O Estado de S. Paulo
A Otan, que tinha perdido a sua
justificativa, ganha uma nova: a de defender os valores da liberdade e da
democracia.
O mundo tal como configurado no século 20,
após a Segunda Guerra, com suas fronteiras e diferentes concepções geopolíticas
e militares, ruiu. Em certo sentido, o século 21 começa agora. Nada mais será
como antes, seja em termos econômicos, geopolíticos, militares, diplomáticos ou
financeiros. Cadeias de produção globais deverão ser repensadas, colocando-se
como questões estratégicas nacionais de defesa, não apenas no sentido militar,
mas também sanitário, industrial e mineral. O mundo será redesenhado.
No pós-guerra, numa Europa em ruínas, surgem duas potências que vão disputar a hegemonia mundial. Os EUA mostraram todo o seu poderio militar, sua pujança econômica, sua coesão social e sua liderança mundial. A URSS conseguiu reverter sua derrota militar na primeira invasão alemã e, com enorme espírito de sacrifício, terminou afirmando-se como grande potência. Por outro lado, o Reino Unido vive o seu estertor imperial, exaurido, perdendo suas colônias, com enormes problemas sociais, financeiros e econômicos. A França, ainda naquele então se apresentando como um “império”, sofre o mesmo destino, particularmente em razão de sua fragorosa derrota militar.
Dois blocos se constituíram, suas
respectivas esferas de influência sendo desenhadas por sua presença militar,
uma vez que os acordos diplomáticos, no essencial, vieram a referendar uma
situação de fato. A Europa Ocidental é a que se formou pela presença das tropas
aliadas, chegando a uma parte da Alemanha, Berlim tendo sido conquistada pelos
soviéticos. Estes ocuparam os países do Leste Europeu e os Bálticos, impondo
sua dominação, com utilização da força político-policial e, quando necessário,
a militar, cujas expressões foram as invasões da Hungria e da Checoslováquia, a
presença político-militar na Polônia e a crise de Berlim.
Note-se que os EUA reconheceram na Europa
os Estados que enfrentaram os nazistas, não se impondo em seus assuntos
internos, salvo na Alemanha, onde mantiveram uma força militar que se retirou
progressivamente dos assuntos nacionais, nascendo daí a poderosa Alemanha
Ocidental. Diga-se de passagem que demoraram a se dar conta do que estava
acontecendo, pois os russos eram tidos por amigos. Entre outros, graças ao
alerta do diplomata George Kennan, em seu célebre “longo telegrama”.
Tiveram, então, dois problemas a serem
enfrentados. Um era o militar, o de uma força de contenção à ameaça comunista,
cujas tropas já ocupavam uma parte da Europa. O resultado desse entendimento
foi a criação da Otan, funcionando como uma força de dissuasão. O outro era
político, voltado para a recuperação econômica e social da Europa Ocidental,
graças ao Plano Marshall. Não nos esqueçamos de que a URSS estendia seus
tentáculos por todo o mundo, graças aos partidos comunistas que lhe eram
enfeudados. Eram particularmente importantes na França e na Itália.
Ocorre, porém, que, com a queda do Muro de
Berlim, em 1989, o perigo comunista desaparece, a URSS se fragmenta e os países
do Leste Europeu e os Bálticos passam a ter uma vida nacional própria, podendo
escolher o seu destino. A pergunta que se colocou naquele então foi o que fazer
com uma aliança atlântica que tinha perdido o seu significado. Contra quem
estaria voltada? Contra quem iria eventualmente guerrear? Uma opção teria sido
aproveitar a fraqueza russa, afirmando para toda a Europa uma convivência
pacífica.
A aliança militar comunista, concretizada
no Pacto de Varsóvia, se desfez, tornando possível uma desmilitarização
progressiva do continente europeu. Tal não foi, contudo, a opção americana,
tendo preferido ampliar a sua presença militar, incorporando os antigos países
comunistas. Em outras palavras, cercou militarmente uma Rússia que nem mais
comunista era.
O medo russo de o país ser invadido,
próprio de sua história, tornou-se novamente presente. Putin efetuou um
poderoso esforço de rearmamento e de profissionalização de suas Forças Armadas.
De um lado, voltou-se contra a Otan, de outro, apresentou uma nova narrativa, a
eurasiana, baseada em sua luta contra o Ocidente e os seus valores, sua ideia
de império, mesmo de superioridade eslava, sob influência da Igreja Ortodoxa.
Segundo essa nova concepção, a Rússia deveria recomeçar a se impor ao mundo,
sendo sua etapa preliminar a conquista da Ucrânia, podendo posteriormente ser
estendida a outros países, como os Bálticos. Contava que os ucranianos se
submeteriam por serem eslavos e ortodoxos, em sua imensa maioria. Enganaram-se
rotundamente.
Putin surge, assim, mundialmente como um
autocrata, secundado por espiões e militares inescrupulosos. A destruição da
Ucrânia, o bombardeio das populações civis, mulheres e jovens violadas e
assassinatos coletivos são uma amostra da crueldade reinante. Por uma estranha
ironia da História, a Otan, que tinha perdido a sua justificativa, ganha uma
nova: a de defender os valores da liberdade e da democracia. Putin deu aos EUA
e a seus aliados a narrativa que lhes faltava. Prestou-lhes um imenso serviço.
*Professor de filosofia na UFRGS.
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