segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Cerco aos não vacinados se fecha em todo o mundo

O Globo

À medida que a variante Ômicron se espalha, produzindo recordes de infecções, aumenta o cerco de governos e autoridades sanitárias aos não vacinados. Graças aos benefícios trazidos pelas vacinas, que reduzem hospitalizações e mortes, as estratégias para prevenir a Covid-19 passaram a dar mais ênfase à imunização que a medidas de restrição ao comércio e serviços. Em todo o planeta, a recomendação para vencer o vírus tem sido clara: vacinar, vacinar e vacinar.

Como ficam os não vacinados e defensores das campanhas antivacina? Com espaço cada vez mais reduzido. Se os negacionistas, alegando defender uma pretensa liberdade individual, podem ter direito a não comparecer aos postos, então as autoridades têm o dever de barrá-los em locais de grande frequência em nome da saúde coletiva. Assim tem sido. Os passaportes sanitários para comprovar a vacinação se tornaram fundamentais para aumentar a segurança em lugares de grande afluxo.

Em que pese o caráter midiático da decisão, o veto do governo da Austrália à entrada do tenista Novak Djokovic, número um do ranking, por não apresentar o passaporte de vacinação, pôs a questão na ordem do dia. Negacionista conhecido, ele alegou que tinha autorização de exceção dada pelos organizadores e obteve uma liminar da Justiça para participar do Aberto da Austrália, depois revogada em instância superior. Djokovic foi deportado ontem do país e se tornou um pária no esporte.

A tolerância das autoridades com não vacinados está cada vez menor. O presidente da França, Emmanuel Macron, foi explícito com os negacionistas: “Para os não vacinados, quero muito enchê-los. E vamos continuar fazendo isso até o fim. Essa é a estratégia”. Não está sozinho. O Parlamento francês aprovou no início do mês uma lei determinando a apresentação do comprovante de vacinação em bares, restaurantes, academias. Na Itália, o passaporte de vacina é exigido até no transporte público. A província de Québec, no Canadá, optou por um choque heterodoxo. O governo proibiu a venda de maconha e álcool a não vacinados. Discute a criação de uma taxa para os negacionistas. “Eles representam um fardo financeiro para todos os quebequenses”, disse François Legault, premiê de Québec.

Claro que essa é uma questão que passa longe do consenso. Nos EUA, a Suprema Corte derrubou decisão do presidente Joe Biden que determinava a obrigatoriedade de vacinação para funcionários de empresas privadas. Mesmo assim, várias deverão manter a exigência. Considerando que a convivência com a Covid-19 deverá ser longa, o passaporte sanitário se impõe como medida de segurança no mundo todo, protegendo os indivíduos e permitindo o funcionamento das atividades.

No Brasil, a exigência do passaporte, adotado na maioria das capitais, também gera discussões acaloradas com os arautos do atraso — à frente dos quais, o presidente Jair Bolsonaro, um de seus maiores críticos. Mas trata-se de tendência inexorável. O próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse na quinta-feira que a maioria dos internados com Covid-19 não tomou a vacina. Daqui para a frente, mostrar o certificado digital de vacinação será tarefa tão corriqueira quanto passar o cartão de crédito ou digitar RG ou CPF nos lugares que os exigem. Aos não vacinados, restará queixar-se ao Papa, que, por sinal, também defende a vacina.

Instituições têm papel central para dissipar crise de confiança no Brasil

O Globo

No mundo, a fração dos que confiam nos outros caiu de 38% nos anos 1980 para 26% na década passada. Na América Latina, segundo o estudo “Trust” (Confiança), lançado na última semana pelo Banco Interamericano de Desenvovimento (BID), “o declínio foi ainda mais dramático”: de 22% para 11%. E, zero surpresa, o país com o menor nível de confiança no continente é o Brasil: 4,7%. Só um em 20 brasileiros confia no semelhante. “Quando a confiança está ausente das interações, a sociedade e todos os seus membros sofrem: a política é instável, a qualidade do serviço público se deteriora, o crescimento econômico diminui, a equidade social se esvai, e o bem-estar individual declina”, afirmam os autores. “O comportamento oportunista vira ameaça persistente.”

O estudo é feliz ao interpretar as consequências econômicas da desconfiança e do oportunismo. Empresas e cidadãos optam pela informalidade em vez de cumprir seus deveres legais. A falta de confiança afeta todas as decisões que impulsionam a economia e podem reduzir a desigualdade: investir, produzir, comprar e vender. Há mais gastos privados em funções que são vocação do governo, como segurança, saúde ou educação. Tudo isso derruba a produtividade e reduz o crescimento.

Quando um não confia no outro, também não existe união na sociedade para cobrar ações do governo. Há mais receio em fechar transações comerciais, maior sonegação de impostos, maior demanda por regulações para disciplinar as interações no mercado. “Cidadãos têm maior chance de pedir ao governo benefícios pessoais imediatos na forma de subsídios e transferências, em vez de exigir investimentos mais eficientes e eficazes em bens públicos.” Não poderia haver retrato mais preciso da mentalidade brasileira.

Os autores ilustram a questão com o exemplo do transporte público em Minas Gerais. Sem confiança no governo para garantir a qualidade do serviço, mesmo a população de baixa renda tem receio em usar ônibus, por medo de assaltos ou assédio sexual. “Os municípios em que se reluta mais em usar o transporte público pela preocupação com a segurança são aqueles em que a confiança nas instituições também é mais baixa.” O resultado é uma ineficiência econômica brutal.

Entre as causas apontadas para a desconfiança, uma tem papel fundamental se quisermos combatê-la: as instituições. O oportunismo, tanto na esfera pública quanto na privada, deriva da percepção de que ninguém é penalizado pelas próprias ações (assim como a corrupção resulta da impunidade). “As instituições têm um papel-chave para ajudar cidadãos a responsabilizar o governo. Judiciários e legislaturas podem impor freios ao comportamento que limitem as ações oportunistas”, afirmam os autores. Na América Latina e no Brasil, porém, tem acontecido o oposto. As instituições, “em vez de aumentarem a confiança no governo, se tornaram parte da crise de confiança”. O amadurecimento institucional é uma batalha em que não podemos esmorecer.

A resiliência da democracia

O Estado de S. Paulo.

Nada indica que os brasileiros não estejam dispostos a proteger o regime democrático de ataques cada vez mais audaciosos

O País chega ao último ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro exaurido após tantos desmandos, tanta incompetência e tantas manifestações de descaso pelas aflições de milhões de brasileiros. No meio dessa travessia acidentada, a eclosão da pandemia de covid-19, que no Brasil matou mais de 620 mil pessoas, lançou luzes ainda mais fortes sobre as flagrantes deficiências administrativas e de caráter do atual mandatário.

A história da República não registra um presidente que tenha rebaixado tanto a instituição que representa. Sob Jair Bolsonaro, o deboche, a mentira, a violência e o linguajar chulo, entre outras descargas de falta de decoro, foram convertidos em instrumentos de governo, vendidos aos incautos e aos convertidos como traços da “simplicidade” ou da “autenticidade” do presidente.

De seu gabinete no Palácio do Planalto, das praias do exuberante litoral brasileiro ou da beira de estradas País afora, Bolsonaro tem trabalhado duro para erodir os pilares do Estado Democrático de Direito e semear a desconfiança entre os cidadãos e entre estes e as instituições democráticas. Seu governo não tem medido esforços para esgarçar ainda mais o tecido social e dividir os brasileiros em falanges. Nunca o grau de confiança dos cidadãos, entre si e em relação ao governo, foi tão baixo, como apontou um recente estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Diante desse cenário de aparente terra arrasada, é compreensível, pois, a falta de confiança de muitas pessoas na capacidade do País de parar, refletir e traçar novas rotas para sair dessa crise de múltiplas dimensões da qual parece ser um prisioneiro. Mas, por incrível que pareça, há razões para otimismo, ainda que cauteloso e vigilante. Há dados objetivos para acreditar que a sociedade será capaz, se quiser, de virar uma das páginas mais sombrias da história nacional.

Nos últimos três anos, a democracia brasileira foi submetida ao maior teste de estresse desde 1985, quando a liberdade foi reconquistada após longos 21 anos de ditadura militar. Nenhum presidente da República desde a redemocratização pregou e atuou com tanto afinco como Bolsonaro para desacreditar o valor do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso, dos partidos políticos, da imprensa livre e profissional, da educação, da ciência e da cultura como elementos essenciais para a construção de um país livre, justo e desenvolvido.

Não obstante as agressões, há vibrantes sinais de resistência que demonstraram a resiliência do regime democrático no Brasil, ora sob ataque. No STF, no Congresso e nas organizações da sociedade civil não foram poucas as ações que se contrapuseram às investidas liberticidas de Bolsonaro e seus esbirros espalhados por diferentes órgãos do governo e fora dele.

No curso da pandemia, foi notável a reação ao negacionismo mortal do presidente empreendida pelo STF, pelo Congresso, pelos entes da Federação e, principalmente, pelos cidadãos. Não é exagero dizer que todas essas instituições reagiram como reagiram porque souberam aferir o pulso dos cidadãos, majoritariamente contrários à “gestão” federal da emergência sanitária.

A agenda reacionária encampada por Bolsonaro, que lhe serviu para angariar votos na campanha eleitoral, teve pouco espaço para avançar na atual legislatura. Bolsonaro é o presidente que menos conseguiu aprovar projetos de sua iniciativa, mesmo sendo o recordista em pagamento de emendas parlamentares. Com todos os seus erros e acertos, o Congresso está em pleno funcionamento. Sinal mais vigoroso de resistência democrática não há.

Graças à imprensa livre e profissional, a sociedade tomou conhecimento de escândalos que rondam o presidente e pessoas de seu entorno, como as “rachadinhas”, o “orçamento secreto” e as interferências ilegais em órgãos da administração pública e instituições de Estado.

Como já foi dito nesta página, a democracia não se sustenta por si só, apenas pela força de suas virtudes. É preciso batalhar por ela. E diante de tudo o que o País viveu nesses três últimos anos, nada indica que os brasileiros não estejam dispostos a protegê-la de ataques cada vez mais audaciosos.

A importância das agências independentes

O Estado de S. Paulo.

A Anvisa tem sido fundamental na pandemia. Tivesse prevalecido a visão do PT sobre o funcionamento estatal, a saúde do País estaria hoje à mercê de Bolsonaro

De maneira incontestável, a pandemia tem evidenciado a importância das agências reguladoras, em especial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Sem uma instância técnica independente na área da saúde pública, tendo que depender das disposições do presidente Jair Bolsonaro, talvez o País tivesse começado o ano de 2022 sem dispor ainda de nenhuma vacina contra a covid-19 aprovada. Certamente, sem uma Anvisa independente, não teria sido aprovado nenhum imunizante para crianças e adolescentes.

A independência das agências reguladoras é um importante limite para o exercício arbitrário do poder, tanto por parte do Executivo como também do Legislativo. Mais de uma vez, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a inconstitucionalidade de leis que autorizavam o uso de substâncias para fins médicos, sob o argumento de que o Congresso não dispõe de competência técnica para realizar tais liberações e, portanto, ao atuar assim colocava em risco a saúde da população. No ano passado, por exemplo, o Supremo declarou inconstitucional a Lei 13.269/2016, que tinha autorizado a distribuição, sem o devido registro sanitário, da fosfoetanolamina, conhecida como a “pílula do câncer”.

Ao mostrar de forma tão contundente a importância das agências reguladoras, o atual cenário confirma não apenas a inaptidão de Jair Bolsonaro para o cargo que ocupa. Sem poder interferir na Anvisa, o presidente da República optou por disseminar dúvidas, sem nenhum fundamento, sobre a honestidade dos funcionários e diretores da autarquia. As circunstâncias atuais relembram também a profunda incompreensão do PT sobre o papel das agências reguladoras.

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o partido de Lula fez ferrenha oposição no Congresso contra as propostas para a criação das agências e para sua independência. O lulopetismo, que nunca foi um especial defensor da necessidade de esferas de competência dentro da estrutura estatal, enxergava nas agências uma indevida limitação do poder político.

Nos governos petistas, as agências reguladoras foram relegadas e desprezadas. Houve vários atrasos, tanto no repasse de verbas como nas indicações de pessoas para as diretorias, que dificultaram o bom funcionamento dessas autarquias. O desfalque nos órgãos dirigentes tornou-se fato habitual. No governo de Dilma Rousseff, teve cargo desocupado por mais de três anos.

O desleixo lulopetista foi de tal ordem que uma Proposta de Emenda Constitucional (a PEC 57/2015) foi apresentada no Senado com o objetivo de fixar prazos para o presidente da República indicar, entre outros cargos, diretores das agências reguladoras e de tornar crime de responsabilidade o seu descumprimento. A PEC 57/2015 acabou não indo adiante, mas a desídia do PT com as agências reguladoras entrou para a história.

Eis aqui, portanto, mais um tema a merecer a retratação de Lula e de seu partido. Há vacinas contra a covid aprovadas no País, assim como outras decisões que talvez desagradem ao Palácio do Planalto, porque o governo de Fernando Henrique Cardoso dedicou os necessários esforços de estudo, planejamento e articulação política para a aprovação pelo Congresso das agências reguladoras; entre elas, a Anvisa. Tivesse prevalecido a visão do PT sobre o funcionamento estatal, a saúde do País estaria hoje à mercê de Jair Bolsonaro.

O papel fundamental da Anvisa no enfrentamento da pandemia remete diretamente à importância das reformas estruturantes. Muitas vezes, marcos jurídicos adequados produzirão efeitos decisivos muitos anos depois. Não são empreitadas de curto prazo. Quem diria que a conversão em lei de uma medida provisória (a MP 1.791/1998), em janeiro de 1999, seria fundamental para que a população pudesse dispor de vacinas contra uma doença que paralisaria o mundo mais de 20 anos depois? A Lei 9.782/99, que criou a Anvisa, é o resultado desse trabalho em conjunto do Executivo e Legislativo.

Lula e Bolsonaro ainda não entenderam, mas a responsabilidade produz frutos.

Salto sobre navalha

Folha de S. Paulo

Opacidade adotada por Lula acerca da economia é compreensível, mas irresponsável ante a crise atual

Se o pleito de 2018 foi marcado pela negação da política organizada, particularmente aquela associada aos anos do PT no poder, este 2022 promete um cardápio mais convencional de anseios do brasileiro.

Claro, as versões tropicalizadas de guerras culturais americanas estarão presentes, mas a deterioração da situação econômica do país tende a dominar as preocupações do eleitorado.

Assim, é mais do que natural que os olhos se voltem para o líder inconteste das pesquisas eleitorais a esta altura, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O petista tem um histórico ambíguo. Boa parte de seus oito anos de governo foi dedicada à manutenção e aperfeiçoamento de responsabilidade fiscal que marcou o fim da era FHC no Planalto.

Já políticas do fim de sua gestão, amplificadas ao paroxismo nos governos subsequentes de Dilma Rousseff (PT), geraram recessão e desestabilização sentidas até hoje.

De forma politicamente compreensível, Lula aposta na opacidade acerca do que pensa sobre o tema. O cálculo esbarra no cinismo: se defender ortodoxia a ponto de melhorar o ambiente nos mercados, poderá beneficiar Bolsonaro.

Por outro lado, por erro ou coisa pior, tem rejeitado a reedição simbólica de uma Carta ao Povo Brasileiro, documento de 2002 no qual beijava a cruz da Faria Lima.

Há um pouco de tudo nisso, a começar pelo salto alto que contamina o petismo. Mas deixar Guido Mantega, o arauto do apocalipse para a finança, escrever um texto nesta Folha sobre o pensamento econômico do PT pode até ter sido um aceno à base à esquerda do partido, mas um fragoroso tiro no pé.

Tanto o foi que o próprio Lula pediu adendo ao texto o descaracterizando como peça da campanha. Emenda pior que o soneto.

O debate em torno da revogação da reforma trabalhista do governo Michel Temer é de outra natureza. O PT sempre foi contra o pacote, mas a fala mais incendiária da presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, foi substituída por termos um pouco mais suaves. Novamente, o público sai com sensação de embuste.

A concorrência, ainda atordoada com o patamar de Lula nas pesquisas, já sentiu o sangue na água. O tucano João Doria escalou seu robusto time de economistas para rebater diretamente as críticas do PT ao teto de gastos e à dita reforma.

Cedo ou não, pelo bem da transparência de um debate que de fato importa ao país, mais clareza de Lula sobre a grave crise atual seria um gesto de responsabilidade.

Não só para parar de desfilar o salto sobre o fio da navalha, dado que essa incerteza tende a agravar o cenário. Caso seja eleito, supõe-se que Lula desejará governar sobre algo mais do que ruínas.

Impasse perigoso

Folha de S. Paulo

Disputa entre a Rússia e o Ocidente entra em fase nebulosa, e cresce o risco de um conflito na Ucrânia

Após uma semana de excruciantes negociações, em três diferentes reuniões, Rússia e o Ocidente não se entenderam acerca da crise que fermenta na Ucrânia.

É possível argumentar que este era o objetivo inicial de Vladimir Putin: obrigar os Estados Unidos e seus aliados na aliança militar Otan a sentarem à mesa, respeitando o russo de igual para igual.

Mas isso parece pouco, dada a gravidade da situação de segurança no Leste Europeu, com a volta à tona do conflito iniciado em 2014.

Naquele ano, como já fizera em 2008 na Geórgia, Putin reagiu à ascensão de um governo pró-Ocidente em suas fronteiras "manu militari". Anexou a Crimeia e disparou uma guerra civil que tornou o leste do país vizinho um protetorado de rebeldes pró-Rússia.

Agora, com mais de 100 mil soldados perto da fronteira, Putin força negociações. Ele até colocou seus termos no papel, que refletem sua obsessão geopolítica de restaurar os tampões que o separam de adversários potenciais, como nos tempos da União Soviética.

O Ocidente, claro, não aceitou ter de recuar tropas de países ex-comunistas ou prometer nunca mais expandir o escopo da Otan. O impasse, assim, está colocado.

Putin é conhecido por nunca antecipar movimentos, mas a nebulosidade à frente é perigosa. Ele pode ou não antever uma guerra, que teria custo altíssimo, humano e econômico, além de arriscar uma confrontação com o Ocidente.

Por outro lado, dificilmente Washington toparia o risco de um conflito nuclear para defender Kiev. A falta de musculatura militar e política de seus aliados europeus poderá servir a Ucrânia de bandeja a Putin, já que ele pode estar disposto a pagar o preço de novas sanções.

Ou então o russo está só blefando, contando que toda a pressão leve o frágil governo ucraniano a capitular ante seus desígnios em novas negociações e, na prática, fique impossibilitado de aderir ao arcabouço de segurança ocidental.

De quebra, ainda pode haver avanços em assuntos laterais colocados nas reuniões da semana passada, como o controle de mísseis na Europa e mecanismos de acompanhamento de manobras militares mais acurados.

Em qualquer cenário, Putin poderá cantar vitória em casa. Mas a incerteza que o impasse reflete, explicitada nos avisos americanos sobre uma invasão iminente, mostra que a ilusão de paz advinda do ocaso soviético era apenas isso.

China avança e país segue sem ampliar vantagens estratégicas

Valor Econômico

A alta das vendas externas do país desde o período pré-pandemia foi quase toda direcionada à China. A participação dos chineses nos valores subiu de 28,7% em 2019 para 31,3% no ano passado

Em janeiro de 2008, o economista Antônio Barros de Castro, falecido em 2011, apresentou à cúpula do então governo Lula parte de suas reflexões sobre o fenômeno chinês e seus impactos no mundo e no Brasil. Especialista no tema, o professor, que presidiu o BNDES no governo Itamar Franco (92-94), mostrou que a China estava protagonizando o deslocamento do centro de gravidade da economia global, como fizeram os EUA no início do século XX.

Naquele momento, o Brasil se beneficiava à farta do "boom" de commodities provocado, justamente, pela China. Fabricantes massivos de produtos industriais destinados ao mercado externo, os chineses têm carência em duas áreas: alimentos, para nutrir população de quase 1,5 bilhão de pessoas, e energia.

Diante do novo deslocamento da ordem econômica mundial, a economia brasileira, ao contrário de muitas outras, pode se beneficiar graças à sua complementaridade com a chinesa. Ainda assim, advertiu Barros de Castro no pequeno estudo intitulado "No Espelho da China", o país não deveria deitar-se em "berço esplêndido" e esperar que apenas os bons ventos nos ajudem a materializar "profecias" favoráveis.

O professor alertou que há três formas de reação possíveis à onda chinesa. A primeira é o simples "entrincheiramento", isto é, a adoção de medidas de proteção a atividades industriais ameaçadas pelos produtos chineses. A segunda é formular estratégia "adaptativa" e a terceira, aproveitar o momento para transformações.

Na visão de Barros de Castro, há espaço para as três estratégias, mas ele sugeriu que a primeira - o protecionismo - não seja a preponderante, como historicamente costuma ser, quando a indústria nacional, desenvolvida num ambiente de fechamento às trocas comerciais, recebe mais proteção do governo, acelerando o processo de obsolescência competitiva. Dizia o professor que o protecionismo não é uma resposta à altura do desafio, sobretudo, porque não gera futuro.

Barros de Castro defendeu, então, a ideia de que os setores público e privado deveriam unir-se para criar "frentes estratégicas", focadas na formulação e criação de um Sistema Nacional de Inovação. Seria a forma de posicionar o país diante do fenômeno chinês, cujas oportunidades e ameaças são frequentes e rapidamente redefinidas, o que obriga todos a atirarem em "alvos móveis".

Dissemina-se a ideia de que o mundo caminha para um eixo no qual a China será a fábrica, o Brasil, a grande fazenda, e a Índia, a prestadora de serviços. Barros de Castro sustentou que esta é uma visão equivocada, uma vez que o agronegócio brasileiro é extremamente sofisticado e o país ainda possui diversidade industrial comparável, no mundo emergente, apenas às da China e Índia. Ele deixou claro, todavia, que cabe ao Brasil definir sua estratégia de inserção no mundo cada vez mais sinocêntrico.

No estudo, o professor mostrou que uma das explicações para a longa e penosa decadência da Argentina, um dos países mais ricos do planeta no início do século XX, foi o fato de sua economia não ter se posicionado adequadamente em relação ao deslocamento da economia mundial provocado pelos EUA no início do século passado.

Passados 14 anos, vemos que os protagonistas da economia brasileira nos setores público e privado pouco ou nada fizeram do que prescreveu, de maneira lúcida, o professor. A segunda década deste século foi, do ponto de vista do Produto Interno Bruto, a de pior desempenho dos últimos 40 anos, e que alguns economistas já chamam de a "Grande Depressão" do Brasil.

Mesmo crescendo hoje em ritmo menor que os da primeira década do século, a economia chinesa segue beneficiando exportações brasileiras. A alta das vendas externas do país desde o período pré-pandemia foi quase toda direcionada à China - a participação dos chineses nos valores subiu de 28,7% em 2019 para 31,3% no ano passado. A Ásia como um todo avançou quatro pontos percentuais em igual período, atingindo 46,4%.

A fatia dos Estados Unidos no valor de nossas exportações caiu de 13,4% para 11,1% do total no mesmo período. Na mesma comparação, a da União Europeia ficou praticamente estável - de 13,6% para 13% -, embora tenha atingido o menor nível desde 1997. Já a participação da América do Sul também se manteve estável - de 12,7% para 12,1% entre 2019 e 2021.

Os números mostram a importância avassaladora da China e das economias asiáticas na pauta comercial brasileira, o que comprova as palavras proféticas do professor Barros de Castro. Trata-se de um fenômeno que, dificilmente, passará por mudanças no horizonte previsível de tempo. O agronegócio brasileiro entrou em modo próprio. Sua produtividade crescente independe hoje de políticas públicas. Mas, se ainda deseja ter uma indústria nacional, capaz de oferecer empregos de qualidade e produzir bens competitivos, o Brasil precisa acordar.

 

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