O Globo
A incrível história de um país que, diante
de ameaças recorrentes à democracia perpetradas pelo presidente da República,
assiste a pré-candidatos desmoralizarem partidos, biografias e a política.
Parece sinopse de filme ruim, mas foi a quinta-feira real oficial de um Brasil
em que presidenciáveis entram e saem de legendas, desistem e voltam atrás em
campanhas, traem e são traídos. Em paralelo, Jair Bolsonaro retoma a
verborragia autoritária dentro do Palácio do Planalto, com direito a nota de
exaltação ao golpe militar de 1964 assinada pelos três comandantes das Forças
Armadas e à exoneração do ministro da Defesa, um general da reserva, para
compor a chapa à reeleição.
As surpreendentes movimentações políticas de ontem encerram mais uma semana difícil para a democracia brasileira. No domingo, artistas, juristas e formadores de opinião levantamos a voz contra o retorno da censura, marca da ditadura militar, por obra de decisão de um membro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O ministro Raul Araújo concedeu o pedido do PL para que cantores fossem impedidos de manifestar preferências políticas num festival de música. O presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, anunciou a intenção de levar o caso ao plenário, mas o arquivamento inviabilizou a (desejável) construção de jurisprudência a favor da liberdade de pensamento, expressão e manifestação. Seguimos sob o risco de cerceamento do exercício democrático por canetadas monocráticas de juízes de norte a sul do país.
Na terça-feira passada, a Anistia
Internacional elencou em relatório sobre direitos humanos no mundo as
fragilidades em que a população brasileira está mergulhada. Lembrou que, em 2021,
o país seguiu em crises: sanitária, pela escalada de mortes por Covid-19;
econômica, com atividade fraca e inflação galopante; social, pelo desemprego,
pela fome, pela desatenção aos povos tradicionais; ambiental, com aumento do
desmatamento e falta de política de enfrentamento às mudanças climáticas. E
arrematou: “As autoridades federais promoveram discursos e manifestações que
ameaçavam o Estado de Direito. Em várias ocasiões, como na comemoração oficial
do Dia da Independência do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tentou debilitar
o STF e questionou o sistema eleitoral”.
A democracia brasileira está fragilizada.
Nos últimos anos, sociedade civil e parte do mundo político chamaram a atenção
para a urgência da defesa do regime que o país recuperou no fim dos anos 1980,
após mais de duas décadas de ditadura. Ensaiou-se a formação de uma frente
ampla democrática capaz de derrotar o projeto de destruição de um bolsonarismo
enraizado no Executivo, no Legislativo e nas instituições de controle,
investigação e na Justiça. Favorito nas pesquisas eleitorais, o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato pelo PT, rascunhou essa aliança ao
compor chapa com um antigo adversário, o ex-tucano Geraldo Alckmin, agora no
PSB.
Outras forças políticas se apresentaram
como alternativa à polarização Lula-Bolsonaro, numa terceira via que está
demorando a se aprumar. Ontem, a candidatura de Sergio Moro, empacado num
terceiro lugar nada competitivo, implodiu. O ex-juiz e ex-ministro trocou o
Podemos, a que se filiara há quatro meses, pelo União Brasil, para disputar
vaga de deputado federal. Sabotado no próprio ninho, João Doria, vencedor das
festejadas prévias do PSDB em 2021, desistiu de deixar o governo de São Paulo e
se candidatar à Presidência para, em seguida, voltar atrás. Traições definem as
movimentações que, nas palavras do cientista político Sergio Abranches, “são a
prova de que os partidos, com raras exceções, são rótulos vazios que apenas
cumprem o papel de carregar candidaturas”.
É tragédia para a democracia agravada por
um Jair Bolsonaro que, após breve silêncio, ressuscitou os ataques ao STF e ao
sistema eleitoral; acolheu Daniel Silveira, o parlamentar que se refugiou na
Câmara dos Deputados para não cumprir decisão do ministro Alexandre de Moraes; ridicularizou
o uso de máscaras e vacinas contra a Covid-19. O presidente celebrou a
exoneração de uma dezena de ministros e outros membros do governo para disputar
a eleição. Se bem-sucedidos, manterão o bolsonarismo vivo no Congresso Nacional
e nos estados, ainda que o presidente não seja reeleito.
Para completar, os comandantes do Exército,
da Marinha e da Aeronáutica assinaram com o ministro da Defesa, agora afastado,
uma nota de exaltação ao golpe de 1964, que faz 58 anos. O texto —mentiroso ao
reivindicar legado de paz, liberdade e democracia para um regime que produziu
brutalidade, repressão e desigualdade — escancara a politização das autoridades
militares. Outra evidência de uma fragilidade democrática que protagonistas da
política brasileira não parecem reconhecer. Comportamento de quinta.
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