Revista Veja
Há mais de trinta anos fizemos uma transição pacífica e escrevemos uma bela Constituição. Mas perdemos alguma coisa pelo caminho, no plano dos valores
O tema da democracia parece estar sempre em
pauta no Brasil. Não deveria. Há muito precisaríamos ter um consenso em torno
de coisas básicas: que as regras do jogo estão aí para serem respeitadas, que
os poderes são independentes, que ninguém, à esquerda ou à direita, é dono da
legitimidade democrática, e que os direitos individuais, a começar pela
liberdade de expressão, serão preservados. É assim que funciona nas democracias
maduras, e assim deveria ser no Brasil. Nossa Constituição já é balzaquiana,
vamos para nossa nona eleição presidencial, diferentes visões políticas já ocuparam
o poder e o fizeram, com arranhões aqui e ali, nos limites da lei. Somos uma
democracia rodada. Mas o debate parece prosseguir em aberto.
Nos últimos três anos discutimos
exaustivamente sobre os “riscos à democracia” representados por Bolsonaro.
Houve teses acadêmicas sobre o “fascismo” no poder; toneladas de papel sobre a
iminência de um “golpe”; profusão de manifestos “em defesa da democracia”.
Cansei de ler que andávamos como a Alemanha dos anos 30, aguardando o “putsch”
final de nosso führer tropical.
Gente boa apostou que seria nos comícios do 7 de Setembro. Como nada aconteceu,
o tédio da pequena política voltou a reinar. Alguns ainda esperam por algum
fiasco como aquele do Capitólio, com malucos de chifres na cabeça tirando
selfies sobre as mesas dos deputados. Acho difícil, mas, se acontecer, vai todo
mundo em cana.
Ainda na outra semana foi a vez de Lula dar sua contribuição. Em uma entrevista ao El País, lascou a pergunta que já ficou famosa: “Por que a Angela Merkel pode ficar dezesseis anos no poder e o Daniel Ortega não?”. Algo espantada, a jornalista retrucou: “Mas Merkel não mandou prender os adversários”. Seu espanto define bem nossa diferença. Por aqui há muito deixamos de nos impressionar com essas coisas.
Lula diz essas coisas desde sempre, não é
mesmo? Dias atrás li um artigo dizendo que o PT era “crítico do socialismo
real”, nos anos 80. Podia ser crítico do “stalinismo”, e por certo não dava
muita bola para o que se passava atrás da cortina de ferro. Com Cuba sempre foi
diferente. Ainda me lembro do embaixador cubano aclamado (e surpreso, imagino),
adentrando nos encontros do PT. E do filósofo Cornelius Castoriadis perguntando
a uma imensa plateia de esquerda, em uma noite qualquer do fim dos anos 80:
“Vocês acham que em Cuba o stalinismo é diferente?”. Continuam achando, ao que
parece.
Vale o mesmo para Bolsonaro. Passou a vida
defendendo o regime militar e nunca fez segredo de sua admiração pelo coronel
Brilhante Ustra. Não recuou de suas posições na campanha de 2018 e foi eleito
com 58 milhões de votos. Algum problema? De minha parte, sim. Mas desconfio que
para a imensa maioria das pessoas isso não faz a menor diferença. Imaginam que
a democracia não exija que um presidente seja, no fundo da alma, um democrata.
Basta que se comporte como tal. Bolsonaro pode brincar de general Médici,
diante do espelho, e Lula fumar charutos em Havana, nas férias de fim de ano.
No mundo real, vale a rédea curta das instituições.
É evidente que as simpatias políticas
afetam escolhas de governo. Quando o então chanceler brasileiro Luiz Felipe
Lampreia foi a Cuba, em 1998, teve a dignidade de se reunir com Elizardo
Sánchez, ex-preso político e ativista de direitos humanos. Nos anos que se
seguiram, Lula comparou presos políticos cubanos a presos comuns no Brasil.
Bolsonaro fez seu “alinhamento automático” ao governo Trump, com consequências
de outra ordem para a política externa brasileira.
O mesmo mal-estar com a democracia vejo nas
ações de nosso sistema de Justiça. Em meados do ano passado, um grupo de
cidadãos foi banido das redes sociais. Acusação? Espalhar fake news, atentar contra a
democracia. Ainda este ano, o TSE desmonetizou contas de ativistas contrários
às urnas eletrônicas. E por agora o ministro Alexandre de Moraes proibiu o
deputado Daniel Silveira de dar entrevistas. Motivo? O deputado poderia, caso
falasse, reiterar suas “opiniões criminosas” contra o Supremo. O.k. Ninguém dá
muita bola. Mas vamos reconhecer que é censura prévia, não é mesmo?
O ministro participou de um debate, dias
atrás, dizendo que há uma nova direita, sob orientação de “ideólogos
americanos”, atuando para desacreditar e “corroer as instituições”. Disse que a
Constituição garante liberdade de expressão, mas com uma longa fila de
vírgulas. Que ela não se confunde com “desinformação”, nem com “possibilidade
de discurso de ódio” ou “ataques à democracia”.
Não duvido das boas intenções do ministro.
Mas é preciso cuidado. Nos anos 40, os ideólogos eram “soviéticos”, o perigo
vinha dos “comunistas” e posto fora da lei foi o Partido Comunista Brasileiro.
Por vezes parecemos andar em círculos. Há muito deveríamos ter aprendido que
não cabe a uma instituição de Estado tecer juízos políticos sobre “esquerda” ou
“direita”. Tão pouco cabe criminalizar pessoas com base em grandes palavras, de
sentido opaco e abertas a múltiplas interpretações. A história da liberdade de
expressão foi escrita exatamente para que esse tipo de juízo subjetivo não
fosse usado para disciplinar os direitos e o pensamento. Uma lei “plástica”,
passível de infinitas interpretações por quem detém o poder, deixa de ser lei.
Torna-se arbítrio. Exemplo disso é nossa quase finada Lei de Segurança
Nacional. No fundo, o ministro tem razão: é preciso cuidar para que ninguém,
nem mesmo nossa mais alta Corte, faça uso das instituições para “corroer por
dentro a democracia”.
Observando essas coisas vem à minha memória
a célebre frase de Sérgio Buarque, em Raízes
do Brasil: “A democracia, no Brasil, foi sempre um lamentável mal-entendido”.
Buarque se referia à nossa tradição patrimonialista. Ao império das lealdades
pessoais e afetivas, acima do respeito à impessoalidade das regras do jogo. “A
ideologia impessoal do liberalismo democrático”, escreveu, “jamais se
naturalizou entre nós”.
Quase um século depois de Raízes do Brasil, o mal-entendido
adquiriu novos contornos. Ao vezo patrimonialista, nas relações políticas,
acrescentamos o ódio ideológico. Talvez tenhamos nos tornado mais modernos.
Nosso ódio se “despersonalizou”. Diz simplesmente respeito ao “outro que pensa
diferente de mim”.
O que parece não ter mudado é nossa
baixíssima adesão aos “valores abstratos” da tradição liberal: tolerância,
respeito a direitos individuais, visão pluralista do mundo político. Nesse
universo, é triste dizer, andamos para trás. Há mais de trinta anos fizemos uma
transição pacífica e escrevemos uma bela Constituição. Mas perdemos alguma
coisa pelo caminho, no plano dos valores. E é por aí que deve seguir, com
alguma humildade, nossa reflexão.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de
2021, edição nº
2768
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