EDITORIAIS
O festival da bondade orçamentária
O Globo
Talvez a única virtude da Lei Orçamentária
de 2022, recém-aprovada no Congresso, seja ter sido concluída antes do
exercício a que se destina — é preciso reconhecer. Mas é só. A razão para a
presteza insólita nada tem de virtuoso. Trata-se da avidez com que, uma vez
rompido o teto de gastos, Brasília se lançou afoita, na antessala do ano
eleitoral, sobre a chance de distribuir agrados. O principal mecanismo para
isso são as emendas parlamentares que somarão R$ 37,5 bilhões, incluindo aí as
famigeradas emendas do relator, o mecanismo por trás do orçamento secreto, no
total de R$ 16,5 bilhões. Mesmo que, graças à ação do Supremo Tribunal Federal
(STF), estas últimas se tornem mais transparentes, ainda permitirão ao governo
enviar dinheiro a todo tipo de interesse paroquial que lhe traga dividendos
políticos.
O festival da bondade orçamentária não ficou por aí. O fundão eleitoral foi orçado em R$ 4,9 bilhões, quando R$ 2,1 bilhões (valor gasto em 2018 corrigido pela inflação) bastariam para bancar as campanhas. Os policiais federais levaram um reajuste que custará R$ 1,7 bilhão aos cofres públicos. Apenas extinguindo as emendas do relator, esse aumento descabido para a PF e restringindo o fundão, teria sido possível economizar R$ 21 bilhões dos R$ 113 bilhões estimados para o estouro do teto.
O pretexto alegado para sacrificar a última
âncora fiscal do país — implantar o Auxílio Brasil — representará menos da
metade do estouro (R$ 54 bilhões). É essencial ter os números em mente quando o
cinismo da classe política insistir que a ruptura do teto era necessária para
financiar gastos sociais. Quanto aos investimentos, outro pretexto para
desdenhar a responsabilidade fiscal, o valor estimado é de tímidos R$ 44
bilhões, ou menos de 0,5% do PIB previsto para 2022.
Obras de infraestrutura, em hospitais,
escolas ou outras não são as únicas preteridas. Para abrir espaço a gastos, os
congressistas cortaram até a previsão de despesas obrigatórias, como pessoal,
Previdência ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a idosos e
deficientes, também parte da rede de proteção social do Estado. É possível que
as despesas obrigatórias estivessem superestimadas — mas ainda somam 94% do
Orçamento.
A principal restrição aos investimentos e
gastos sociais continua intocada: o crescimento incessante dos gastos com
funcionalismo e uma estrutura tributária que reduz a arrecadação, ao
privilegiar grupos de interesse organizados. O Orçamento continua a ser um
reflexo de políticas públicas implantadas sem critério de eficiência e da relutância
do Congresso em enfrentar as corporações e lobbies que resistem à urgência das
reformas tributária e administrativa. Para os parlamentares, aparentemente nada
disso importa diante da iminência da eleição.
Quando falava em devolver o controle orçamentário
ao Congresso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, imaginava um mecanismo mais
democrático de distribuir recursos. Em vez disso, o governo abriu a porteira à
apropriação do Orçamento por interesses políticos e pela elite do
funcionalismo. O reajuste da PF parece só o começo. Auditores fiscais e outras
categorias já se mobilizam. Para tapar o previsível buraco que resultará da
soma de inúmeras demandas, o jeito será recorrer ao truque conhecido: receitas
ampliadas pela inflação. E o dinheiro na mão dos pobres valerá menos. Eis o
legado deste governo à economia brasileira.
É temerário aval do comitê científico do
Rio para liberar carnaval de rua
O Globo
Numa decisão inesperada e temerária, o
Comitê Especial de Enfrentamento à Covid-19, que assessora a prefeitura do Rio,
recomendou que o município não imponha restrições ao carnaval do ano que vem.
Blocos e escolas de samba estão liberados para a festa. Até então, o prefeito
Eduardo Paes confirmara apenas o evento no Sambódromo, já que a folia de rua
dependia de análise. Não depende mais. Na semana que vem, a Riotur deverá
divulgar a lista dos cortejos autorizados a tomar as ruas.
O comitê justifica a decisão pelo cenário
positivo observado na capital fluminense: queda nos casos e óbitos pela doença,
hospitalizações, testes positivos para Covid-19 e alto percentual de vacinados.
Faz a ressalva de que “o monitoramento do cenário epidemiológico deve ser mantido
em vigilância”.
É sabido — até pelo clima de “acabou a
pandemia” que toma conta do Rio e de todo o país às vésperas das festas de fim
de ano — que o número de casos da doença vem caindo significativamente e que as
internações despencaram diante do avanço da vacinação. Na cidade do Rio, 80% da
população está com o esquema vacinal completo. Sem dúvida, um cenário positivo.
Mas essa não é uma decisão sobre o
comportamento da pandemia no passado ou a tendência neste momento. O carnaval
não será na semana que vem, mas daqui a dois meses. Não é razoável olhar apenas
o cenário epidemiológico pretérito no Rio, sem levar em conta a apreensão com a
variante Ômicron no mundo. Nos Estados Unidos e na Europa, o número de novos
casos de Covid-19 sobe a cada dia, levando governos a retomar medidas de
restrição impopulares, mas necessárias.
A despeito do apagão de dados no Ministério
da Saúde, alguns estados já começam a detectar aumento de casos. O Observatório
Covid-19, que reúne dezenas de cientistas das melhores instituições
brasileiras, lançou nesta semana uma nota técnica em que faz um alerta sobre o
aumento no número de hospitalizações no município de São Paulo, atribuídas à
Covid-19 ou à outra epidemia que aflige o país, a gripe, que também tem
pressionado o sistema de saúde no Rio — as cenas de Unidades de Pronto
Atendimento (UPAs) lotadas desafiam o cenário favorável pintado pelo comitê.
Ainda são muitas as incertezas sobre a
Ômicron, mas não há dúvida de que a nova variante se espalha numa velocidade
sem precedentes. Há indícios também de que ela escapa às vacinas e, mesmo que
possa causar casos menos severos, não prescinde de uma terceira dose para
reforço. Isso significa que o cenário atual não é tão confortável quanto parece
crer o comitê científico.
No Sambódromo, é até possível exigir passaporte sanitário para quem desfila ou assiste na plateia. No carnaval de rua, isso é impossível, assim como é impossível controlar o uso de máscaras e evitar aglomerações. A decisão do comitê se baseia no cenário de hoje, para um evento que acontecerá no fim de fevereiro. Esperava-se maior cautela dos responsáveis. Dar carta branca ao temerário carnaval de rua é convidar a Ômicron a participar da folia.
Contas degradadas
Folha de S. Paulo
Orçamento afronta a austeridade, privilegia
apaniguados e reflete desgoverno
Para surpresa de ninguém, a conclusão
da votação do Orçamento de 2022 confirmou as demais intenções do
centrão e do governo para o uso do espaço aberto nas contas com a ampliação do
teto de gastos e o calote nos precatórios.
Além do pagamento do necessário Auxílio
Brasil, os recursos vão privilegiar as chamadas emendas de relator, com R$ 16,5
bilhões, o fundão eleitoral de R$ 4,9 bilhões e a absurda previsão de reajuste
salarial para policiais federais, ao custo de R$ 1,7 bilhão.
Esta última benesse já acirra o
corporativismo da elite estatal brasiliense. Agora são auditores da Receita
Federal que entregam
cargos comissionados às centenas, em protesto por não verem contempladas
suas demandas.
Nas atuais circunstâncias, as opções mais
corretas seriam, além do novo programa assistencial, preservar investimentos e
despesas urgentes para recompor um mínimo de funcionalidade na máquina pública.
Seria possível fazê-lo respeitando o teto e o pagamento das dívidas arbitradas
pela Justiça.
Mas o processo de elaboração e gestão do
Orçamento vive um momento de degradação. Se é verdade que nunca se firmou uma
cultura de uso responsável dos recursos, o governo de Jair Bolsonaro agrava o
vício de direcionar montantes bilionários a minorias influentes, sem escrutínio
da sociedade ou análise de política pública.
A peça orçamentária deveria refletir um
debate em torno das prioridades nacionais, tarefa essencial dos representantes
da sociedade numa democracia. A versão atual acaba por mostrar apenas o
oportunismo do Palácio do Planalto e de seus aliados de ocasião.
O aumento de quase R$ 3 bilhões no fundo de
financiamento das campanhas eleitorais privilegia as burocracias partidárias
—num país com 12,8% de desemprego, inflação de dois dígitos e cenas de fome nas
grandes cidades.
No caso das emendas, não é aceitável manter
tamanho poder nas mãos do relator, que assim opera as conveniências da
coalização parlamentar sem coerência na destinação das verbas. Mesmo a
imposição de transparência não garante que haverá bom uso do dinheiro.
O Executivo, por seu turno, assiste a tudo
e também promove o desmonte, pois tanto o presidente da República é inepto para
governar quanto seu ministro da Economia já se conformou aos ditames da baixa
política —que a todo momento criam pretextos para novos desmandos.
O dano está feito e consertá-lo dará
trabalho nos próximos anos. É imperioso, para tanto, que as forças políticas
reconheçam que as práticas atuais são insustentáveis.
Violência oculta
Folha de S. Paulo
Pandemia dificulta denúncias e embaralha
dados escassos sobre agressão à mulher
Todos os dias, centenas de brasileiras
entram para as estatísticas de casos que são comuns mesmo subnotificados —os de
mulheres submetidas a diferentes expressões da violência de gênero.
Especialistas consideram tais episódios
hiperendêmicos no país, tomando emprestada a definição aplicada a doenças
persistentes e de alta incidência.
São agressões psicológicas, físicas,
sexuais, que acontecem também dentro das casas das vítimas, motivadas ou
agravadas por sua condição feminina. Algumas delas assim foram descritas
nesta Folha com
a série de documentários e reportagens Gênero:
Feminino.
Há poucos dados, por exemplo, sobre
adolescentes e mulheres aliciadas por traficantes para fins de exploração
sexual. O medo de retaliação se soma à baixa integração das informações
coletadas por diferentes órgãos públicos e à própria dificuldade das vítimas de
identificarem esse tipo de violência.
Também é complexo dimensionar o índice de
brasileiras envolvidas em casamento infantil (quando uma das partes tem menos
de 18 anos, sendo que as meninas são 94% dos registros). Sabe-se que os casos
conhecidos colocam o Brasil num vergonhoso quinto lugar no ranking mundial,
atrás de Índia, Bangladesh, Nigéria e Etiópia.
A tragédia sanitária provocada pela
pandemia contribuiu para isolar parcela importante dessas vítimas, que deixaram
a escola e o trabalho presencial, ficaram ainda mais distantes de delegacias e
conviveram intensamente com seus agressores dentro de casa.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o Datafolha, 1 em cada 4 brasileiras
diz ter sofrido algum episódio de violência (física, sexual, psicológica ou
verbal) no primeiro ano da Covid.
Ainda assim, os dados mais recentes da
entidade mostram uma queda nas ocorrências de agressão doméstica —o que se
atribui à maior dificuldade de denunciar.
Por uma articulação de questões sociais e
culturais, que fazem com que as meninas sejam consideradas propriedade dos
pais, por exemplo, em várias regiões do país muitas vítimas têm dificuldade
para enxergar a ilegalidade do que vivem.
Acabam submetidas a violências repetidas e
silenciadas, nas mãos de pais, padrastos, maridos, tios, avós, primos,
namorados, médicos e desconhecidos. Reconhecer a própria dor na dor de outras é
uma saída possível para identificar e denunciar as agressões e tentar alterar
esse cenário hostil.
O Orçamento privatizado
O Estado de S. Paulo.
Com partilhas secretas e outros arranjos, a lei orçamentária serve muito mais a interesses privados do que a fins públicos
A maior e mais bem-sucedida privatização
dos últimos três anos foi a do Orçamento Geral da União, apropriado pelo
presidente Jair Bolsonaro e por seus associados no Congresso Nacional. O
sucesso é medido, nesse caso, pelas vantagens, principalmente
político-eleitorais, obtidas pelas autoridades envolvidas no empreendimento.
Bolsonaro e sua equipe chegaram ao governo prometendo privatizar um grande
número de bens controlados pela União. Já no primeiro ano essas vendas poderiam
render R$ 1 trilhão, segundo o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. Nada
parecido com isso foi realizado até agora, quando se completam três anos de
mandato. Mas o balanço é muito diferente quando se usa um critério menos
convencional. Basta verificar, por exemplo, o avanço dos interesses privados
com a consagração do orçamento secreto, uma grande vitória antirrepublicana.
O chamado cidadão comum, empenhado em
ganhar a vida com o trabalho do dia a dia, continua fornecendo o dinheiro para
as despesas da União. Esse dinheiro é público, portanto, mas seu uso tem sido
cada vez menos associado a programas de amplo interesse, ligados a planos de
governo e a programas com valor estratégico. Mesmo a noção de governo é
dificilmente associável ao grupo instalado no Palácio do Planalto e em sua
vizinhança. Tendo assumido o governo em janeiro de 2019, o presidente Jair
Bolsonaro jamais se dedicou de fato a governar o País nem demonstrou, até hoje,
entender essa atividade – diferente de apenas mandar – como sua obrigação.
Transparência e constante prestação de
contas deveriam ser obrigações normais quando se mexe com dinheiro público. Não
há transparência, no entanto, quando se trata, por exemplo, das emendas de
relator. Essas emendas, denunciadas como orçamento secreto pelo Estado, deverão
consumir R$ 16,5 bilhões no próximo ano. Essas verbas deverão destinar-se, como
geralmente ocorre no caso de emendas, a obras quase sempre paroquiais, ligadas
ao interesse eleitoral de parlamentares. A novidade tem sido, nesse caso, a
ocultação dos nomes envolvidos na partilha e na destinação do dinheiro.
Parlamentares ligados à área da Saúde
haviam pedido R$ 5 bilhões, menos que um terço das verbas do orçamento secreto,
para compra de vacinas. Não se incluiu esse item no relatório final da proposta
orçamentária. Mas foram incluídos R$ 4,9 bilhões para o fundo eleitoral, muito
mais que o dobro da verba de 2018, R$ 2 bilhões. Não entraram os R$ 5,7 bilhões
inicialmente pretendidos pelos parlamentares, mas nenhum critério razoável
justifica o valor afinal aprovado.
O presidente Bolsonaro conseguiu R$ 1,7
bilhão para o reajuste salarial de policiais federais, um evidente esforço para
agradar a uma corporação considerada importante para seus planos pessoais. Essa
iniciativa facilita a reivindicação de benefício semelhante por outros
servidores.
Se as corporações tiverem sucesso, a gestão
das finanças públicas ficará bem mais difícil, num cenário de fortes tensões
políticas, inflação alta e baixas expectativas de crescimento. Também o aumento
de gastos com a versão bolsonariana do Bolsa Família, o Auxílio Brasil, tem evidente
motivação eleitoral, pois a mudança foi concebida para produzir efeitos em
2022.
Apenas R$ 44 bilhões, o menor valor desde
2010, descontada a inflação, e um dos menores já contabilizados, estão
previstos para investimentos em transportes, energia, saneamento, serviços de
saúde, educação, ciência e tecnologia. Baixos investimentos limitam a atividade
no curto prazo e ameaçam o potencial de crescimento em prazos mais longos.
Com pouco investimento próprio, o setor
público torna-se mais dependente do capital privado para a construção e a
manutenção da infraestrutura. É desejável a participação privada nessa área,
mas a atração desse capital depende das perspectivas do País. Essas
perspectivas são hoje em grande parte determinadas pela apropriação do
Orçamento – dinheiro público posto a serviço de interesses privados em vez de
dinheiro privado a serviço de objetivos públicos.
Uma democracia cada vez menos democrática
O Estado de S. Paulo.
Quanto mais cresce o financiamento público
aos partidos, mais aumenta a sua distância em relação aos cidadãos
“A democracia tem um custo”, repetem os
apologistas do financiamento público aos partidos. E ele só aumenta. O volume
aprovado para 2022 não tem precedentes. O paradoxo é que quanto maior é o tal
custo da democracia, pior é a sua qualidade – quanto mais recursos os partidos
tomam aos cidadãos, mais aumenta a distância entre eles. Segundo o Datafolha, a
atual legislatura quebrou um recorde de rejeição: apenas 10% dos entrevistados
aprovam a atuação do Congresso.
Entre 1995 e 2018, os gastos anuais do
Fundo Partidário saltaram 9.766%. O Fundo Eleitoral, criado em 2017 após o STF
declarar inconstitucionais as doações por empresas, deveria ser transitório,
até que os partidos reorganizassem seu financiamento. Mas ele só cresceu: de R$
1,7 bilhão para quase R$ 5 bilhões. Em 2022, a soma dos Fundos Partidário e
Eleitoral será de R$ 5,96 bilhões – 92,5% maior do que no último ano de
eleições federais, 2018. Nesse período, nada houve que justificasse tal
escalada. Ao contrário, houve uma pandemia que despejou milhões de brasileiros
na miséria.
Enquanto o financiamento aos partidos
cresce, o retorno à sociedade encolhe. Em 2022, os investimentos federais – em
infraestrutura, escolas, postos de saúde, defesa, pavimentação, pesquisa –, que
há dez anos chegaram a R$ 201 bilhões, serão de R$ 44 bilhões, o menor valor da
história. Os partidos receberão mais do que os investimentos para Saúde (R$ 4,7
bilhões) ou Educação (R$ 3,7 bilhões), e quase seis vezes mais do que o
saneamento básico.
Os partidos fabricaram para si um modelo
extrativista em que sorvem bilhões dos contribuintes sem precisar cultivar
apoiadores. É difícil imaginar um mecanismo mais bem talhado para produzir uma
crise de representatividade permanente e crescente.
A subvenção é injusta, porque obriga o
cidadão a sustentar legendas com as quais não raro antagoniza, e corrosiva,
porque os políticos se habituam a aliciar eleitores nas eleições e depois lhes
dão as costas para administrar seus feudos controlados por poucos caciques que,
por sua vez, não são pressionados a prestar contas nem por seus filiados nem
pelo Poder Público.
Segundo a Transparência Partidária, nos
últimos dez anos o porcentual de mudança da composição das Executivas Nacionais
foi de meros 24%. Entre 2018 e 2020, os partidos perderam 1 milhão de filiados.
Dos que restam, apenas 0,1% faz contribuições frequentes e 8 em 10
contribuintes se concentram em duas legendas: PT e Novo.
Desde a redemocratização, o número de
partidos só cresceu. Hoje são mais de 30 e cerca de 80 estão no forno. Não é a
pluralidade ideológica que explica essa proliferação, e sim as oportunidades de
negócios.
Nutrindo-se do Estado como parasitas,
fechados em si, dispensados de cativar corações e mentes para seus programas de
governo, os partidos não levam a sério a formulação desses programas. A maioria
forma apenas um conglomerado de interesses clientelistas, patrimonialistas e
corporativistas voltado a formar alianças, não pragmáticas e ideológicas, mas
de conveniência, em geral para angariar sinecuras do governo de turno e
satisfazer demandas paroquiais.
A política nacional está presa num círculo
vicioso. A Constituição favoreceu a valorização dos direitos coletivos em
detrimento dos direitos e deveres individuais. Os cidadãos atribuem enorme peso
ao Estado como provedor de suas necessidades. Mas a distância que os separa de
seus representantes é cada vez maior. A política é cada vez mais vista como uma
atividade de oportunistas e corruptos. Nas eleições, ideias e programas são
substituídos pelo marketing, e os eleitores oscilam entre a apatia e salvacionismos
autoritários.
O fim do financiamento aos partidos seria
só um expediente entre outros – como a substituição do sistema eleitoral
proporcional pelo distrital ou cláusulas de barreira mais rigorosas – para
moralizar e qualificar a representação democrática. Mas já seria um primeiro
passo para reduzir o abismo entre a política e a sociedade civil e obrigar os
eleitos a pôr os pés no chão rude e áspero que seus eleitores pisam todos os
dias.
Orçamento privilegia policiais e militares
e corta investimentos
Valor Econômico
Militares tem o maior investimento e a PF o
único reajuste de salários do funcionalismo
O orçamento do último ano de governo de
Jair Bolsonaro é eleitoreiro e regressivo. Os passos dados para formatá-lo já
indicavam isso: adiamento de despesas com precatórios para abrir espaços a mais
despesas e mudança antecipada na forma de calcular o teto de gastos, com a
mesma finalidade. Ao terceirizar a coordenação política para o Centrão,
Bolsonaro também entregou-lhes a peça orçamentária, com o péssimo resultado
para o país que anteontem se tornou claro.
Alguns dos resultados: o fundo eleitoral
foi mais que duplicado em relação às eleições de 2020 (de R$ 2,1 bilhões para
R$ 4,9 bilhões) e quase triplicado em comparação com o pleito de 2018 (R$ 1,7
bilhão), para financiar campanhas que vários estudos mostram já se tratarem das
mais caras do mundo. Ausente como sempre de qualquer discussão que envolva
interesse público, Bolsonaro fez uma única exigência: a concessão de reajuste
salarial, absolutamente inoportuno, para a Polícia Federal, a Polícia
Rodoviária Federal e o Departamento Penitenciário Nacional.
Os policiais federais estão entre as
categorias mais bem remuneradas do serviço público. Um agente recebe entre R$
12,5 mil e R$ 18,6 mil e um delegado, entre R$ 23,6 mil e R$ 30,9 mil (Folha de
S. Paulo, 13-12). A intenção de Bolsonaro é igualar o salário dos delegados aos
do Supremo Tribunal Federal, no teto da remuneração do funcionalismo (RS 39,2
mil).
O presidente se comporta como quando era um
deputado inexpressivo do baixo clero, defendendo sempre as corporações militares.
Além de cativar a PF, que tenta aparelhar, Bolsonaro não disse uma palavra
sobre o orçamento ter o menor nível de investimentos em duas décadas.
Assegurou, no entanto, com o auxílio do ministro Paulo Guedes, aportes maiores
que dos demais ministérios para o Ministério da Defesa. As prioridades dizem
tudo sobre o presidente e o que foi e é seu governo.
Bolsonaro parece administrar mais os
quartéis que a República. Ao reservar à Defesa o maior investimento do
orçamento, o governo alocou para a compra de caças e aeronaves R$ 1,2 bilhão,
mais do que o dobro dos R$ 504 milhões reservados para a Defesa Civil, que
abrange despesas com enchentes e outras calamidades públicas, além de obras
para minorá-las. Mais ainda, as verbas de investimento dos militares são
maiores do que as para a Educação e a Saúde, o que faz sentido para um
governante que arruína a primeira e despreza, com sua ignorância arrogante a
segunda, em meio a uma pandemia mortífera.
Acuado pelas instituições e pela perda
constante de popularidade, o orçamento de 2022 é a última tentativa de
restaurar a capacidade de competição do presidente nas urnas. O principal pilar
da investida foi o Auxílio Brasil, que, com pagamentos de R$ 400 mensais até
pouco depois das eleições, distribuirá mais que o dobro de recursos que seu
antecessor, o Bolsa Família.
Sem dinheiro para isso, depois que o Senado
ignorou um remendo oportunista e mal formulado de reforma tributária que lhe
serviria de fonte, o ministro Paulo Guedes furou antecipadamente o teto de gastos
e ultimou um calote nos precatórios, realizando, com o apoio do Centrão, a
proeza de colocar na Constituição o desrespeito a sentenças do Judiciário. As
duas manobras abriram espaço para gastos de R$ 113 bilhões, segundo o relator
do orçamento, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), e até R$ 116 bilhões, de acordo com
estimativas da IFI do Senado.
Bolsonaro não obteria esse dinheiro sem
reparti-lo com os partidos do Centrão, cujo apoio em momento crítico obteve por
meio das emendas secretas do relator, já durante a ascensão de Arthur Lira à
presidência da Câmara e ao desembarque do líder do PP, Ciro Nogueira (PI), na
Casa Civil. Se de maneira geral falta dinheiro, o Legislativo não tem do que se
queixar. Emendas individuais, de bancadas e do relator (R$ 16,5 bilhões) somam
R$ 37,6 bilhões, cifra que encosta no horrível orçamento de investimentos se
forem somados o fundo partidário e o eleitoral turbinado.
O Centrão arrancou do Executivo a determinação da prioridade de execução dos recursos impositivos. Em modo eleitoral, como o presidente, apoderaram-se das verbas disponíveis para aplicar em seus redutos eleitorais - não houve corte de um tostão nelas que, ao contrário, aumentaram, enquanto houve rejeição à suplementação de verbas para vacinas e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil ficou sem nenhum tostão. São os frutos da aliança entre um presidente extremista e uma base de apoio mercenária.
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