Valor Econômico
Ataques a instituições de Estado, na
esteira da disputa eleitoral, são ataques à democracia e devem ser repudiados.
Numa época em que e-mail já passou a ser
considerado fora de moda, cartas parecem formas jurássicas de comunicação. Não
obstante, duas delas estiveram no centro das atenções nos últimos dias.
A primeira foi escrita pelo diretor
presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres1 para defender a Anvisa, e a si
mesmo, das insinuações feitas por Bolsonaro de que a aprovação da vacinação
para crianças teria sido determinada por interesses escusos. Termina desafiando
o presidente da República a determinar investigação ou então a se retratar.
A segunda carta foi escrita pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, ao ministro da Economia, após a divulgação da inflação de 20212. A carta do presidente do BC é uma exigência da sistemática de metas para a inflação, quando a taxa de inflação anual fica fora da banda fixada pelo CMN (Conselho Monetário Nacional). Para 2021, a banda era de 2,25% a 5,25%, centrada em 3,75%, a meta para a inflação do ano passado. Como a inflação (medida pelo IPCA) foi de 10,06%, o presidente do BC teve que escrever a carta.
A lei requer que a carta contenha três
partes: “descrição detalhada das causas do descumprimento; providências para
assegurar o retorno da inflação aos limites estabelecidos; e o prazo no qual se
espera que as providências produzam efeito”.
Na descrição das causas, o BC ressalta as
três principais: “forte elevação dos preços de bens transacionáveis em moeda
local, em especial os preços de commodities; bandeira de energia elétrica de
escassez hídrica; e desequilíbrios entre demanda e oferta de insumos, e
gargalos nas cadeias produtivas globais”.
O BC também faz uso de um modelo
econométrico para estimar os principais responsáveis pelo estouro da meta. O
modelo aponta que mais de dois terços da responsabilidade pelo estouro recai
sobre a inflação importada, sobretudo pela elevação de preços de petróleo e
commodities.
Quanto às providências para repor a
inflação na meta, o BC declara que fará uso da taxa Selic. Na descrição da
política monetária que permitiu o aumento da inflação para muito além da meta,
o BC enfatiza o papel das surpresas desfavoráveis. Fica subentendido que se as
surpresas pudessem ter sido previstas, a Selic não teria sido baixada a 2% e lá
mantida por tanto tempo, inclusive com o reforço da forward guidance.
Certamente a experiência de 2021 deverá servir não só para aprimorar os modelos
usados pelo BC, como também para induzir dose adicional de cautela em eventos
similares no futuro.
Na parte referente ao prazo no qual se
espera que as providências produzam efeito, o BC mostra que suas projeções
indicam que a inflação convergirá de volta à meta nos próximos três anos,
embora a projeção para 2022 (4,7%) ainda supere em muito a meta para este ano
(3,5%). As projeções do BC estão em linha com as do mercado, ainda que um pouco
mais otimistas.
O elefante na sala, o descontrole fiscal
posto em marcha desde que se rompeu o teto de gastos e se declarou o calote dos
precatórios, é tratado na carta em dois momentos. Primeiro, quando se menciona
que a depreciação do real observada no segundo semestre do ano passado esteve
associada à “(...) maior incerteza em torno da trajetória futura do
endividamento soberano”, isto é, à eventual explosão da dívida pública. E se
sugere que tal mecanismo tenha contribuído para que o real tenha se mantido
fraco mesmo com preços de commodities em alta.
A segunda menção foi feita quanto o BC
finaliza a descrição das providências tomadas e ressalta que dúvidas quanto ao
“(...) futuro do arcabouço fiscal resultam em aumento dos prêmios de risco e
elevam o risco de desancoragem das expectativas de inflação”. E explicita que
“(...) eventual esmorecimento no esforço de reformas estruturais e alterações
de caráter permanente no processo de ajuste das contas públicas podem elevar a
taxa de juros estrutural da economia”. Ou seja, o descontrole fiscal implicará
juros mais altos e o BC não se furtará a elevar a Selic.
Pode parecer que as duas cartas aqui
mencionadas têm pouco a ver uma com a outra, mas a verdade é que há entre elas
muito em comum. Foram escritas pelos presidentes de duas agências reguladoras,
Anvisa e Banco Central. Seus presidentes e diretores têm mandatos fixos,
justamente para poderem exercer seus papéis com independência, sem estarem
sujeitos a pressões políticas.
No fundo, as duas cartas ajudam a preservar
o caráter técnico do trabalho das duas agências. Barra Torres defende a Anvisa
das insinuações maldosas e propositalmente danosas de Bolsonaro. Já Roberto
Campos, que tem mandato até o final de 2024, hoje não enfrenta ameaça similar,
mas pode vir a ser vítima de problema semelhante mais à frente, à medida que o
BC se veja obrigado pelas circunstâncias a continuar a aumentar juros ao longo
do ano eleitoral. E não se pode deixar de levar em conta notícias recentes que
dão conta que a própria autonomia do BC estaria entre as medidas que Lula, hoje
favorito para as eleições porvindouras, poderia tentar revogar, se eleito.
Ataques a instituições de Estado, na
esteira da disputa eleitoral, são ataques à democracia. Devem ser repudiados.
Ainda temos muito a evoluir. Não faz sentido desfazer o parco esforço de
construção institucional que, a tão duras penas, o país tem conseguido
viabilizar.
1. Nota
divulgada pela Anvisa em 8 de janeiro de 2022.
2. Carta
Aberta explicando a inflação acima do limite superior do intervalo de
tolerância da meta em 2021, divulgada pelo BC em 11 de janeiro de 2022.
*Márcio G. P. Garcia, Ph.D. por Stanford, professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio, Cátedra Vinci Partners
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