O Globo
Quem cantou a pedra foi Heráclito de Éfeso,
há mais de 2.500 anos: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. As águas já
são outras, e as pessoas não são menos líquidas. Nelson Motta traduziu isso em
versos: “Tudo o que se vê não é/Igual ao que a gente viu há um segundo”.
Quem preferiu Bolsonaro em 2018 deu seu
voto a alguém que prometia acabar com a reeleição, adotar critérios técnicos na
escolha de ministros, reduzir o número de ministérios e parlamentares,
privatizar estatais, combater a corrupção.
O eleitor que apertou o 17 em 2018 e vier a
apertar o 22 em outubro deste ano não estará escolhendo apenas outro número,
mas outra pessoa. Que talvez se valha da concepção de Heráclito (e de Nelson
Motta) para justificar o desejo de permanecer no cargo: o Jair de antes não é,
definitivamente, o de agora.
Aquele se dizia antiestablishment; este chafurda nas velhas práticas clientelistas que parecem alicerçar nossa vida política desde antes do bigue-bangue. Aquele nomeou Sergio Moro para o Ministério da Justiça; este enterrou a Lava-Jato. E, por critérios eminentemente técnicos, entregou a gestão da Saúde ao general Eduardo Pazuello, a da Educação a Abraham Weintraub e ao pastor Milton Ribeiro, a do Meio Ambiente a Ricardo Salles. Não enxugou a Esplanada nem o Congresso. Quanto à corrupção, o troca-troca na Polícia Federal fala por si.
Quem optou por um Jair cristão em 2018 terá
de rever seus conceitos do que seja cristianismo para votar neste que hoje se sabe
ser desprovido de qualquer noção de empatia, solidariedade e compaixão,
responsável direto pela morte de milhares de brasileiros durante a pandemia.
O eleitor do Lulinha Paz & Amor de 2002
votou num Pai dos Pobres em 2006, no Poste 1 em 2010, no Poste 1 com
estelionato em 2014 e no Poste 2 em 2018. Foram cinco Lulas diferentes — dois
na ribalta, dois nos bastidores —, nenhum melhor que o anterior. O de 2022
mantém a tradição: não fez autocrítica, não mudou o discurso populista, não
atualizou sua visão de mundo. O jingle de campanha poderia ser “Non, je ne
regrette rien”: nem o mensalão, nem os bilhões desviados, nem a aposta no
dissenso. Lula continua estatizante (acha que é função do Estado entregar carta
e furar poço de petróleo), paternalista (pretende revogar a reforma
trabalhista), irresponsável (prega o fim do teto de gastos).
Se em 2018 havia um Lula disposto a
governar em off, de dentro de um presídio (força de expressão: de uma sala com
privilégios, na PF), pelo menos era um condenado, ciente de que o
descumprimento da lei gera consequências. Em 2022 é um homem livre para
concluir o que começou, com o agravante da certeza da impunidade.
Eleger o Bolsonaro 2.2 será reforçar o “Eu
autorizo” (a acabar com o Estado de Direito). Eleger o Lula 2.2 será confirmar
que o crime compensa. Em ambos os casos, colocar no fundo do poço uma
retroescavadeira.
Se a escolha se afunilar nesses dois,
estaremos diante de versões pioradas. Até de nós próprios, eleitores, que não
teremos a desculpa de dizer que não sabíamos em quem estávamos votando.
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