segunda-feira, 25 de abril de 2022

Miguel de Almeida: Milagres existem

O Globo

A extrema direita jamais escondeu sua pulsão pela morte. Tampouco seu maior instrumento — a violência física.

Em um só exemplo, o que Putin faz contra os ucranianos.

Parte do universo religioso tem seu quinhão de inferno em seu acasalamento oportunista com o discurso direitista. De padres a pastores, principalmente, há um apadrinhamento — bênção? — ao ódio, à cizânia e inconformismo autoritário diante de seu mundo idealizado.

Papa Francisco começa a punir padres pedófilos, eliminando as “más ovelhas” de seu rebanho, mas no Brasil se invoca a figura da intolerância religiosa quando se tenta investigar os pastores do MEC.

A religião soa como um biombo para a ocultação de esqueletos. Na Rússia, o arcebispo da Igreja Ortodoxa, em nome da Virgem Maria, apoia a fratricida invasão da Ucrânia empreendida por Putin. Enxerga na luta um corpo a corpo contra a alegada decadência do Ocidente, estampada principalmente pelas paradas gays. Tá. Por isso, tudo bem matar crianças em orfanatos e idosos em asilos e doentes em hospitais... O arcebispo russo já colhe ventos contrários dos ortodoxos ucranianos e de outras regiões. “O Patriarca de Moscou não está engajado na teologia, mas simplesmente interessado em apoiar a ideologia de Estado”, atestou o arcebispo Volodymyr Melnichuk, em Udine, na Itália.

Vamos ficar mais perto. No Brasil, o discurso bozofrênico da violência encontra apoio nos pastores da situação. Adulados pelas prebendas, como isenções de impostos, não se tem notícia de que tais religiosos se oponham ao liberou geral da circulação de armas legislado pelo governo federal. Difícil imaginar que Jesus Cristo, tão lembrado nas palavras de ordem dos pastores, apoiasse o armamento indiscriminado da população. E mais. Em plena pandemia, ainda tentaram manter seus templos abertos, em busca de um rebanho doador de dízimos. Como se diz, isso seria coisa de um bom cristão?

A vingança divina veio rápida. O ministro André Mendonça, acusado de traição e cobrado pelos evangélicos por seu voto de condenação ao deputado Daniel Silveira, deu nome aos bois. “Como cristão, não creio tenha sido chamado para endossar comportamentos que incitam atos de violência contra pessoas determinadas; e [b] como jurista, a avalizar graves ameaças físicas contra quem quer que seja. Há formas e formas de se fazerem as coisas”, tuitou o ministro evangélico, que chegou ao cargo apoiado por parceiros de crença.

Mendonça, em poucos caracteres, largou Malafaia e grupo pendurados na brocha. Ao contrário de muitos pastores, deixou explícito não apoiar o instrumento da violência como ferramenta de conversão ou método de convencimento ideológico. Porque as ameaças do deputado não podem ser confundidas com defesa de tese acadêmica ou estribilho de samba. São, perdigoto sobre perdigoto, perigosas ameaças à civilização contemporânea — aquela baseada em tolerância e respeito ao semelhante.

O caminho trilhado pelo parlamentar bombado abre espaço para algo semelhante à defesa da invasão russa na Ucrânia (não é que ela é apoiada pelos bozominions?) ou a uma repetição da Inquisição Católica em sua perseguição aos dissidentes do credo. Um cheiro de morte surge escondido entre tais gritos de aleluia.

Pela primeira vez na Era Bozofrênica, se escuta um apelo contrário à pulsão de morte ecoado de dentro do templo direitista. É cedo ainda para dizer, mas não deixa de ser uma bonança o ministro evangélico votar contra o incentivo à violência física (não é figura de retórica: o deputado clamou que os juízes do STF fossem agredidos). Não apenas ao se posicionar na Corte, como principalmente ao se defender dos ataques dos próceres evangélicos, cujas declarações pós-julgamento colocam a ideologia acima de qualquer ensejo teológico.

É luta política com verniz religioso. Nada cristão. O deputado não traz um conteúdo revolucionário, como os sicários ou zelotes, inimigos dos domínios romanos, para ser fielmente defendido pelos políticos da bancada evangélica.

O voto e a justificativa do ministro Mendonça sugerem haver uma discordância entre as denominações terrivelmente evangélicas. Dissenso que mostra a diferença de interpretação nos instrumentos de luta — não à liberdade de violência e ao livre-arbítrio do incentivo ao ódio.

Começa a haver de fato uma demarcação de terreno entre os fiéis cristãos e os aproveitadores do templo? Nada indica que haja verdadeiramente um racha entre a extrema direita, com seu discurso de constante clivagem, e a pregação política de parte dos pastores. Mas o tuitado ataque de consciência do ministro Mendonça, que lembrou outras maneiras de “fazer as coisas”, se posiciona de maneira contundente à opção pela incivilidade pregada por Silveira e apoiada pelo pensamento miliciano.

Talvez os milagres existam.

 

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