro meses entre novembro de 2019 e
fevereiro de 2020, a produção industrial foi sempre menor que a do mês
correspondente do ano anterior. A piora das condições da indústria já era
visível, portanto, no último quadrimestre antes da pandemia se manifestar no
País.
A recuperação iniciada em maio do ano
passado bastou apenas para repor, em parte, as perdas do primeiro momento da
nova crise. O desempenho voltou a piorar em 2021 e os últimos dados apontam uma
produção 19,1% inferior à de maio de 2011, pico da série histórica do IBGE. Em
julho, a diferença para menos era de 18,5%. No caso da indústria de bens de
capital, como máquinas e equipamentos, o resultado de agosto ficou 25,9% abaixo
do pico registrado em setembro de 2013. O maior tombo, nesse período, foi o dos
fabricantes de bens de consumo duráveis, como automóveis, móveis e
eletrodomésticos. Os números de agosto mostram uma produção 43,8% menor que a
do ponto máximo, em junho de 2013.
Esse longo desastre é explicável por muitos
fatores, como o protecionismo, o pouco estímulo à inovação e à busca de
competitividade, o escasso e caro financiamento privado, os impostos sobre a
produção, o sistema tributário complicado, a burocracia e os custos associados
ao transporte deficiente, para citar alguns dos mais óbvios.
Mas o quadro piorou a partir de 2019. Já no primeiro ano do novo presidente, perdeu impulso a recuperação iniciada em 2017, depois do desastre final da fase petista. O desemprego continuou elevado, os negócios enfraqueceram e, depois das medidas emergenciais de 2020, a economia ficou sem projeto e sem rumo. Assim continua, e a crise da indústria é agora alimentada por mais um fator, o desgoverno liderado pelo presidente Bolsonaro.
Reformar o social
Folha de S. Paulo
Combate à pobreza exige crescimento,
equilíbrio orçamentário e revisão de ações
A desorganização provocada pela pandemia no
mercado de trabalho, mais a inépcia do governo Jair Bolsonaro em comunicar
claramente o que deseja para a área social no resto de seu mandato, vêm
provocando perdas
acentuadas aos mais pobres.
Decerto a deterioração na renda e o aumento
da miséria começaram antes da chegada do presidente ao Planalto. Mas seu
governo perde a chance de amenizar o quadro, marcado por alto desemprego,
prevalência de vagas informais e elevada inflação.
Após longo período de queda na pobreza
extrema, o percentual de brasileiros vivendo com renda per capita inferior a R$
261 por mês, segundo critério da FGV Social, voltou aos dois dígitos a partir
de 2015. Atualmente, 13%, quase uma Venezuela, estão na miséria.
O cenário agravou-se após o Brasil deixar
de controlar o aumento da despesa pública e do endividamento no governo Dilma
Rousseff (PT), o que levou a forte recessão no biênio 2015-16 e crescimento
econômico medíocre desde então.
A necessidade de voltar a equilibrar o
Orçamento fica clara na comparação do panorama atual com o dos anos 2000,
quando se reduzia a dívida pública como proporção do Produto Interno Bruto.
Naquele período, não só a taxa de
miseráveis caiu à metade como houve recorde na formalização de empregos. Nos
últimos dez anos, no entanto, apesar do aumento de 27% na escolaridade da
metade mais pobre do país, sua renda despencou 26,2%.
A educação é considerada a mola mestra para
a conquista de melhores rendimentos. Mas o percurso recente revelou que, sem
equilíbrio orçamentário e crescimento, o esforço pode acabar inutilizado.
Neste momento, a falta de clareza do
governo federal sobre como será financiado o Auxílio Brasil, provável
substituto do Bolsa Família, volta turvar a previsibilidade orçamentária,
sobretudo porque Bolsonaro pode querer gastar mais diante da falta de
favoritismo para a eleição de 2022.
Sem horizonte claro, os agentes econômicos
têm se refugiado na compra de dólares, movimento que pressiona o preço de
commodities como alimentos e petróleo e a inflação em geral —agravando a
situação dos pobres.
No social, o governo Bolsonaro deixou
passar a oportunidade de revisar programas antigos e hoje considerados
anacrônicos. O Brasil gasta 25% do PIB na área social, o mesmo que alguns
países ricos; entretanto o faz de forma muito desfocada e desigual. O Bolsa
Família, por exemplo, fica com menos de 0,5% do produto.
Reorganizar o gasto e modernizar programas
sociais precisam estar no topo da agenda do próximo governo. Mas, como a
trajetória recente mostra, isso precisará ser feito sobre um tablado firme de
contas públicas em ordem.
600 mil mortes
Folha de S. Paulo
Marca vem em momento de melhora, mas
apuração de desmandos não pode esmorecer
A marca trágica de 600
mil mortes por Covid-19 talvez
já não choque como deveria os brasileiros, após mais de um ano e meio de
pandemia. É da natureza da mente humana não permanecer em estado de alerta por
meses a fio.
Graças aos avanços obtidos com a vacinação,
reabrem-se bares, restaurantes, cinemas e teatros, e partidas de futebol voltam
a ter torcida presente. A vida se aproxima do normal nas cidades, mantendo-se o
uso de máscaras faciais e do onipresente álcool em gel.
Há seis meses, as mortes somavam mais de
4.000 por dia, número reduzido hoje a cerca de um décimo disso na média dos
últimos sete dias. Ainda é demasiado —o equivalente a um Boeing 747-8 cheio, ou
a duas salas de cinema.
Resta caminho considerável a percorrer com
as vacinas e as medidas sanitárias. Menos da metade da população tem imunização
completa, ou 60% dos adultos.
Morre-se ainda muito porque o vírus circula
com relativa facilidade: em fins de setembro, o Imperial College de Londres
calculava taxa de transmissão no Brasil acima de 1, ou seja, cada infectado
transmite a Covid a mais de uma pessoa.
Para que a vacinação consiga conter a
transmissão do Sars-CoV-2, são necessárias porcentagens de ao menos 70% da
população. Felizmente há boa aceitação dos imunizantes, a despeito da sórdida
campanha de descrédito promovida por Jair Bolsonaro e seguidores.
Diante dos descalabros apontados na CPI da
Covid, impossível não pensar em quantas das vítimas poderiam ter sido salvas se
houvesse boa gestão por parte de Brasília.
Ou, ao menos, sem negacionismo, propaganda
de tratamentos ineficazes e desdém às máscaras, que se somam à falta de testes,
de UTIs, de respiradores, de oxigênio.
Basta? Não. Como disse o presidente, nada
não está tão ruim que não possa piorar. Investigam-se denúncias de desmandos em
grandes operadoras de planos de saúde, Prevent Senior e Hapvida, que abraçaram
o uso da hidroxicloroquina pregada pelo Planalto —e ainda hoje avalizada pelo
Conselho Federal de Medicina (CFM).
O desejado retorno das atividades sociais e
econômicas merece ser celebrado pela população, mas o alívio não pode
obscurecer a apuração de responsabilidades pelos números macabros da pandemia.
Ministros deveriam terceirizar gestão do
patrimônio
O Globo
O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o
presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, não são as primeiras nem
serão as últimas autoridades econômicas a manter dinheiro em contas offshore.
Se as declararam à Receita Federal e cumpriram as exigências do Código de
Conduta da Alta Administração Federal, da Comissão de Ética Pública (CEP) e da
lei que rege conflitos de interesse, não fizeram rigorosamente nada de errado —
e, até o momento, não há evidência de que tenham feito.
A exploração política das offshores
reveladas no caso Pandora Papers (a ponto de Guedes ser convocado a depor na
Câmara) é reflexo, ao mesmo tempo, da ignorância da sociedade sobre o assunto,
da imagem indigente da equipe econômica (desde a posse, ela pouco realizou em
nome do programa que serviu para elegê-la) e da atitude opaca do ministro da
Economia.
A lei permite manter ativos no exterior
desde que declarados à Receita e recolhidos os impostos devidos. Para altos
funcionários, como Guedes e Campos Neto, o Código de Conduta impõe o envio de
todas as informações patrimoniais até dez dias depois da posse, para exame de
conflitos de interesse.
No artigo 5º, obriga à comunicação de “atos
de gestão” para transferir, vender ou alterar significativamente ativos, em
particular os afetados por decisões políticas. Veda “atos de gestão” que
resultem em investimentos nesses ativos afetados, conferindo à CEP o dever de
dirimir dúvidas e abrir exceções — e reservando ao funcionário o direito ao
sigilo. Não é, portanto, proibido a quem ocupa postos sensíveis manter dinheiro
fora do país, apenas operá-lo.
Para evitar conflitos de interesse, a praxe
entre executivos e empresários que assumem cargos no governo é delegar a gestão
de seus bens a terceiros, por meio de um mecanismo em que o dono não interfere
nas decisões de investimento, conhecido como “blind trust”. É o que fizeram os
antecessores de Guedes e Campos Neto, respectivamente, Henrique Meirelles e
Ilan Goldfajn. Era o que o próprio Guedes dizia “estar fazendo” no final de
2018.
Mesmo que nem ele nem Campos Neto tenham
adotado formalmente o “blind trust” (não é exigência legal), a CEP aprovou toda
a documentação apresentada por ambos quando entraram no governo. A offshore de
Campos Neto estava descrita (ao lado de outras) nos documentos levados aos
senadores na sabatina e foi fechada depois que assumiu o cargo. Quanto à de
Guedes, é precipitado acusá-lo de violar o Código de Conduta ou de conflito de
interesses, já que os próprios Pandora Papers não registram “ato de gestão”
nela desde 2015 (o dinheiro só está parado lá).
É verdade que ele deveria dar explicações
melhores. Não se sabe por que não apresentou até agora documentos comprovando
ter se afastado da gestão do patrimônio, como informaram seus advogados e ele
próprio disse na sexta-feira. Na leitura generosa, a omissão é um erro político
grave, pois abre margem a todo tipo de especulação.
O episódio deveria servir ao menos para
melhorar a legislação. Multimilionários não são necessariamente mais capazes —
como prova o caso do próprio Guedes —, mas excluir do governo quem tem dinheiro
em offshore reduziria demais os talentos disponíveis. Não faria sentido. Em vez
da indignação estéril, os parlamentares deveriam tornar o “blind trust”
obrigatório, no mínimo para o ministro da Economia e o presidente do Banco
Central.
Desafio da OMS é levar vacina contra
malária a crianças pobres
O Globo
Foi em meio à letal pandemia do novo
coronavírus — que, por motivos óbvios, monopoliza as atenções — que o planeta
tomou conhecimento de uma notícia espetacular: a Organização Mundial da Saúde
(OMS) aprovou a primeira vacina contra a malária, a Mosquirix, desenvolvida
pela farmacêutica GlaxoSmithKline. A despeito do anúncio acanhado, representa
um momento histórico. É a primeira também para uma doença parasitária.
Ao contrário do coronavírus, cuja
simplicidade permitiu o desenvolvimento de uma vacina em tempo recorde, o
parasita causador da malária, uma das doenças mais antigas e mais letais,
desafia os cientistas há décadas. Ela mata 400 mil por ano, sobretudo na África
Subsaariana. Mais da metade (260 mil) são crianças de até 5 anos. Um aspecto
cruel é que pode acometer a vítima várias vezes. Em regiões com altas taxas de
transmissão, mesmo crianças que dormem protegidas por mosquiteiros tratados com
inseticida — a doença é transmitida pela picada do mosquito Anopheles —
costumam contrair malária seis vezes por ano.
A vacina aprovada para ser aplicada em
quatro doses impede a infecção pelo Plasmodium falciparum, o mais letal entre
os cinco patógenos causadores da malária, predominante na África. Nos testes
clínicos, constatou-se eficácia de até 50% contra malária grave no primeiro
ano, mas esse percentual cai para quase zero a partir do quarto ano. Como a
malária grave é responsável por quase metade das mortes, a aposta é que a
vacina terá impacto positivo. Um estudo estimou que poderá prevenir 23 mil
mortes de crianças e 5,4 milhões de casos por ano. Em 2020, o Brasil registrou
130 mil casos de malária, com 30 mortes, mas 90% são atribuídos ao Plasmodium
vivax, parasita para o qual a nova vacina não surte efeito.
Resultado de mais de 30 anos de pesquisas,
a vacina da GSK surgiu após sucessivas tentativas frustradas. Ela usa uma
proteína isolada nos anos 1970 por um casal de brasileiros exilados nos Estados
Unidos durante a ditadura, Ruth e Victor Nussenzweig, pioneiros em várias
tentativas de imunizantes. Outro pioneiro foi o colombiano Manuel Patarroyo,
cuja vacina sintética se mostrou promissora em testes de laboratório e com
macacos nos anos 1980, mas, testada em humanos, decepcionou.
Ter uma vacina contra a malária é excelente
notícia, mas é apenas um primeiro passo. De nada adiantará se ela não chegar às
crianças. É um problema tão relevante quanto a descoberta em si. A guerra
contra o novo coronavírus expôs o fracasso da OMS em levar vacinas aos países
pobres. O consórcio Covax, que parecia ser a solução para vacinar o planeta,
não tem funcionado. Enquanto países de renda alta e média já aplicam doses de
reforço contra a Covid-19, os de baixa renda ostentam percentuais pífios para
as duas primeiras — na África, apenas 4,6% foram completamente imunizados até
agora.
A descoberta da vacina contra a malária será tanto mais auspiciosa quanto mais puder chegar às crianças pobres. Eis o grande desafio atual da OMS e da humanidade. Mas o primeiro passo foi dado — e ele é gigantesco.
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