terça-feira, 29 de março de 2022

Carlos Andreazza: Mundo paralelo impõe gabinete paralelo

O Globo

Exonerado Milton Ribeiro, agora ex-ministro da Educação. O cargo é mui cobiçado. Não sejamos ingênuos sobre os interesses em jogo. A forma como os pastores abrigados por Ribeiro venderiam facilidades para furar a fila de liberação de recursos do MEC contrariava o ritmo com que os donos do FNDE partilham a distribuição discricionária dos dinheiros. Não tardaria até o vestiário rachar.

Rachou sobre os mais fracos. Quiseram garimpar fora de Brasília. Ficaram com o mercúrio. Prefeito que ora abre o jogo, sempre inocente, tende a já ter novo padrinho. Os mais fortes, os profissionais, querem o MEC todo. Faz sentido, se já estão dentro do Planalto e se já gerem o Orçamento.

Tampouco sejamos ingênuos sobre a gravidade do que se revelou. Gravíssimo. Cobiças à parte, o ministro deveria estar demitido desde a semana passada. Demorou. O governo, entretanto, tinha — tem — uma propaganda de honestidade a defender. Buscou modalidade dissimulada de demissão. Especulava-se uma licença. Ribeiro se afastaria até que as investigações fossem concluídas.

Tudo pela imagem; pela fraude. Buscava-se, a rigor, saída honrosa para a sustentação do mundo paralelo em que não haveria corrupção no governo Bolsonaro.

Pretendeu-se também, e com algum êxito, ganhar tempo; à cata de algum desvio que pudesse baixar a pressão sobre o Planalto e deixar o caso morrer sem ir além de Ribeiro. No fim de semana, ao mesmo tempo grave ocorrência e paraíso para a distração, houve o despacho censor de um ministro do TSE contra manifestações políticas num festival de música — isso enquanto agentes públicos, entre os quais o presidente da República, infringiam, com total liberdade, a legislação eleitoral. O foco se deslocou. Abriu-se alguma janela, produziu-se espuma, para que se tentasse costurar a acomodação.

Exonerado Milton Ribeiro, tudo indica que as investigações pararão nele. Se andarem, ficarão restritas a ele. Andarão? O ex-ministro é irrelevante, porém. Agiu sob a chancela de Bolsonaro.

Foi Bolsonaro quem investiu Gilmar Santos. Como consequência, o pastor e seu parceiro Arilton estabeleceram gabinete paralelo no MEC. É o que se depreende do conjunto de acusações publicado pela imprensa. Não sabemos se o presidente sabia. Sabemos o que ouvimos de Ribeiro: “Porque a minha prioridade é atender, primeiro, os municípios e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar”.

Que tal a hierarquia de prioridades do então ministro de Estado, em que amizade é valor, como se não houvesse critérios técnicos para a administração de recursos públicos? O ministro por quem Bolsonaro botaria a cara no fogo, ministro cujos princípios autorizam ter a face impressa na Bíblia.

Ouvimos mais de Ribeiro: “Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do Gilmar”.

Qual a questão do Gilmar?

O atendimento ao pastor derivou, de acordo com a palavra do ex-ministro, de pedido especial de Bolsonaro. E qual atendimento tiveram Gilmar e associado? A liberação de dinheiros públicos para prefeitos que, segundo as denúncias, pagavam-lhes propina. Essa seria a questão do pastor.

E quem o fez influente junto a Ribeiro?

Talvez o presidente — sócio de Ciro Nogueira, Arthur Lira e Valdemar Costa Neto no arranjo deste governo — não soubesse que apadrinhava gente assim; mas gente assim, que pediria propina, sem ser parte do governo, teve facilidades no MEC sob as bênçãos de Bolsonaro.

Sem-ser-parte-do-governo é parte relevante. Ribeiro já não é parte do governo.

Gente assim, sem ser parte do governo, tecnicamente mantém o governo sem corrupção. Né? Ajuda a CGU. Gabinete paralelo como fundamento para o mundo paralelo em que o governo seria honesto.

Bolsonaro nomeou o gabinete paralelo. Sem querer? Não sei. Sabemos que, terceirizadas as traficâncias, prospera o governo sem corrupção. Governo puro que, por querer, procurou modos não traumáticos de se livrar de Ribeiro, exonerado “a pedido”. Solução negociada. Bom para o sujeito. Melhor ainda para o presidente. No seu governo, afinal, não há — repita-se — corrupção. Há gabinetes paralelos.

Querem ver?

Na primeira rodada investigativa sobre falcatruas no MEC terceirizadas a pastores, a CGU levou sete meses para concluir — concluo eu — pela eficiência do esquema de gabinetes paralelos. Claro: não sendo os operadores (da fé e dos dinheiros do FNDE) formalmente integrantes do governo, a CGU pôde arquivar a apuração por não haver encontrado irregularidades cometidas por agentes públicos.

Parabéns!

E não mentiu. Para isso servem os gabinetes paralelos; para que o de Bolsonaro seja —há três anos e três meses — um governo sem corrupção. O governo é de Deus. O diabo vai por fora.

 

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