Folha de S. Paulo
Noção de culpa coletiva renasce dirigida
aos russos, por cancelamento de indivíduos
Diese Schandtaten: Eure Schuld!
("Essas atrocidades: culpa sua!"). A frase acusadora, estampada sobre
imagens dos campos da morte nazistas, surgiu nos cartazes de uma campanha
publicitária patrocinada pelas autoridades americanas de ocupação na Alemanha
do imediato pós-guerra. A noção de culpa coletiva renasce agora, mas dirigida
aos russos, por atos de cancelamento de indivíduos: o tradicional torneio
de Wimbledon acaba de anunciar que os tenistas russos serão barrados da
competição.
"Eu não represento o Kremlin; represento Dostoiévski e Tchekhov, represento a cultura, o povo", registrou Daniil Dubov, um dos 44 enxadristas de ponta russos signatários de uma carta aberta de protesto contra a guerra de Putin. O tenista russo Andrey Rublev, um dos dez melhores do mundo, escreveu "Guerra não, por favor", na lente da câmera que filmava seu triunfo no torneio de Dubai, no final de fevereiro. As palavras deles importam para os russos e incomodam o Kremlin, que pode reagir com represálias, mas não para os promotores da culpa coletiva.
A noção de culpa coletiva adquiriu estatuto
filosófico por iniciativa do teólogo luterano Martin Niemoller que, em outubro
de 1945, redigiu a Declaração de Culpa de Stuttgart, do conselho da igreja
evangélica na Alemanha. O texto não mencionava o apoio explícito das igrejas
protestantes do país ao regime nazista, em seus primeiros anos, escolhendo
universalizar a responsabilidade.
A culpa coletiva teve mil e uma utilidades.
Niemoller serviu-se dela para diluir sua responsabilidade pessoal de
antissemita militante que celebrou a ascensão de Hitler e só se converteu em
dissidente quando o regime impôs a nazificação das igrejas protestantes. EUA,
Reino Unido e URSS, potências ocupantes, utilizaram-se dela para ocultar o
recrutamento de centenas de cientistas antes filiados ao partido nazista,
inclusive criminosos de guerra, que desempenhariam papéis destacados em
programas militares e aeroespaciais.
A pedagogia penitencial da culpa coletiva
produziu um efeito paradoxal. Fartos da pregação acusatória, os alemães apoiaram
a Vergangenheitspolitik ("política do passado") do chanceler Konrad
Adenauer (1949-63), que anistiou milhares de nazistas e integrou alguns deles a
seu governo, inclusive o chefe de gabinete Hans Globke, um dos avalistas
jurídicos das Leis de Nuremberg.
Wimbledon simula atender pedidos de
esportistas ucranianos, como Olga Savchuk, capitã da equipe feminina nacional,
que tocou a antiga nota da culpa coletiva. De fato, opera sob pressão do
governo britânico. Boris Johnson, esperto, compreendeu o impacto midiático da
política simbólica nessa era das redes sociais e conectou a noção de culpa
coletiva aos impulsos de cancelamento de indivíduos tão ao gosto da militância
virtual. Nesse caso, a Ucrânia, as cidades arrasadas, os refugiados nada valem.
Trata-se, unicamente, de cumprir objetivos de propaganda governamental.
Atrás da noção de culpa coletiva esconde-se
uma curiosa interpretação do conceito de representação. Para lavar sua
biografia, Niemoller sustentava que todos os alemães representavam o nazismo.
Wimbledon está dizendo que Andrey Rublev e cada indivíduo russo representam o
Kremlin. Não é muito diferente do estandarte da "culpa coletiva dos
brancos" pelo sistema escravista, uma arma política empregada pelos
sacerdotes da nova Inquisição identitária.
É fácil adivinhar as consequências práticas
do cancelamento dos russos como indivíduos. Na Rússia, as exclusões auxiliam a
campanha de Putin destinada
a convencer o povo de que ele mesmo representa a nação inteira. Fora dela,
enfraquecem a legitimidade das sanções econômicas e políticas contra o Estado
russo, ferramentas indispensáveis para abreviar a guerra de agressão,
confundindo-as com penalidades que miram indivíduos. O Kremlin agradece.
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