Valor Econômico
Lógica da campanha bolsonarista não visa só
a uma vaga no segundo turno, mas a cristalizar uma polarização paralisante na
política brasileira
Diante da enorme impopularidade e das
grandes dificuldades políticas que terá em 2022, o presidente Bolsonaro
escolheu estratégias muito claras para a disputa eleitoral. Seu provável modelo
de campanha, no entanto, vai além da conquista de votos para a chegada ao
segundo turno. O bolsonarismo quer consolidar a polarização como lógica principal
do jogo político brasileiro, haja a reeleição ou não. Isso causará não só uma
disputa com um caráter bélico inédito no Brasil, como também poderá ter
consequências para o próximo mandato presidencial.
Tomando como base o que ocorreu desde a criação da reeleição, Bolsonaro é um candidato atípico. Seu objetivo inicial não é liderar a disputa, mas obter algo entre 20% a 25% dos votos no primeiro turno, viabilizando desse modo seu lugar na rodada final. A montagem de suas estratégias passa, primeiro, pela aposta na fragilidade de qualquer tipo de terceira via. A fragmentação das candidaturas assim denominadas e a dificuldade de elas entenderem que o tema geral da eleição é um plebiscito contra o bolsonarismo têm facilitado a vida do atual presidente. Além disso, há o risco de uma vitória de Lula no primeiro turno, e a meta bolsonarista é evitar isso a qualquer custo, inclusive usando armas, digamos, heterodoxas de campanha.
A equação eleitoral montada por Bolsonaro é
muito clara: é preciso manter o eleitorado mais fiel (em torno de 15%), ganhar
uma pequena franja do eleitorado que não o rejeite tanto (algo em torno de 10%)
e, não menos importante, já criar no primeiro turno um discurso de que ele pode
vencer o PT de forma estrutural, e não só conjunturalmente. Ou seja, que se
trata de uma batalha polarizada que deve excluir do jogo político uma série de
grupos políticos de esquerda, centro-esquerda e mesmo parte dos liberais e
centristas, além de diversos movimentos sociais vinculados às questões raciais,
de gênero, culturais, científicos e de defesa de direitos sociais. Em poucas
palavras, o bolsonarismo promete ao eleitorado a volta ao Brasil anterior à
Constituição de 1988 - e uma parte do eleitorado quer retornar a um passado
idílico.
Para tentar chegar ao segundo turno e
consagrar a polarização como a estrutura organizadora da política brasileira,
Bolsonaro pretende adotar três estratégias. A primeira é a da política dos
valores, voltada principalmente para manter seu eleitorado mais fiel e um
público conservador que não tenha perdido muito com a crise econômica e social.
Isso porque parcelas do eleitorado que escolheram o bolsonarismo na eleição
passada por conta de seu conservadorismo podem mudar de voto agora porque sua
vida piorou muito - e há um conjunto grande de eleitores conservadores que já
votou e pode votar novamente em Lula, ou então, por enquanto em menor medida,
optar por candidatos como Doria, Ciro, Simone Tebet ou Moro.
A política dos valores é a estratégia
central do bolsonarismo. Tal máxima não se refere apenas às eleições de 2022,
mas, de forma mais profunda, vincula-se ao modelo de ação política que guia o
populismo de extrema direita dos bolsonaristas. Por meio dela, pretende-se
colocar Bolsonaro como o único candidato capaz de defender posições que seriam
inegociáveis para parcelas da população, e que, dessa maneira, estariam acima
da situação concreta que o país vive. É interessante notar que em pesquisas
qualitativas há um contingente razoável de pessoas que diz que o Brasil está
pior hoje do que no passado recente, mas ainda continua optando pela
candidatura bolsonarista. O quanto isso vai perdurar até outubro, com mais dez
meses de crise econômica e social pela frente, é uma incógnita.
Há três questões principais que ordenam a
política dos valores. A primeira diz respeito à busca de eleitores no campo
religioso, mormente os de filiação protestante. Embora Bolsonaro saiba que não
terá o mesmo percentual de votos evangélicos que teve em 2018, quanto mais
gente desse grupo conseguir fidelizar - talvez algo em torno de um terço ou um
pouco mais -, mais chances terá de ir para o segundo turno. Por isso, a
campanha bolsonarista vai estar repleta de discussões morais e religiosas, que
aparecerão não só no discurso oficial do presidente e aliados, mas
principalmente pelas vias transversas das redes sociais, com muitas baixarias e
mentiras contra todos os outros candidatos, pintados como “imorais”. Vale
frisar que essa estratégia não será usada apenas contra Lula, pois é preciso
evitar que Ciro, Doria, Moro ou Tebet avancem em eleitores bolsonaristas de
2018 - e é inacreditável como as terceiras vias ainda não perceberam que se não
se contrapuserem primeiramente a Bolsonaro, não terão chances de crescer
eleitoralmente.
A política dos valores atua em mais duas
questões. Uma é relativa ao ataque constante ao STF, que além de ser uma
autodefesa da família Bolsonaro e outros gestores públicos frente a escândalos
político-administrativos, ainda tem uma forte conotação moral. Isso vale não só
para ter mais ministros “terrivelmente evangélicos” ou conservadores que
protejam o país da modernidade. O discurso político contra o Supremo Tribunal
Federal é direcionado também a um público conservador e autoritário cujo
objetivo é ter um presidente sem contrapesos institucionais. Não se deve
ignorar essa dimensão do eleitorado fiel do bolsonarismo.
A outra forma de atuação da política dos
valores tem a ver com a noção bolsonarista de liberdade individual. Nela,
pretende-se defender os cidadãos contra interferências indevidas do Estado,
embora essa noção geral refira-se apenas aos assuntos tomados como verdadeiros
pelo bolsonarismo. São os antivacina, por exemplo, ou setores específicos que
ganham econômica e socialmente com a desregulamentação radical, como garimpeiros
ilegais, colecionadores de armas e afins, e até mesmo milicianos e outras
formas de crime organizado. O fato é que há um contingente razoável de
eleitores influenciados por esses grupos. O bolsonarismo não os abandonará na
eleição e vai inflá-los pensando no futuro político do movimento.
A política dos valores pode gerar uma
fidelização de 15% a no máximo 20% do eleitorado, especialmente porque a crise
econômica e social, além de elementos regionais (principalmente no Nordeste),
são uma barreira ao crescimento eleitoral de Bolsonaro. Daí que entra uma
segunda estratégia, que pode ser chamada de redução de danos. Ela implica jogar
dinheiro pelo helicóptero e favorecer grupos específicos com medidas populistas
para garantir direitos de curto prazo - e insustentáveis no longo prazo. O
populismo legal e orçamentário vai rolar solto nos próximos meses
A estratégia de redução de danos frente à
impopularidade presidencial vai significar fortalecer os laços com o Centrão
para distribuir muitos recursos, perdoar dívidas, reduzir ou isentar impostos
para alguns grupos e ainda garantir outros privilégios imediatistas com o
intuito de fidelizar uma parcela do eleitorado não tão movida por ideologias.
Mesmo assim, isso não vai retirar o sentimento negativo de quase dois terços do
eleitorado que diz não votar em Bolsonaro em hipótese alguma, mas pode
acrescentar votos suficientes para se chegar ao segundo turno. Claro que essa
estratégia vai ter um efeito de médio e longo prazos desastroso para as contas
públicas e para o funcionamento republicano do Estado. Porém, sinto informar
que a era da irresponsabilidade completa em nome da eleição já começou.
Há ainda uma última estratégia: o ataque ao
PT como ameaça de comunismo, volta da corrupção e, sobretudo, inimigo da
família brasileira. Essa proposta tem dois objetivos. O primeiro é tentar
evitar a vitória de Lula no primeiro turno e o segundo é preparar o terreno
para uma eleição de segundo turno fortemente polarizada, mais do que qualquer
pleito desde 1989, num nível que deixará a disputa de 2014 no campo dos contos
de fadas. Na verdade, a lógica antipetista do Bolsonaro de 2022 não busca
ampliar a sua ligação com outros partidos ou grupos sociais, aproximando-se de
uma lógica mais centrista. O intuito é reforçar o modelo polarizador, marcando
a posição bolsonarista como única alternativa para governar o país, com uma
aliança eventual e financeira com o Centrão.
Neste sentido, esse segundo turno
hipotético entre Lula e Bolsonaro é mais do que uma eleição. Trata-se em parte
de um jogo político para assegurar a sobrevivência do bolsonarismo, seja
ganhando ou sabotando a eleição, ou ainda garantindo a hegemonia da oposição
nas mãos da extrema direita. Mas também é um jogo pessoal: é preciso polarizar
e atemorizar para evitar a condenação de algum membro da família Bolsonaro.
A estratégia eleitoral de Bolsonaro deveria
levar todas as forças contrárias a ele a buscar uma ampliação de aliados
políticos e sociais. Isso vale tanto para o lulismo que busca o centro, como
para as terceiras vias que precisam sair de suas bolhas. Todos esses grupos
partidários têm de perceber que a lógica da campanha bolsonarista não visa apenas
à garantia de uma vaga no segundo turno. Seu objetivo profundo é cristalizar
uma polarização paralisante na política brasileira. Por isso, todos os não
bolsonaristas, numa eleição em que mais de 60% do eleitorado diz que não
votaria nunca em Bolsonaro, devem começar a conversar, e muito, com distintos
públicos e atores para evitar que o país se torne ingovernável.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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