Folha de S. Paulo
Desde já a vitória de Boric mostra que
outra esquerda é possível
O discurso de Gabriel Boric,
tão logo as urnas o transformaram no 66º presidente do Chile, é bem mais do que
uma bela peça de retórica política. Traz um cardápio completo e coerente de
compromissos de uma esquerda sintonizada com o mundo. Além disso, é inédito por
estas bandas, dada a forma como une, em pé de igualdade, a defesa do ambiente,
o reconhecimento de direitos de grupos identitários e a promessa de políticas
de proteção social que desde sempre caracterizaram a social-democracia.
Aos 35 anos, o jovem presidente eleito foi bem claro ao falar de um Chile verde frente às ameaças trazidas pela crise climática; do papel político das mulheres e de seu direito ao próprio corpo; do combate à violência e à discriminação contra minorias; do apreço pela riqueza cultural dos povos originários, do compromisso com a garantia dos direitos humanos; e da importância da segurança cidadã e da luta contra o narcotráfico.
Apontou na direção de uma mudança
estrutural assentada em crescimento e na reforma das políticas sociais
universais que alicerçam qualquer sistema de bem-estar que mereça esse nome
—saúde e educação públicas, sistema universal e equitativo de aposentadorias.
Cravou o compromisso com a responsabilidade fiscal, sem o que, bem sabem os brasileiros,
os avanços se desfazem ao primeiro abalo da economia.
Afirmou ainda a convicção de que, na
democracia representativa, os eleitos não podem deixar de "governar com os
pés na rua" e dialogar com a sociedade organizada. Finalmente,
reconhecendo que o porte da transformação proposta requer convergência
política, se declarou pronto a interagir com seus adversários.
"Se a campanha [eleitoral] deve ser
sempre em poesia, o governo é inevitavelmente em prosa", observou o
analista político chileno Patricio Navia, antecipando as dificuldades que Boric enfrentará para
traduzir suas ideias em iniciativas concretas. Começando por conseguir que o
pulverizado sistema de partidos de seu país assegure ao governo maiorias
estáveis de modo a fazer da energia social que nos últimos anos tomou as
alamedas de Santiago uma força transformadora das instituições, sob regras
democráticas.
Mas desde já a vitória de Boric mostra que
outra esquerda é possível: comprometida com a justiça climática, o respeito aos
direitos de todos, a começar dos diferentes, com políticas sociais
redistributivas ancoradas na moderação fiscal, com a busca de consensos e a
consideração pelas posições políticas alheias.
Entro em férias por duas semanas, esperando
que os ventos da renovação soprem também aqui em 2022.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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