O Estado de S. Paulo
A democracia perde quando o debate foge dos fatos e abraça o universo ficcional dos moinhos de vento
A imigração certamente não é o problema
mais sério da França. Todos os dias chegam à União Europeia trabalhadores de
várias nacionalidades e qualificações. Segundo estudos da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE – o clube dos países ricos –, os
imigrantes movimentam a economia em países onde a população está envelhecendo.
A seleção de futebol que ganhou a Copa do Mundo é o emblema da nova França
multicultural.
O segundo turno entre Emmanuel Macron e
Marine Le Pen será amanhã – e a imigração foi tema no debate eleitoral francês.
“Le Pen suavizou seu discurso, mas sua posição histórica – fechar as fronteiras
francesas – atentaria contra um dos princípios básicos da União Europeia, que é
a livre circulação de pessoas”, diz o cientista político Andrei Roman,
entrevistado no minipodcast da semana. Ele é CEO do Atlas, empresa de análise
de dados que atua em eleições em vários países.
O Brasil tem problemas seriíssimos – inflação, corrupção, pobreza – e a falta de liberdade de expressão não está entre eles. O tema, no entanto, ganhou relevância ao longo desta semana. Em decisão “pedagógica”, como observou o Estadão em editorial, o Supremo Tribunal Federal condenou o deputado federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de cadeia, “por usar de violência ou grave ameaça para impedir o exercício dos Poderes”.
Para atiçar uma discussão falaciosa sobre
liberdade de expressão, o presidente Jair Bolsonaro peitou o STF ao quebrar uma
promessa de campanha e conceder indulto ao deputado criminoso. De acordo com o
editorial do Estadão, “não existe liberdade de expressão para atacar a
democracia”.
Um traço comum entre Brasil e França é a
existência de políticos que usam a tática de desviar o assunto para temas
irrelevantes, mas com apelo popular – os “moinhos de vento”. 60% dos franceses
se preocupam com a imigração, segundo pesquisa do Atlas. “Os benefícios
econômicos não são óbvios para grande parte dos eleitores, e a direita radical
usa isso”, diz Roman.
É uma tática disseminada. Na Hungria e na
Polônia, candidatos à presidência inventaram um complô internacional LGBTQIA+.
Viktor Orbán e Andrzej Duda venceram seus pleitos usando esse discurso. A
última pesquisa do Atlas, no entanto, aponta uma vitória de Macron por 53 a 47.
Mais uma vez os franceses deverão fugir do radicalismo.
As eleições de outubro dirão se Bolsonaro
terá sucesso ao desviar a campanha dos problemas sérios. Qualquer que seja o
resultado do pleito, a democracia perde quando o debate foge dos fatos e abraça
o universo ficcional dos moinhos de vento.
*Escritor, professor da Faap e doutorando em ciência política na Universidade de Lisboa
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