EDITORIAIS
Mais um
O Globo
O PASTOR Milton Ribeiro demorou a
entender que não tinha mais condição de continuar como ministro da Educação
depois das denúncias de corrupção na pasta envolvendo pastores alheios aos
quadros do MEC.
SUA SAÍDA, anunciada ontem à tarde numa
carta de demissão, acontece menos por desaprovação do presidente — Jair
Bolsonaro defendeu Ribeiro nas redes sociais — do que pelo potencial de estrago
que poderia causar na campanha à reeleição.
O MINISTÉRIO da Educação, depois de mais uma gestão que misturou ideologia, inépcia e involução na qualidade do ensino, vai para o quinto titular em três anos e três meses de governo. O retrospecto de Bolsonaro sugere que não necessariamente a mudança será para melhor.
Expressão política de artistas impõe novo
desafio ao TSE
O Globo
Não será trivial o desafio do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) nas eleições deste ano. Essa é a principal conclusão a
extrair da decisão equivocada do ministro Raul Araújo, que classificou como
propaganda eleitoral antecipada as manifestações de cantoras num festival de
música realizado em São Paulo.
No sábado, a cantora Pabllo Vittar se
apresentou ao lado de uma bandeira com a imagem do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, pré-candidato à Presidência pelo PT. A cantora britânica Marina
Diamandis xingou o presidente Jair Bolsonaro. Alegando tratar-se de propaganda
eleitoral antes do prazo legal, que começa em 16 de agosto, o PL, partido de
Bolsonaro, entrou com um pedido de proibição de manifestações políticas no festival.
Araújo aceitou o argumento e determinou uma multa de R$ 50 mil por
descumprimento da decisão.
Trata-se de um equívoco por dois motivos. O
primeiro é jurídico: manifestar simpatias políticas é diferente de fazer
propaganda eleitoral. A jurisprudência consolidada no TSE considera ilegal
apenas o pedido explícito de voto realizado antes da campanha eleitoral. Não
foi o que fizeram as duas artistas que se apresentaram no festival.
Em todas as democracias, são corriqueiras
as manifestações políticas da classe artística. O Brasil não é exceção. Por
aqui, apresentações culturais em anos eleitorais sempre foram marcadas por
declarações de apoio ou antipatia por candidatos. Não há razão para 2022 ser
diferente. Pelo contrário. Dado o nível de polarização, raros serão os shows e
peças de teatro sem algum tipo de mensagem, não necessariamente em favor de um
só candidato.
Repousa aí o segundo equívoco da decisão,
de caráter político. Ela tem o efeito contrário ao desejado. Em vez de coibir
manifestações de apoio ou repúdio a candidatos, acaba por incentivá-las, na
medida em que é — corretamente — interpretada como tentativa de censurar uma
opinião. A decisão do fim de semana é combustível para que outras manifestações
do tipo surjam.
Talvez preocupado em passar uma imagem de
equilíbrio, Araújo atropelou o direito à livre expressão. Viu problema entre os
artistas, mas nada de errado num caso que analisou na semana passada sobre
outdoors favoráveis a Bolsonaro pagos por produtores rurais.
A decisão dele acabou sendo inócua. Por
erro, o pedido do PL foi feito contra uma empresa diferente da que organizou o
evento, e o TSE não conseguiu entregar a notificação. Como o festival terminou
no domingo, o processo pode ser extinto ou levado a julgamento no plenário da
Corte. O presidente do TSE, ministro Edson Fachin, afirmou que pretende dar
prosseguimento célere ao assunto. É importante para que o plenário tenha mais
uma oportunidade de esclarecer o que diz a Lei Eleitoral.
Os repetidos ataques de Bolsonaro à democracia desde que assumiu a Presidência exigiram do TSE um protagonismo nunca visto antes. Declarações de ministros da Corte em defesa da urna eletrônica, campanhas publicitárias e acordos com plataformas digitais para combater desinformação fazem parte da defesa da democracia. Agora a corrida eleitoral entrou numa nova fase, que dependerá de ainda mais agilidade e equilíbrio do Tribunal, para que se evitem novos erros.
Política armamentista de Bolsonaro aumentou
arsenais de criminosos
O Globo
O incentivo às armas promovido pelo governo
Jair Bolsonaro tem aumentado de forma perigosa os arsenais privados. Favorecido
pelos decretos apoiados pela “bancada da bala” ou mesmo por sentenças
judiciais, tem sido assustador o aumento no acesso a armamentos concedido a
amadores, reunidos no grupo conhecido pela sigla CAC (Caçador, Atirador e
Colecionador). Antes limitados, os CACs passaram a ter acesso a armas e munições
de grosso calibre em quantidades extravagantes.
Atiradores esportivos, que antes podiam
adquirir até 16 armas, hoje podem comprar 60, como constatou reportagem do
GLOBO. Colecionadores estão livres para ter até cinco armas de vários tipos e
modelos. Em três anos, as licenças concedidas pelo Exército a CACs saltaram
325% (de 255.402 em 2018 para 1.085.888 no ano passado).
O resultado dos controles relaxados é
previsível. Não é coincidência que tenha aumentado a quantidade de bandidos
apanhados com o certificado de CAC. Um exemplo entre pelo menos 25 levantados
pelo GLOBO é o caso do “colecionador” Vitor Furtado Rebollal Lopes, conhecido
por Bala 40, com quem a polícia encontrou 26 fuzis AR-15 e 556, três carabinas,
21 pistolas, dois revólveres, uma espingarda calibre 12, um rifle, um
mosquetão, além de caixas de munição para fuzis, uma armaria ao todo estimada
em R$ 1,8 milhão. De acordo com a polícia, que apreendeu o arsenal, Bala 40
entregaria os fuzis a uma das maiores facções criminosas do Rio. Por ser CAC,
ele comprava as armas legalmente e as guardava numa casa ao lado de uma creche.
O certificado de CAC também passou a servir
na Justiça como uma espécie de “atestado de honestidade” para quem guarda armas
e munições para criminosos. Foi o argumento usado pela defesa do sargento da PM
Alex Bonfim de Lima Silva, do 39º Batalhão da PM fluminense, preso em novembro
de 2019 como integrante da milícia que extorque dinheiro de moradores e do
comércio de São João de Meriti. Uma operação policial encontrou na casa dele
grande quantidade de armas de grosso calibre com numeração raspada. Três anos
antes, revelou O GLOBO, Lima obtivera no Exército um Certificado de Registro
(CR) e se converteu em “colecionador”. O documento o ajudou no julgamento pelos
desembargadores da 6ª Câmara Criminal, em fevereiro de 2020, quando foi solto.
É tamanha a licenciosidade com que o governo trata a questão das armas, que os casos do PM armeiro ou do “colecionador” Bala 40 estão longe de ser isolados. Há fartos relatos do uso de CACs para abastecer de armas e munições facções do tráfico, milícias e grupos de extermínio em vários estados. Na antológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, Bolsonaro bradou que “povo armado jamais será escravizado”. Na ocasião, a frase deixou no ar dúvidas sobre as intenções de Bolsonaro com sua política armamentista. Com o passar do tempo, ela tem deixado de ser enigmática.
Rechaçar a censura
Folha de S. Paulo
Decisão afronta direitos de que se valem
apoiadores de todas as candidaturas
Com uma argumentação pobre
do ponto de vista jurídico e frágil no plano da lógica, o ministro Raul
Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral, tentou impor censura prévia ao
Lollapalooza, festival musical realizado em São Paulo.
Atendeu com isso a demanda
dos advogados do presidente Jair Bolsonaro (PL), que procuraram o TSE no
sábado (26) devido a alegada propaganda eleitoral antecipada e pediram que
manifestações políticas fossem proibidas nos shows.
Na véspera, as cantoras Marina e Pabllo
Vittar tinham aproveitado o palco do festival para atacar o ocupante do Palácio
do Planalto e enaltecer o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Faziam uso da liberdade de expressão e
manifestação artística, um direito protegido pela Constituição —e do qual se
valem também os apoiadores de Bolsonaro, do área cultural ou não.
O TSE não costuma ter dificuldades para
compreender o óbvio. Seu presidente, o ministro Edson Fachin, lembrou que a
posição do tribunal é de "rechaço
pleno e firme de qualquer forma de censura".
Daí por que causou espécie a decisão de
Araújo. Mesmo que o direito não seja uma ciência exata, alguns parâmetros devem
ser seguidos para que as sentenças não se confundam com meras canetadas nem
expressem o puro arbítrio dos magistrados.
Araújo se descolou de todas as balizas que
deveriam guiar sua argumentação. Contrariou a Constituição e os princípios nela
elencados, ignorou normas que tratam diretamente do assunto e deu de ombros
para a jurisprudência do colegiado a que pertence.
Por fim, afastou-se de seu próprio
histórico de interpretação liberal da lei: em fevereiro, ele havia negado
pedido do PT para retirar outdoors de apoio a Bolsonaro, embora a legislação
expressamente vede a utilização dessas placas.
Para piorar, nem bem a canetada de Araújo
tinha secado e Bolsonaro
participava de ato partidário, no domingo (27), que havia despertado
preocupações de sua própria equipe jurídica, diante dos riscos de vir a ser
considerado campanha eleitoral antecipada.
A lei não permite que se peça voto
explicitamente antes de 16 de agosto. O presidente não chegou a violar essa
norma, mas discursou como candidato e atacou Lula, seu principal adversário no
pleito.
Se a concomitância dos eventos já colocava
em xeque a ação bolsonarista e a decisão de Araújo, artistas e público do
festival trataram de debochar de seu conteúdo e demonstrar como, na prática, a
ordem não poderia ser cumprida.
Mas daí não decorre que o assunto deva ser
dado por superado. Decisões que pretendam retomar a censura precisam ser
expostas como um retrocesso obscurantista e rejeitadas pelas cortes. Fachin,
felizmente, indicou ter consciência de sua responsabilidade.
Uruguai dividido
Folha de S. Paulo
Aprovação apertada de pacote mostra
dificuldades do governo de centro-direita
Oficialmente, os uruguaios foram às urnas
no domingo (27) para um referendo sobre um amplo pacote legislativo aprovado há
quase dois anos. No jogo político, entretanto, a votação popular se converteu
num teste de apoio à gestão do presidente Luis Lacalle Pou.
A
vitória do novo diploma, embora pela estreita margem de um ponto
percentual, representa um triunfo do mandatário uruguaio e dá fôlego à coalizão
que o sustenta.
No centro da disputa estavam 135 artigos da
chamada Lei de Urgente Consideração (LUC), uma colcha de propostas aprovadas no
começo do governo de Lacalle Pou. A norma, considerada a base do programa da
centro-direita uruguaia, altera dezenas de leis preexistentes e constituiu o
carro-chefe da campanha presidencial vitoriosa.
Abrange desde as condições de reajuste do
preço dos combustíveis até os limites do direito de greve, passando pelo papel
do Estado na economia, na educação e na segurança. Entre outros pontos,
estabelece o fim do monopólio estatal de serviços como internet, telefonia,
eletricidade e hidrocarbonetos.
Os aspectos mais controversos do pacote
instituem uma equivocada
política linha-dura na segurança pública uruguaia.
Constam da LUC a duplicação de penas para
crimes cometidos por adolescentes e tráfico de drogas, bem como a limitação das
possibilidades de liberdade condicional —o que não deixa de ser um contrassenso
num país em que o consumo de maconha é legalizado.
O pacote também cria a Secretaria de
Inteligência Estratégica, com a prerrogativa de acessar informações sigilosas
de cidadãos sem a obrigatoriedade de uma decisão judicial, "caso sejam
necessárias para a segurança do país".
Ativistas e siglas de esquerda conseguiram
coletar quase 800 mil assinaturas contra a lei, mais do que o suficiente para
tentar impugná-la nas urnas. O governo, por sua vez, colocou todo o seu peso em
favor da LUC, tendo o próprio Lacalle Pou desempenhado o papel principal na
campanha.
Se o respaldo popular ao novo pacote de leis pode impulsionar o governo, dando-lhe força para avançar em sua agenda de reformas do Estado, o poder de mobilização demonstrado pela oposição prefigura um duro embate nas eleições gerais de 2024.
O inferno são os outros
O Estado de S. Paulo.
Bolsonaro diz que eleição será ‘luta do bem
contra o mal’. Ele estava com Collor e Valdemar.
No domingo passado, o presidente Jair
Bolsonaro lançou ilegalmente a sua campanha pela reeleição durante um ato
político-partidário em Brasília. O evento, organizado pelo PL e financiado com
recursos públicos do fundo partidário, teve a forma de um comício e os
discursos de um comício. E comícios, como determina a Lei Eleitoral, só estão
autorizados a partir do dia 16 de agosto.
Mas, por incrível que pareça, o inequívoco
ato de campanha antecipada foi o que menos chamou a atenção naquela festa fora
de hora. Afinal, todos sabem que Bolsonaro jamais desceu do palanque após a
posse e governa, por assim dizer, calculando o potencial de seus atos e
palavras para atrair ou repelir eleitores, não para melhorar as condições de
vida de todos os brasileiros.
O que merece destaque é o tom do discurso
do presidente no evento, indicativo do que será a tônica de sua campanha. No
palco, ao lado de familiares, ministros de Estado e aliados da estirpe de
Valdemar Costa Neto e Fernando Collor de Mello, Bolsonaro classificou a eleição
presidencial deste ano como uma “batalha espiritual”, uma “luta do bem contra o
mal”, sendo ele, naturalmente, a encarnação do “bem”.
O que está em jogo em 2022 são questões bem
mais terrenas, para as quais Bolsonaro tem poucas respostas a oferecer.
Entende-se, portanto, que, para um incumbente que não tem realizações positivas
para apresentar aos eleitores que justifiquem a sua recondução ao cargo – ao
contrário, há muitos erros a escamotear –, só resta o recurso à narrativa
sobrenatural, tratando todos os muitos milhões de brasileiros que não votam em
Bolsonaro como se fossem a encarnação do demônio.
Já do lado do “bem”, segundo Bolsonaro,
estão ninguém menos que Valdemar Costa Neto e Fernando Collor de Mello. O primeiro,
chefão do PL, partido pelo qual Bolsonaro escolheu concorrer à reeleição, é uma
das figuras mais proeminentes do escândalo do mensalão petista, tendo sido
condenado e preso pelo crime de corrupção; o segundo, ex-presidente da
República, brilha com vergonhoso destaque na história brasileira por ter
sofrido impeachment em razão de um escândalo de corrupção.
O elástico conceito bolsonarista de “bem”
ignora as suspeitas de “rachadinha” que recaem sobre o presidente e seus filhos
Flávio e Carlos Bolsonaro. Ignora também o escândalo de corrupção envolvendo a
aquisição de vacinas em meio à maior tragédia sanitária que já se abateu sobre
o País.
E o que dizer dos pastores evangélicos que
se aninharam no Ministério da
Educação, sob o beneplácito do ministro Milton
Ribeiro e, ao que parece, do próprio presidente da República, para traficar
influência e pedir propina para facilitar o acesso de prefeitos aos recursos do
orçamento para a educação? É esse o “bem” que Bolsonaro afirma representar?
No comício em Brasília, Bolsonaro, ademais,
classificou como “um velho amigo” o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Afirmou ter citado seu nome no voto pelo impeachment da presidente Dilma
Rousseff por um “dever de consciência”. Ou seja, o mesmo Bolsonaro que se
apresenta ao País como a encarnação do “bem” é o indivíduo que diz ter uma
dívida de consciência com um dos mais notórios torturadores da ditadura
militar, o que diz muito sobre sua alma.
Por fim, seria o triunfo do “bem” sobre o
“mal” a reeleição de um presidente que admite, sem meias-palavras, ter engulhos
por ter de cumprir a Constituição? É claro que não.
O bem que o País precisa é o resgate da
política como o meio mais eficiente para a concertação pacífica dos interesses
da sociedade. É o respeito às leis e à Constituição. É a união dos brasileiros
como povo, não como membros de facções irreconciliáveis. É a defesa do meio
ambiente. É a valorização da verdade factual e o respeito à liberdade de
imprensa. É a superação da irresponsabilidade demagógica e a retomada do
diálogo, da confiança e do respeito mínimo entre os cidadãos, mesmo os
divergentes. O bem só terá chance de triunfar, portanto, se Bolsonaro for
derrotado.
Bolsonaro anuncia que eleição será ‘luta do bem contra o mal’. Poucos ilustram de modo tão preciso o conceito bolsonarista de ‘bem’ como Collor e Valdemar Costa Neto
Uma vergonhosa decisão judicial
O Estado de S. Paulo.
Artistas e qualquer cidadão podem se
manifestar sobre política. Papel do TSE é proteger a isonomia nas eleições, não
promover censura ou disparidade de tratamento
Antes do dia 15 de agosto, não se pode
fazer propaganda eleitoral, dispõe a Lei das Eleições (Lei 9.504/1997). Mas
essa restrição logicamente não impede o exercício da liberdade de expressão.
Por isso, causou grande perplexidade a decisão do ministro Raul Araújo, do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), proibindo manifestações políticas de
artistas no festival Lollapalooza e fixando multa de R$ 50 mil por ato de
descumprimento. A liminar, que pretensamente vinha aplicar a Lei das Eleições,
descumpriu a própria legislação eleitoral, além de ser inconstitucional e
contrária à jurisprudência do TSE.
Todo cidadão tem o direito de manifestar
suas preferências políticas. Trata-se de uma liberdade fundamental, que a
legislação infraconstitucional deve respeitar. Por isso, a Lei das Eleições
estabelece que não configura propaganda eleitoral antecipada “a divulgação de
posicionamento pessoal sobre questões políticas, inclusive nas redes sociais”
(art. 36-A, V). No entanto, Raul Araújo entendeu que balançar a bandeira de um
político caracterizaria propaganda político-eleitoral. Tal decisão não tem
nenhum respaldo no Direito.
Mas a liminar foi além. Para o ministro do
TSE, as manifestações contrárias ao presidente Jair Bolsonaro demonstram que
“artistas rejeitam (um) candidato e enaltecem outro”, o que, no seu entender,
caracteriza propaganda eleitoral antecipada negativa, “em detrimento de outro
possível candidato”. É um caso nítido de abuso interpretativo da lei. Sob o
pretexto de fazer valer a legislação eleitoral, o ministro Raul Araújo tentou
impedir o direito de crítica contra os governantes, o que fere a Constituição.
É estranho que, depois de mais de três
décadas do final da redemocratização do País, seja necessário recordar isso.
Todo cidadão tem o direito de criticar os governantes, em privado ou em
público. No Estado Democrático de Direito, não existe o crime – ou qualquer
limitação legal – referente a maldizer o rei. Não há rigorosamente nenhum
problema em xingar Bolsonaro ou qualquer outro governante.
A liminar envolvendo o Lollapalooza também
causou perplexidade por sua discrepância com outras decisões do próprio
ministro Raul Araújo. Na quarta-feira passada, por exemplo, ele rejeitou
caracterizar como propaganda eleitoral antecipada a instalação de outdoors de apoio
a Jair Bolsonaro, espalhados por vários Estados. Pelo que se observa, há dias
em que Raul Araújo tem especial facilidade de enxergar propaganda eleitoral
antecipada, e há outros tantos nos quais os elementos de prova parecem ser
sempre insuficientes.
Essa inconstância interpretativa não faz
bem à Justiça, especialmente ao seu objetivo de pacificação social. A percepção
de que se utilizam, na interpretação da lei, dois pesos e duas medidas diminui
a confiança da população no Judiciário.
Todo esse quadro suscita justificada
preocupação. Afinal, com liberdade de expressão e direitos políticos não se
brinca. Mas o caso tem ainda outra circunstância peculiar e contraditória. A
decisão sobre o Lollapalooza foi tomada a pedido do PL, atual partido do
presidente da República. Paradoxalmente, no mesmo fim de semana em que acusou
artistas de fazerem propaganda eleitoral antecipada, o PL organizou um evento
de lançamento da pré-candidatura de Jair Bolsonaro à reeleição.
A incongruência é manifesta. Artistas não
podem se manifestar politicamente, mas Bolsonaro e sua legenda podem fazer um
evento cuja finalidade era única e exclusivamente defender e apoiar a reeleição
do presidente. No ato do PL, teve até lançamento de slogan: “Capitão do povo”.
Complexa e, muitas vezes, detalhista, a
legislação eleitoral tem várias falhas. No entanto, é preciso admitir que a
responsabilidade por essa disparidade de tratamento não foi da Lei das
Eleições, e sim de quem aplicou a lei. Cabe à Justiça Eleitoral resgatar e
defender o seu propósito de preservar a igualdade de condições nas eleições.
Não há isonomia se, para cada político, há uma interpretação diferente da lei.
O preço do patrimonialismo
O Estado de S. Paulo.
A quantidade de partidos e de recursos
públicos absorvidos pelo Congresso no Brasil é aberrante
Frequentemente vem à tona o tema da reforma
política. Mas o que deve ser reformado? Uma boa abordagem é avaliar o que no
sistema brasileiro é normal e o que é anormal. Pode-se debater os vícios e
virtudes do sistema político (presidencialista), da estrutura legislativa
(bicameral) ou do sistema eleitoral (de representação proporcional), mas essas
engrenagens têm muitos paralelos em outras democracias. O que é absolutamente
anormal é o sistema partidário que as opera.
A quantidade de partidos e de recursos alocados
para sua sustentação e suas campanhas é aberrantemente maior do que nos outros
países. Os dados foram levantados no estudo Quão diferente é o sistema político
brasileiro?.
Entre 33 países, o Brasil tem de longe o
maior número de partidos efetivos (15, enquanto a média é 4,5); o maior custo
por parlamentar (528 vezes a renda média do brasileiro, enquanto a média é 40);
e o maior financiamento público dos partidos (US$ 446 milhões ao ano, enquanto
a média é US$ 65,4 milhões).
O custo do Congresso corresponde a 0,15% do
PIB – a média é 0,04%. Em 2022, serão R$ 14,5 bilhões. Entre os benefícios de
cada parlamentar estão gastos mensais de até R$ 45 mil com alimentação,
passagens, aluguel de veículos e divulgação; R$ 111 mil com equipes de até 25
assessores; até R$ 135 mil de reembolsos com saúde; ou R$ 4,2 mil de
auxílio-moradia.
“Os próprios parlamentares definem o
Orçamento do Legislativo e também os montantes do fundo eleitoral e
partidário”, disse ao Estadão o analista político Bruno Carazza. “E como não há
nenhum outro Poder para fazer o contrapeso, o que se observa é que esses
valores estão crescendo ano após ano. Isso torna a política cada vez mais
atraente: há mais dinheiro no sistema político-partidário e com controles cada
vez mais frouxos.”
O maior arcabouço dessas distorções é a
fragmentação partidária. A comparação internacional evidencia que, quanto maior
o número de partidos, menor o grau de mudanças políticas. A fragmentação
impacta o custo da governabilidade, a capacidade dos partidos de impor uma
coesão entre seus membros e a distribuição de emendas parlamentares. Em relação
aos fundos partidário e eleitoral, é mais negócio para um político compor o
alto escalão de um partido pequeno que o baixo escalão de um grande.
Em ano eleitoral, os candidatos à direita
denunciarão os abusos da esquerda – e vice-versa – e os populistas, a opressão
da elite sobre o povo. Mas há uma forma de abuso que é calculadamente
obnubilada nas disputas políticas e independe de espectros ideológicos ou
sociais: o da classe política sobre os brasileiros. Como disse o cientista
político Barry Ames: “A tragédia do sistema brasileiro não é que beneficia as
elites; o problema é que beneficia primariamente a si mesmo – os políticos e
servidores que operam nele”.
Qualquer reforma política que não enfrente
a fragmentação dos partidos e os privilégios dos seus partidários deve ser
tomada com desconfiança, como uma cortina de fumaça projetada para camuflar,
perpetuar e ampliar seus abusos.
Taxa de investimento ensaia recuperação
tímida e incerta
Valor Econômico
As perspectivas para o futuro são incertas,
elevação da inflação, dos juros e a previsão de crescimento menor jogam contra
Quando o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) divulgou o Produto Interno Bruto (PIB) de 2021, no início
do mês, chamou a atenção o avanço dos investimentos, medido pela Formação Bruta
de Capital Fixo (FBCF). A taxa de investimento em relação ao PIB subiu de 16,6%
em 2020, para 19,2% no ano passado, maior patamar desde 2014. De imediato,
analistas e economistas ficaram animados porque a taxa de investimento elevada
sinaliza mais crescimento à frente.
Quase um mês depois, especialistas
destrincharam o resultado, relativizando a conquista, embora o número ainda seja
animador. O pesquisador associado ao Instituto Brasileiro de Economia da FGV
(Ibre-FGV), Gilberto Borça Jr, detalhou no artigo intitulado “Nem tudo que
reluz é ouro”, publicado no Valor (22/3),
os fatores que elevaram o número. Peculiaridades contábeis e fiscais do Brasil
influenciam o resultado.
O fator mais relevante foi a internalização
das plataformas de exploração e produção de petróleo e gás devido às mudanças
nas regras contábeis que eram estabelecidas pelo Repetro. Para fazer jus aos
benefícios fiscais, essas plataformas eram exportadas “pro forma”, continuando
a operar localmente. Como explica Borça Jr., a operação inflava o saldo
comercial e reduzia o consumo aparente de bens de capital e, portanto, os
investimentos. Em contrapartida, havia o aumento das importações de serviços,
com o aluguel dos equipamentos. Para efeito do PIB, havia maior participação
das exportações e menor investimento.
O processo vem sendo revertido, com a
internalização das plataformas que já operam no país, com o resultado prático
de aumento dos investimentos e do estoque de capital da economia. Ao excluir a
influência dessa operação, Borça Jr. calculou que taxa de investimento a preços
correntes seria um ponto percentual menor, passando dos 19,2% para 18,2%. Ele
chama a atenção também para o fator cambial, que encareceu a importação de bens
de capital.
Mesmo assim, houve crescimento da FBCF e da
taxa de investimento. Mas ainda muito distante dos 24% do PIB atingidos antes
da crise da dívida externa, no início da década de 1980. Ajustando as contas
dos últimos anos, Borça Jr. calcula que a taxa de investimento passa de 16,2%
do PIB em 2019 para 16,3% em 2020 e para os 18,2% no ano passado. Os setores
que puxaram o crescimento foram a construção e máquinas e equipamentos.
A recuperação da taxa de investimento
também foi objeto de análise do Relatório Trimestral de Inflação do Banco
Central (BC), publicado na semana passada. Box a respeito do assunto também
nota a expansão da construção já no segundo semestre de 2020, quando foi
incluída entre as atividades essenciais que seguiriam em operação apesar da
pandemia; beneficiada pela transferência de renda para os mais vulneráveis, o
que estimulou as reformas domésticas, pela queda dos juros e pela demanda de
imóveis maiores em consequência da prática do home office. Em 2021, segundo
Borça Jr., a construção cresceu 12,8%, a maior taxa desde 2011.
Já o aumento da compra de máquinas e
equipamentos foi impulsionado pela elevação das commodities que estimulou a
compra de caminhões e máquinas agrícolas. Estudo do Centro de Estudos de
Mercado de Capitais da Fipe (Cemec-Fipe) aponta que a agricultura e a
construção foram responsáveis por 2/3 do crescimento da produção de bens de
capital entre 2019 e 2021, o que explica a expansão dos investimentos mesmo em
um cenário macroeconômico desfavorável, analisa o coordenador do Cemec-Fipe e
responsável pelo estudo, Carlos Antonio Rocca.
Analisando os dados de investimentos de 472
empresas de capital aberto, o Cemec-Fipe constatou que as ligadas à agricultura
aumentaram em 52% os investimentos entre o fim de 2019 e o terceiro trimestre
de 2021, levando em conta o valor dos ativos imobilizados e intangíveis, o
dobro dos 24% registrados pela média das empresas com capital aberto como um
todo.
As perspectivas para o futuro são incertas. No box do Relatório Trimestral da inflação, o Banco Central traçou um cenário positivo para o investimento com a contínua elevação das commodities e a apreciação cambial. Menciona também a agenda de investimentos em infraestrutura pautada pelas concessões e folga de caixa dos Estados e municípios. Por outro lado, a elevação da inflação, dos juros e a previsão de crescimento menor da economia jogam contra. As taxas altas podem enfraquecer o ímpeto da construção.
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