EDITORIAIS
A ‘maldade’ do ‘mundo político’
O Estado de S. Paulo
Ao falar mal do mundo político, governo Bolsonaro fala mal de si mesmo
Não é de hoje que a seara política é vista
de forma pejorativa, marcada por interesses e práticas escusas. Com os
escândalos do mensalão e do petrolão, entre outros, o PT reforçou a péssima
imagem da política. Nesse processo, a mensagem que se difundiu com a Lava Jato
– de que a política estaria irremediavelmente podre – também contribuiu para
consolidar uma percepção negativa sobre a atividade política.
Tudo isso fez com que ser de fora da
política – ou ser assim percebido pela população – se tornasse poderoso ativo
eleitoral. Por exemplo, na eleição municipal de 2016, quando foi eleito no
primeiro turno, João Doria valeu-se intensamente do atributo de outsider da
política. O mesmo fez Jair Bolsonaro, na eleição presidencial de 2018.
Ignorando sua longa trajetória parlamentar – era deputado federal desde 1991 –,
o então candidato do PSL apresentou-se como o militar que vinha salvar a
política.
Pouco resta agora das promessas da campanha. Ao longo do governo, Jair Bolsonaro assumiu uma feição mais alinhada com sua trajetória política: a do populista que só pensa em eleições. No entanto, a despeito dessa nova postura, continua havendo, no governo Bolsonaro e em seu entorno, uma retórica de distanciamento da política, tratada sempre de forma pejorativa. Tal abordagem é especialmente presente nas falas do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Recentemente, ao falar da necessidade de
cortar gastos e das resistências contrárias ao ajuste fiscal, o presidente do
Banco Central, Roberto Campos Neto, corroborou esse enquadramento da política.
“Eu entendo a dificuldade
(de cortar gastos) e entendo que o mundo
político gera suas limitações nesse sentido”, disse Campos Neto, no 9.º Fórum
Jurídico de Lisboa.
Nesse modo de se referir ao “mundo político”,
que vai além do entorno bolsonarista, destacam-se três pontos. Em primeiro,
está a ideia de alheamento. A política seria formada pelos outros, por
terceiros. Quem se refere ao “mundo político” coloca-se habitualmente fora
dele, fora desse mundo supostamente sujo.
O caráter antiético é a segunda
característica. O mundo político seria constitutivamente ruim: imediatista,
irresponsável e indiferente ao interesse público. Nada originário desse mundo
seria benéfico para a sociedade. Por isso, todos os cidadãos de bem, honestos e
trabalhadores, deveriam estar, em alguma medida, em confronto com o mundo
político.
Por último, mas não menos importante, está
a ideia da normalização. Há uma aceitação de que o mundo político seria assim
mesmo, sem remédio e sem futuro. Esse ponto é especialmente visível nas
tentativas do governo de atribuir seus fracassos ao “mundo político”. O
discurso é sempre o mesmo: tentou-se implementar tal ou qual medida, mas não
foi possível em razão das limitações impostas pelos políticos. O tom é de
aparente resignação, mas o conteúdo é de estrita irresponsabilidade. A culpa é
dos outros – os políticos, que seriam sempre interesseiros.
Vislumbra-se aqui a falácia de retratar a
esfera política como um mundo à parte, inexoravelmente corrompido. A suposta
maldade do “mundo político” é mera tática para esquivar-se das
responsabilidades – e isso vale tanto para o governo como para os cidadãos
(que, afinal, são os que elegem os políticos). Um Poder Executivo competente e
responsável transforma positivamente esse mundo político supostamente perverso
e corrompido. Já um governo fraco e sem proposta, com objetivo exclusivamente
eleitoral, corrompe o entorno político. Incentiva as piores práticas e torna
viáveis os mais nefastos sonhos dos maus políticos.
Não há um mundo civil e outro político.
Essa divisão é aplicação equivocada de uma mentalidade militar (em que de fato
há uma esfera militar, diversa da civil). A sociedade faz parte da política, é
o âmbito da política. Um governo que fala mal dos políticos e do mundo político
está falando mal de si mesmo. Agindo assim, deseja irresponsabilidade, mas
consegue o exato oposto: revela ignorância sobre sua identidade e confessa a
própria incompetência.
O horror da Serra Pelada fluvial
O Estado de S. Paulo
A invasão de garimpeiros ilegais no Rio
Madeira é mais uma catástrofe a expor o descaso do governo ante os desafios
socioambientais da Amazônia
Os crimes ambientais seguem proliferando em
doses industriais sob as barbas do governo Bolsonaro. Há poucos dias, contra
todos os esforços de ocultamento do Planalto, veio à tona a escalada do
desmatamento na Amazônia no último ano: foi o maior volume desde 2006 e a maior
aceleração desde os anos 90. Agora, o mundo assistiu estarrecido à invasão em massa
de garimpeiros no Rio Madeira.
A pouco mais de 100 km de Manaus, uma frota
com centenas de balsas e dragas ficou vários dias atracada no município de
Autazes. Em plena luz do dia, abastecidas pela sede do ouro, elas sugam o barro
e tudo o mais que encontram no leito do rio, destruindo o alimento dos peixes,
comprometendo a qualidade da água e gerando assoreamento. Além dos danos
ambientais, o mercúrio despejado na água traz riscos à saúde das populações
ribeirinhas. Há poucos dias, em Roraima, duas crianças ianomâmis foram sugadas
por uma draga. Seus corpos foram cuspidos no rio e levados pela correnteza.
A garimpagem clandestina costuma ser
acompanhada de ilegalidades como mão de obra escrava, contrabando e
prostituição. O Rio Madeira é uma rota dos narcotraficantes, e é grande a
probabilidade de que estejam envolvidos na operação.
Segundo a Universidade Federal de Minas
Gerais, das 174 toneladas de ouro comercializadas no Brasil entre 2019 e 2020,
49 saíram de áreas com evidências de irregularidades, e a exploração do ouro
ilegal pode ter causado um prejuízo socioambiental de R$ 31,4 bilhões.
A lavra clandestina nos afluentes do
Amazonas é conhecida há décadas pelo poder público. O que chocou na atual
operação foi o contraste entre a sua escala e a inação do governo. Desde
setembro, dezenas de barcas atracaram no município de Humaitá sem que fossem
importunadas. Há 15 dias, o rumor de que se teria achado ouro em Autazes
desencadeou o deslocamento massivo.
O governo do Amazonas lavou as mãos, sob o
pretexto de que a área é de competência dos órgãos federais. Com efeito, a
regulamentação da exploração cabe à Agência Nacional de Mineração; o
licenciamento, ao Ibama; as autuações, à Polícia Federal; e a tutela dos rios,
à Marinha. Mas foi preciso que as imagens das favelas flutuantes explodissem na
imprensa para que o Ministério Público cobrasse desses órgãos uma mobilização
emergencial. Os garimpeiros ameaçavam resistir, prenunciando um confronto, mas
aparentemente decidiram se dispersar ante a iminência de uma grande ação
policial.
As máfias por trás dos garimpeiros
demonstram ter recursos em abundância para financiar incursões predatórias nos
rios e florestas da Amazônia. Mas os garimpeiros reclamam da falta de proteção
política. Vê-se que estão mal informados. Em Autazes, o vereador Bandeira
Serrão, do Partido Verde (nada menos!), contemporizou a invasão, em razão de
supostos benefícios à economia local. Injustificável, mas compreensível. O que
é absolutamente indesculpável é a conivência do chefe do Executivo federal. A
liberação indiscriminada do garimpo está na agenda de Jair Bolsonaro desde a
campanha à Presidência. Em maio, na mesma semana em que tribos ianomâmis foram
atacadas a tiros por garimpeiros, Bolsonaro disse que “não é justo”
criminalizar o garimpo. Mas o presidente nada fez para promover alternativas
legais e sustentáveis aos garimpeiros.
A crise ilustra um drama social. Boa parte
dos garimpeiros em Autazes é de miseráveis em busca de sobrevivência. Eles
poderiam buscar licenças para realizar o garimpo com práticas não predatórias
em áreas autorizadas. Mas não são estimulados a isso por programas de governo,
porque isso prejudicaria o tráfico de licenças fraudulentas por políticos e
burocratas corruptos e os interesses de contrabandistas e narcotraficantes no
mercado ilegal do ouro.
Sem prejuízo da repressão imediata e implacável ao garimpo ilegal, é preciso uma ampla e enérgica mobilização do poder público e da sociedade civil para prover ferramentas de desenvolvimento sustentável aos povos amazônicos. Só arrancando pela raiz as condições sociais que levam à clandestinidade será possível quebrar a economia da destruição ambiental.
Empresas respiram
Folha de S. Paulo
Balanços mostram bons dados, mas
inconsistência da política econômica é ameaça
Apesar da instabilidade crescente na
economia, as empresas brasileiras de capital aberto conseguiram apresentar bom
desempenho nos últimos meses. A persistência da inflação e o aumento dos juros
que derivam da falta de rumo da política econômica, porém, já apontam para
riscos em 2022.
Como vem ocorrendo na maior parte do mundo,
os estímulos governamentais e o choque favorável na demanda por itens de
consumo contribuíram para o aumento das vendas e dos lucros, uma vez passado o
pior momento da Covid-19.
É o que se observa também no Brasil, mesmo
em meio às intempéries locais. Os dados de 298 empresas coletados pelo jornal
Valor Econômico mostram alta de 33% da receita liquida no terceiro trimestre,
em relação ao mesmo período do ano passado.
Como os custos se elevaram menos, a margem
operacional subiu 3,2 pontos percentuais, para 16%.
O desempenho também se reflete na
arrecadação de impostos, que cresceu 4,9% em outubro (já descontada a inflação)
ante o mesmo mês de 2020. Na comparação com outubro de 2019, que não leva em
conta a base deprimida durante a pandemia, o incremento se mostra ainda maior,
de 15%.
O principal fator para esse crescimento é o
salto na coleta do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSLL).
O risco adiante é que a esperada
desaceleração das vendas se combine com persistentes pressões de custos. Depois
de evidenciado que o governo patrocinaria o estouro do teto de gastos federais
inscrito na Constituição, dispararam as expectativas de inflação e os juros de
mercado, que devem novamente superar 10% nos próximos meses.
As projeções mais consensuais para a
expansão do Produto Interno Bruto em 2022 caíram de 2% para 0,7% em poucas
semanas.
Será preciso reverter essa dinâmica
nefasta, mas pouco ou nada se espera de construtivo da gestão econômica da
atual gestão.
A boa notícia é que os ajustes patrimoniais
que eram necessários para corrigir os excessos de endividamento e os
investimentos mal feitos antes da recessão de 2015 já foram completados. As
maiores empresas, notadamente a Petrobras, passaram anos ajustando seus
balanços e recuperando a disciplina financeira.
Se durante esse processo de ajuste houve
baixo investimento e letargia na atividade, ao menos a situação atual se
afigura bem melhor. A rentabilidade das empresas, ao menos as de capital
aberto, é alta e não constitui impeditivo para a retomada do crescimento.
Isso, claro, desde que haja sinais
concretos de uma política econômica consistente —algo que dependerá da campanha
eleitoral.
Questão mal resolvida
Folha de S. Paulo
Dúvidas sobre o Enem resultam de
intromissão de Bolsonaro e leniência do Inep
Contaminado por picuinhas ideológicas de
Jair Bolsonaro, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) corre o risco de
fracassar, mais adiante, na tarefa de separar alunos mais e menos proficientes.
Até aqui, só
2% das questões utilizadas ao longo de uma década se revelaram ineficientes,
ou seja, incapazes de discriminar precisamente o desempenho de estudantes.
Assim constatou análise da Folha com
1.928 perguntas formuladas de 2009 a 2019 em exames aplicados a 69 milhões de
participantes.
O Enem se funda na metodologia batizada de
Teoria da Resposta ao Item (TRI). Em termos simples, utilizam-se questões
padronizadas segundo o grau de dificuldade aferido em pré-testes, o que
pressupõe um grande banco de itens que apresentem desafios comparáveis, para
garantir a confiabilidade estatística da avaliação.
Não é pouca responsabilidade, pois se trata
de prova que representa para milhões de jovens a chance de cursar o ensino
universitário em instituições públicas e gratuitas. O Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), porém, tem dado demonstrações seguidas
de descaso.
Desde fevereiro, pelo menos, técnicos da
instituição vinham alertando para a escassez
crescente de questões pré-testadas no banco. A produção de novas perguntas
foi interrompida em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro.
Não bastasse a incúria, causa repulsa saber
que ela se dá por motivo fútil: a mera implicância —pois não se trata de
questionamento baseado em critério técnico— do presidente com temas indigestos
para sua pauta, como ditadura militar, diferenças de gênero, conceito de
minorias, racismo, população carcerária e terras indígenas.
Bolsonaro chegou a demandar que se tratasse
o golpe de 1964 como "revolução" e que a prova tivesse "a cara
do governo". Para ele, há que banir questões com "doutrinação",
supostamente inadequadas para medir conhecimento de candidatos; outra
reportagem deste jornal, porém, verificou que os itens em sua mira foram,
sim, eficientes
para avaliar competências.
Como resultado, há três edições o Enem não
menciona a ditadura militar. Enunciados sobre Mafalda, Chico Buarque e Madonna
já foram censurados. A escassez de questões resultante da mescla de
obscurantismo com inépcia, contudo, barra ela mesma a inclinação subserviente
do Inep perante a Presidência da República.
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