O Estado de S. Paulo
O negacionismo do Holocausto judaico, do
genocídio armênio, do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira não
é opinião, é uma iniquidade
“Promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação” é um dos objetivos do nosso país, contemplado
na Constituição cidadã (artigo 3, IV).
É uma ideia a realizar que indica o caminho
para dar plena efetividade ao Brasil como sociedade pluralista, diversificada e
democrática, retificando múltiplas inadequações de nossa arquitetura
imperfeita.
A intolerância de práticas discriminatórias é um obstáculo a esta ideia a realizar. Ela veio à tona com estridência em eventos recentes, como o brutal assassinato de Moïse Kabagambe, o refugiado do Congo que encontrou abrigo em nosso país para morrer a pauladas ao lado do quiosque onde trabalhava na orla carioca; a prepotência da prisão sem provas de Yago Corrêa de Souza no Jacarezinho, depois de comprar pão perto de sua casa; e o empenho discriminatório da apologia do racismo nazista veiculado pelo podcaster Monark (Bruno Aiub).
Os três eventos interligamse. São
constitutivos da abrangência de condutas impelidas pelas múltiplas práticas de
racismo existentes na sociedade brasileira.
Afrontam e contestam a dignidade da pessoa
humana, princípio fundamental que inspira a Constituição.
A preservação da dignidade humana permeia a
tutela dos direitos humanos, cuja positivação é a expressão do aprimoramento da
convivência coletiva num regime democrático. O ponto de partida dos direitos
humanos é o princípio da igualdade, e o seu corolário lógico, a não
discriminação, que se aprofundaram com a especificação da tutela dos seres
humanos em situação de vulnerabilidade (crianças, idosos, mulheres, etc.).
Nesta linha, a Constituição qualifica como
crime a prática do racismo e a legislação infraconstitucional correspondente
tipifica as modalidades com as quais se expressam. Estas modalidades são
abrangentes e não circunscritas, como a interligação dos três eventos acima
mencionados evidencia.
A Convenção Interamericana contra o
Racismo, a Discriminação Racial e Formas Recorrentes de Intolerância de 2013,
recém-promulgada no Brasil, esclarece que, explícita ou implicitamente, “a
discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem
nacional ou étnica”.
Foi por conta da abrangência que o Supremo
Tribunal Federal (STF), em 2003, no caso Ellwanger, subsumiu o antissemitismo e
a sua apologia discriminatória como uma das modalidades de crime da prática do
racismo.
A ilicitude da prática do racismo abarca a
contenção da difusão e a propaganda de teorias e ideias que justificam ou
incitam a discriminação, com destaque para as provenientes de explícitos
discursos de ódio. Daí provêm parâmetros que esclarecem por que em nosso país e
em muitos outros, com respaldo nas normas do Direito Internacional, a garantia
constitucional da liberdade de expressão não se tem como absoluta. Não abriga
na sua abrangência manifestações de ilicitude penal. É o caso da calúnia, da
injúria e da difamação, e também do crime da prática do racismo e a sua
incitação.
Explica Stuart Mill, ao tratar do exercício
da liberdade, que ela contempla a distinção entre condutas “self-regarding” e
“other-regarding”. Em relação às primeiras, não cabem limitações, pois “o
indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito
aos interesses de ninguém a não ser ele”. Em relação às segundas, o indivíduo é
responsável por qualquer ação prejudicial aos interesses alheios. Daí a
possibilidade de limites, se a sociedade julgar que a sua defesa a requer.
A punição legal do crime da prática do
racismo e a sua apologia é o que prevê o direito brasileiro. O seu fundamento,
como observa Mill, provém do fato de que “viver em sociedade torna
indispensável que cada um seja obrigado a observar certa linha de conduta para com
o resto”.
Machado de Assis observou: “Haverá coisa
pior que mesclar o ódio às opiniões?”. Inspirado por Machado, concluo pontuando
os vínculos entre negacionismo, discurso de ódio e a prática de condutas
racistas. O negacionismo nega fatos apurados motivados pelo ímpeto
discriminatório e pelo ódio “que não respeita coisa nenhuma”, como dizia
Monteiro Lobato pela voz do Visconde de Sabugosa. Contrapõe-se, assim, ao bem
público consagrado no artigo 3, IV. Por isso, a denegação do Holocausto é
prática de conduta racista. A Convenção Interamericana reitera que não cabe
tolerar a defesa e a justificação do genocídio. Trata-se, assim, da contenção
do dano moral para a sociedade que provém do desrespeito à tutela de
consagrados direitos humanos.
O negacionismo do Holocausto judaico, do
genocídio armênio, do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira e
que provém do passivo da escravidão tem um objetivo: impedir o reconhecimento
do respeito que merecem ao direito à verdade e à memória das vítimas da prática
do racismo que padecem uma pena sem culpa porque integram uma cor, uma
religião, uma ascendência, uma origem nacional ou étnica. Por isso o
negacionismo não é uma opinião. É uma iniquidade.
*Professor emérito da Faculdade de Direito
da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Um comentário:
E além de ''iniquidade'',algumas vezes,pode ser tipificado como crime.
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