segunda-feira, 25 de abril de 2022

Denis Lerrer Rosenfield*: A narrativa da guerra

O Estado de S. Paulo

A Otan, que tinha perdido a sua justificativa, ganha uma nova: a de defender os valores da liberdade e da democracia.

O mundo tal como configurado no século 20, após a Segunda Guerra, com suas fronteiras e diferentes concepções geopolíticas e militares, ruiu. Em certo sentido, o século 21 começa agora. Nada mais será como antes, seja em termos econômicos, geopolíticos, militares, diplomáticos ou financeiros. Cadeias de produção globais deverão ser repensadas, colocando-se como questões estratégicas nacionais de defesa, não apenas no sentido militar, mas também sanitário, industrial e mineral. O mundo será redesenhado.

No pós-guerra, numa Europa em ruínas, surgem duas potências que vão disputar a hegemonia mundial. Os EUA mostraram todo o seu poderio militar, sua pujança econômica, sua coesão social e sua liderança mundial. A URSS conseguiu reverter sua derrota militar na primeira invasão alemã e, com enorme espírito de sacrifício, terminou afirmando-se como grande potência. Por outro lado, o Reino Unido vive o seu estertor imperial, exaurido, perdendo suas colônias, com enormes problemas sociais, financeiros e econômicos. A França, ainda naquele então se apresentando como um “império”, sofre o mesmo destino, particularmente em razão de sua fragorosa derrota militar.

Dois blocos se constituíram, suas respectivas esferas de influência sendo desenhadas por sua presença militar, uma vez que os acordos diplomáticos, no essencial, vieram a referendar uma situação de fato. A Europa Ocidental é a que se formou pela presença das tropas aliadas, chegando a uma parte da Alemanha, Berlim tendo sido conquistada pelos soviéticos. Estes ocuparam os países do Leste Europeu e os Bálticos, impondo sua dominação, com utilização da força político-policial e, quando necessário, a militar, cujas expressões foram as invasões da Hungria e da Checoslováquia, a presença político-militar na Polônia e a crise de Berlim.

Note-se que os EUA reconheceram na Europa os Estados que enfrentaram os nazistas, não se impondo em seus assuntos internos, salvo na Alemanha, onde mantiveram uma força militar que se retirou progressivamente dos assuntos nacionais, nascendo daí a poderosa Alemanha Ocidental. Diga-se de passagem que demoraram a se dar conta do que estava acontecendo, pois os russos eram tidos por amigos. Entre outros, graças ao alerta do diplomata George Kennan, em seu célebre “longo telegrama”.

Tiveram, então, dois problemas a serem enfrentados. Um era o militar, o de uma força de contenção à ameaça comunista, cujas tropas já ocupavam uma parte da Europa. O resultado desse entendimento foi a criação da Otan, funcionando como uma força de dissuasão. O outro era político, voltado para a recuperação econômica e social da Europa Ocidental, graças ao Plano Marshall. Não nos esqueçamos de que a URSS estendia seus tentáculos por todo o mundo, graças aos partidos comunistas que lhe eram enfeudados. Eram particularmente importantes na França e na Itália.

Ocorre, porém, que, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, o perigo comunista desaparece, a URSS se fragmenta e os países do Leste Europeu e os Bálticos passam a ter uma vida nacional própria, podendo escolher o seu destino. A pergunta que se colocou naquele então foi o que fazer com uma aliança atlântica que tinha perdido o seu significado. Contra quem estaria voltada? Contra quem iria eventualmente guerrear? Uma opção teria sido aproveitar a fraqueza russa, afirmando para toda a Europa uma convivência pacífica.

A aliança militar comunista, concretizada no Pacto de Varsóvia, se desfez, tornando possível uma desmilitarização progressiva do continente europeu. Tal não foi, contudo, a opção americana, tendo preferido ampliar a sua presença militar, incorporando os antigos países comunistas. Em outras palavras, cercou militarmente uma Rússia que nem mais comunista era.

O medo russo de o país ser invadido, próprio de sua história, tornou-se novamente presente. Putin efetuou um poderoso esforço de rearmamento e de profissionalização de suas Forças Armadas. De um lado, voltou-se contra a Otan, de outro, apresentou uma nova narrativa, a eurasiana, baseada em sua luta contra o Ocidente e os seus valores, sua ideia de império, mesmo de superioridade eslava, sob influência da Igreja Ortodoxa. Segundo essa nova concepção, a Rússia deveria recomeçar a se impor ao mundo, sendo sua etapa preliminar a conquista da Ucrânia, podendo posteriormente ser estendida a outros países, como os Bálticos. Contava que os ucranianos se submeteriam por serem eslavos e ortodoxos, em sua imensa maioria. Enganaram-se rotundamente.

Putin surge, assim, mundialmente como um autocrata, secundado por espiões e militares inescrupulosos. A destruição da Ucrânia, o bombardeio das populações civis, mulheres e jovens violadas e assassinatos coletivos são uma amostra da crueldade reinante. Por uma estranha ironia da História, a Otan, que tinha perdido a sua justificativa, ganha uma nova: a de defender os valores da liberdade e da democracia. Putin deu aos EUA e a seus aliados a narrativa que lhes faltava. Prestou-lhes um imenso serviço.

*Professor de filosofia na UFRGS.

Nenhum comentário: