quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Maria Hermínia Tavares*: No Chile, novos ventos à esquerda

Folha de S. Paulo

Desde já a vitória de Boric mostra que outra esquerda é possível

O discurso de Gabriel Boric, tão logo as urnas o transformaram no 66º presidente do Chile, é bem mais do que uma bela peça de retórica política. Traz um cardápio completo e coerente de compromissos de uma esquerda sintonizada com o mundo. Além disso, é inédito por estas bandas, dada a forma como une, em pé de igualdade, a defesa do ambiente, o reconhecimento de direitos de grupos identitários e a promessa de políticas de proteção social que desde sempre caracterizaram a social-democracia.

Aos 35 anos, o jovem presidente eleito foi bem claro ao falar de um Chile verde frente às ameaças trazidas pela crise climática; do papel político das mulheres e de seu direito ao próprio corpo; do combate à violência e à discriminação contra minorias; do apreço pela riqueza cultural dos povos originários, do compromisso com a garantia dos direitos humanos; e da importância da segurança cidadã e da luta contra o narcotráfico.

Apontou na direção de uma mudança estrutural assentada em crescimento e na reforma das políticas sociais universais que alicerçam qualquer sistema de bem-estar que mereça esse nome —saúde e educação públicas, sistema universal e equitativo de aposentadorias. Cravou o compromisso com a responsabilidade fiscal, sem o que, bem sabem os brasileiros, os avanços se desfazem ao primeiro abalo da economia.

Afirmou ainda a convicção de que, na democracia representativa, os eleitos não podem deixar de "governar com os pés na rua" e dialogar com a sociedade organizada. Finalmente, reconhecendo que o porte da transformação proposta requer convergência política, se declarou pronto a interagir com seus adversários.

"Se a campanha [eleitoral] deve ser sempre em poesia, o governo é inevitavelmente em prosa", observou o analista político chileno Patricio Navia, antecipando as dificuldades que Boric enfrentará para traduzir suas ideias em iniciativas concretas. Começando por conseguir que o pulverizado sistema de partidos de seu país assegure ao governo maiorias estáveis de modo a fazer da energia social que nos últimos anos tomou as alamedas de Santiago uma força transformadora das instituições, sob regras democráticas.

Mas desde já a vitória de Boric mostra que outra esquerda é possível: comprometida com a justiça climática, o respeito aos direitos de todos, a começar dos diferentes, com políticas sociais redistributivas ancoradas na moderação fiscal, com a busca de consensos e a consideração pelas posições políticas alheias.

Entro em férias por duas semanas, esperando que os ventos da renovação soprem também aqui em 2022.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

 

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