terça-feira, 29 de março de 2022

Míriam Leitão: O intangível valor da cultura

O Globo

O ambiente era de defesa da cultura. Não houve panfleto ou referência ao governo anticultura que nos arruína. Era apenas um subtexto, uma certeza parada no ar. Os convidados se entreolhavam certos de ter o mesmo amor pelas artes. A pessoa central da noite invocou todos os monstros do teatro, dos gregos a Molière, dos franceses a Augusto Boal e Nelson Rodrigues. O primeiro papel no teatro encarnado por Fernanda Montenegro foi Antígona. Sófocles, eterno, pairava no ambiente com aquela mulher imortal. Antígona incorpora o sentimento feminista mais profundo. O da mulher que, por ser radicalmente livre e profundamente cívica, é condenada à morte eterna.

Estávamos no centro do Rio. Uma cidade despossuída. Foi capital, não é mais. Foi corte, perdeu a majestade. Permanece bela. E lá estavam o prefeito e seus secretários da Cultura e da Educação, respeitados e à vontade porque são autoridades que entendem do que se falava no Petit Trianon. A Academia Brasileira de Letras (ABL) pode ser vista de diversas formas. Eu acho mais justa a visão clássica. Machado de Assis nos recebe na entrada. Foi dele a ideia dos ritos que devem cumprir os que entram naquele teatro.

Fernanda Montenegro parecia encaixar-se tão perfeitamente que a única dúvida que surgia é por que não estava desde antes. O antigo dono da cadeira 17 previu sua própria sucessão. E recomendou à atriz que escrevesse um livro para entrar na Academia. Ela obedeceu. E assim Fernanda sucedeu ao diplomata, escritor, humanista Afonso Arinos de Mello Franco.

Fernanda chegou linda e vibrante no seu fardão. Aos 92 anos, parecia uma menina de cabelos brancos em penteado natural e sapatos baixos. O verde lhe cai bem. O seu discurso teve a leveza de uma conversa e o rigor dos rituais seguidos à risca. No prólogo, ela fez um ensaio sobre o teatro. Há 300 anos existente no Brasil. Os jesuítas, em suas encenações religiosas, o que eram? “Teatro”, lembrou Fernanda.

Quem assume a ABL tem que seguir a tradição de falar dos que vieram antes na mesma cadeira. Isso pode ser um engessamento, algo em desuso. Mas Fernanda é clássica e atual. Ela cumpriu o rito e o fez parecer natural e indispensável.

Hipólito da Costa, o patrono da cadeira 17, foi o primeiro jornalista do Brasil. Fundou o “Correio Braziliense” em Londres. E o fez depois de amargar a prisão por suas ideias em defesa da independência. Ah, quem pensa que foi apenas um brado nas margens plácidas não entendeu o Brasil. Hipólito manteve o jornal sozinho, escrevendo tudo, editando tudo e mandando ao país escondido nos navios. “E assim, clandestina, nasceu a imprensa brasileira.” Quem falou essa frase foi Lima Duarte num velho documentário chamado “As Impressões do Brasil”.

Um dos ocupantes da mesma cadeira foi Roquette Pinto. Justamente a pessoa que trouxe ao Brasil a radiodifusão. A primeira emissora do país foi doada por seu fundador ao governo, num raro exemplo no Brasil de benefício que vai do empresário para o Estado, e não o contrário. Virou a rádio MEC, onde Fernanda começou a trabalhar como locutora e atriz do radioteatro.

Tudo parecia se encaixar naquela noite histórica, a da última sexta-feira. O mais importante não era dito, mas todos entendiam. Ali se comemorava a cultura, que nos últimos anos foi tão ofendida. Não, o nome do agressor não foi pronunciado. Celebrava-se a cultura na figura da sua representante, a atriz e escritora Fernanda Montenegro. “Resistimos, somos eternos”, disse ela. Como sempre faz, chegou lembrando que não vinha só. Citou dos grandes autores aos grandes atores e atrizes com os quais contracenou, com ênfase no seu amor Fernando Torres.

A escritora de “República dos Sonhos”, Nélida Piñon, fez o discurso de recepção. Outra tradição. Uma enfermidade atinge os olhos da grande escritora. Ela então pediu à filha da nova acadêmica, Fernanda Torres, que lesse o discurso. Completou-se assim a noite em que tradição e inovação pareciam perfeitamente afinadas.

Esta coluna está chegando ao fim e eu, admiradora de Antígona, fiz mais uma subversão. Não contei que a cultura é economia. Ela gera atividade econômica, emprego e renda, o que é fundamental dizer numa coluna de economia. Perdoem-me, fiquei aqui encantada com o preço intangível da cultura e o valor incalculável de Fernanda Montenegro.

 

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