Correio Braziliense
Por séculos, o homem buscou certeza sobre a
forma do planeta onde vivia, até que astronautas fizeram pela primeira vez a
foto da Terra, vista de longe, no espaço. Aquela foto falou: "a Terra é
redonda". Disse mais: "nosso planeta é pequeno e frágil". O
crescimento econômico, pode desequilibrar o funcionamento da natureza, provocar
mudanças climáticas, levar à extinção de espécies ou talvez da própria vida.
A foto despertou a consciência dos limites
da natureza e dos riscos da marcha insensata do crescimento econômico, podendo
levar a um desastre ecológico. Aquela foto falou, embora a humanidade ainda não
queira escutá-la. Da mesma forma, caminhando conosco na superfície do Planalto
Central o mineiro Orlando Brito fez fotos que nos falaram, embora insistamos em
não perceber que elas nos gritavam.
São dele fotos que passam mensagens mais fortes do que livros e artigos de ciência política tentam nos passar. Por mais que antropólogos nos descrevam a grandeza dos povos indígenas, nenhum consegue passar a nobreza de um cacique, como a foto que Orlando Brito fez de um jovem líder indígena, nos jardins do Congresso. Da mesma forma que, no planetário, sua foto de Darcy Ribeiro conversando com o então deputado Cacique Mario Juruna. Apesar de todo humanismo do Darcy, que amava e respeitava os índios, no instante fotografado, ele mostra o indicador em riste apontando para o cacique, passando a ideia de uma mensagem de sabedoria, que parecia uma ordem; Juruna, por sua vez, ouve com a atenção de quem recebe, elabora e vai contestar sem submissão.
Orlando Brito captou em um instante todos
os encontros entre homem branco e indígena, ao longo de séculos e no tempo
histórico em que a foto foi feita. Nesse caso, dois personagens marcantes,
respeitosos entre si, mas com a carga dos séculos que colocam o branco em
superioridade, mas mostra também os novos tempos, as conquistas de décadas
recentes dos indígenas tomando consciência da força que carregam. Sentados lado
a lado, o sábio branco e o cacique Juruna. As fotos de Orlando parecem
instantâneas da história, elas mostram um passado carregado e um futuro
previsível.
Quando fez a foto do plenário da Câmara dos
Deputados vazio por causa do arbítrio do poder militar, sem uma palavra, sem
qualquer análise escrita, ele consegue lembrar os anos anteriores da ditadura
que assustam com os riscos do futuro adiante. Naquela foto, ele congelou a
história. Quem a viu publicada, no dia seguinte, lembrou do passado e imaginou
o futuro. Alguns tomaram a decisão de buscar o exílio e outros optaram pela
luta armada como único caminho para retomar a democracia. Sem texto escrito,
sem um discurso pronunciado, Orlando Brito mudou a vida de milhões e deu
encaminhamento à luta política no país. É possível até que alguns arrependidos
passassem, então, a defender a abertura que traria a democracia de volta.
A foto de Ulysses Guimarães caminhando solitário
no gramado, tendo o Congresso ao fundo e ninguém mais na paisagem, passou a
imagem da tragédia de uma democracia frustrada. O Congresso fora aberto, mas
visto de fora parecia apenas um prédio, e Ulysses parecia um Dom Quixote
caminhante. Da mesma forma, ele passa esperança na cara de Heloisa Helena
falando no Senado com a força de seus olhos e de uma veia dilatada na testa.
Esperança que vem também das fotos que discretamente ridicularizavam os
ditadores dançando ao redor da mesa onde decidiam o rumo do crescimento
econômico selvagem, definiam prisões e morte, a destruição da Amazônia.
Orlando Brito foi um mágico que fazia a
realidade aparecer, graças ao sentimento de perceber a riqueza trágica do
momento e conhecer como manipular sua Leica conforme a luz do momento. Dizem
que o fotógrafo precisa de sorte para estar no momento certo, mas de nada lhe
adianta a sorte sem o sentimento, a sagacidade e o conhecimento técnico. Brito
tinha tudo isso, não precisava da sorte, porque ele ia em busca dela e ela dele,
com riqueza de cada momento.
Nós tivemos sorte de ver pelos olhos e
lentes do Orlando, tê-lo presente no lugar certo com sua câmera e sua
sensibilidade. Agora, temos a tristeza de sua ausência, e de sabermos que ele
não vai mais fazer as fotos que nos falavam. Felizmente, as que ele fez
continuarão falando, trazendo consciência dos fatos e tristeza por lembrarmos
dele. Obrigado, Orlando Brito, por continuar nos falando.
*Cristovam Buarque - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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