Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A degradação das relações de trabalho e a
difusão do direito à violência privada no caso do linchamento de jovem congolês
O linchamento de Moïse Mugenyi Kabagambe,
na noite de 24 de janeiro, jovem congolês de família legalmente refugiada no
Brasil, indica mudanças preocupantes nas características dessa prática de
violência de turba no Brasil.
Entre nós, os linchamentos têm raízes
estruturais, com vestígios fortes das práticas da Inquisição e das normas e
valores das Ordenações Filipinas. Os avanços da sociedade brasileira no plano
do Direito não foram suficientes para eliminar sua prática. Ao contrário, ela
deixou de ser excepcional e anômala para se tornar normal e corrente.
Nos últimos 70 anos, o número de
linchamentos cresceu muito. Hoje são, pelo menos, dois linchamentos e
tentativas por dia.
Estudei em detalhe 2.028 casos ocorridos no Brasil inteiro e realizei, no respectivo local, três estudos de casos ocorridos no Oeste de Santa Catarina, na Alta Mogiana, em São Paulo, e no Sertão da Bahia por serem casos que continham os mais altos índices de crueldade.
O linchamento brasileiro tem como
componentes típicos a perseguição da vítima, seu apedrejamento, espancamento, a
mutilação do corpo e sua queima ainda viva. Vários são linchamentos com
indícios fortes de sacrifício ritual, o que indica persistências de costumes e
valores arcaicos. A morte de Moïse tem indícios de martírio.
Mesmo em grandes cidades e regiões
metropolitanas, os linchamentos são evidências fortes e alarmantes de atraso
social. O Brasil oficial é apenas uma casca superficial de civilização. São
cada vez mais banais os motivos que levam a multidão a romper essa casca.
Há, porém, indicações positivas de reações
coletivas veementes contra o crime de multidão. No caso da morte de Moïse, ao
menos em 13 capitais houve manifestações de preocupação e protesto contra a
avassaladora minimização da condição humana que o caso representa. Positivo,
também, que mais de 90% das vítimas salvas no ato de linchar foram-no sobretudo
pelas Polícias Militares.
Limitada porque não baseada em amostra
probabilística, a pesquisa não confirmou a suposição corrente de que as vítimas
são preferencialmente negras, embora o número desses casos esteja apenas um
pouco abaixo da metade das ocorrências, o que é comparativamente alto. Nem a
cor da pele aparece nesses mais de 2 mil casos como primeiro e consciente
motivo do linchamento.
Isso não quer dizer que não haja racismo no
Brasil. Há, mas é um racismo dissimulado. Um linchamento dura entre 15 e 20
minutos, como no caso de Moïse. Na primeira metade desse tempo, para motivação
igual, seja a vítima da turba branca ou negra, o índice de crueldade tende a
ser o mesmo. Porém, da metade do tempo em diante, se a vítima for negra, o
índice de crueldade aumenta progressivamente mais.
No linchamento de Moïse, um dos
linchadores, branco, quando o corpo jazia inerte, voltou e desferiu sobre ele
mais pauladas, com muita violência. Alegou que estava com muito ódio. Moïse
tentara apenas receber R$ 200 no quiosque em que trabalhava, por dois dias de
trabalho não pagos.
O que alarma quem estuda esse problema é
que, no caso de Moïse, sua ocorrência absurda e descabida só tem sentido na
convergência de um sistema de causas conexas, que define um cenário situacional
de estímulo a crescentes violações dos direitos sociais e da condição humana.
A degradação das relações de trabalho é uma
delas. Quatro dias depois do linchamento de Moïse, o Ministério do Trabalho
divulgou uma notícia sobre a ocorrência de trabalho escravo no Brasil em 2021:
1.937 trabalhadores foram resgatados de condição análoga à de escravo, com o
Ministério Público do Trabalho presente no resgate de 1.671 pessoas.
Moïse não era escravo, mas estava entre os
cidadãos sujeitos a trabalho precário e à incerteza de relações de trabalho sem
garantia legal. A escravidão atual é uma decorrência dessa degradação. A
reforma da legislação trabalhista não ajuda a superar esse problema.
Um segundo fator é a difusão crescente do
direito à violência privada expressa em gestos oficiais de favorecimento da
importação de armas e munição e a interpretação de que essa medida é
reconhecimento de que o governo transfere para o particular o direito de fazer
justiça segundo seu próprio arbítrio.
O discurso oficial de hoje, social e
politicamente conflitivo, dá voz e visibilidade a essa anomalia à medida que
sugere que as instituições são adjetivas em relação ao indivíduo armado. Além
disso, a multidão é uma arma. O linchador é um covarde que transfere ao outro a
responsabilidade do crime.
Linchamento é crime de multidão, que não é
uma soma de indivíduos. É um ente coletivo súbito e temporário, enlouquecido.
Grupos pequenos estão adotando comportamento de multidão, que não o são.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de Linchamentos - A justiça popular no Brasil (Contexto).
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