segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Fernando Gabeira: Vírus, chuva e calor

O Globo

Gostaria de abordar as chuvas de forma poética, como Elizabeth Bishop em sua “Canção do tempo das chuvas”. Mas agora elas assumem um aspecto dramático, matando e destruindo.

Joe Biden, visitando o Kentucky, associou o tornado que devastou a região e as chuvas no Brasil às mudanças climáticas.

Sinto que há algo parecido, mas ainda esbarro num monte de dúvidas. Sei que as chuvas estão sendo provocadas por um sistema meteorológico chamado Zona de Convergência do Atlântico Sul. É uma grande extensão de nuvens movidas por um coquetel de ventos: do Sudeste, Nordeste e até das altitudes bolivianas.

Essas chuvas são influenciadas por La Niña, um fenômeno, assim como El Niño, que acontece no mar.

Desde quando li as intervenções dos cientistas numa conferência sobre o clima, aprendi que o aquecimento global seria irreversível quando houvesse mudanças nas famosas correntes marinhas. Não tenho condição de afirmar que a velha La Niña tenha se alterado por influência de correntes. Sei que, assim como El Niño, quando traz chuvas numa região do Brasil, leva seca para outras.

No momento, chove no Sudeste, e há escassez de chuvas no Sul do Brasil.

Além da destruição dos corais, do derretimento das geleiras, da poluição humana, há coisas acontecendo nos mares. Cientistas descobriram que a velocidade das correntes tem aumentado, ainda não sabem precisamente as consequências disso.

As correntes são um dos principais fatores que determinam o clima. Breve, saberemos medir seu papel preciso nesses eventos extremos.

Vem aí para a América do Sul uma onda de calor que deverá atingir os 50 graus. Sem chuvas, o Rio Grande do Sul será o principal ponto do país a sentir essa alta temperatura, assim como o Uruguai e parte da Argentina.

Quando se ouvem os especialistas, La Niña é a suspeita de sempre. Falta-nos ainda uma visão do que está se passando nos oceanos.

A esta altura dos acontecimentos, nem tudo pode ser evitado. Mas saber sempre ajuda. Assim como saber nos ajuda a combater o vírus da Covid-19.

O governo Bolsonaro não consegue ou não quer mais fornecer dados sobre a incidência da variante Ômicron. Tendemos para cifras gigantescas de contaminados.

Bolsonaro acha que as notícias assustam as pessoas e acusa os jornalistas de espalhar o medo. Governado por um negacionista, o Brasil é hoje um território assolado pelo vírus, inundado por chuvas violentas e castigado por uma intensa onda de calor.

E aqui é o Novo Mundo, onde deveria fervilhar o debate, multiplicar o número de pesquisas, enfim, florescer um polo planetário de conhecimento.

Sempre que passo na região, visito o Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira, em Arraial do Cabo, Região dos Lagos, no Estado do Rio, onde há um interessante fenômeno: a ressurgência; as correntes marinhas mais frias e profundas ascendem e facilitam a pesca.

O ideal seria usar o instituto para estudos mais amplos sobre as correntes marinhas. Há pouco dinheiro, mas, com todo o respeito, conhecer os segredos do mar num tempo de aquecimento global é mais importante que a simples preparação para a guerra.

Assim como a Covid-19, as mudanças climáticas têm pouco apelo eleitoral. Mesmo que o tema não entusiasme o próximo governo, uma cooperação horizontal com várias instituições do mundo pode trazer essa efervescência intelectual ao Brasil.

Quatro anos de combates contra o terraplanismo em todos os campos não devem exaurir nossos cientistas; ao contrário, deveriam acentuar o desejo por conhecimento e recuperar o tempo perdido.

O grande número de estudiosos que perdemos não significa algo permanente. Alguns podem voltar.

Tempos sombrios sempre trazem períodos de luz. Não há uma relação mecânica entre uns e outros. Apenas possibilidades que parecem nos dizer: pegar ou largar

 

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