EDITORIAIS
Desistência
de Moro afunila opções de centro
O Globo
A
decisão de Sergio Moro de trocar o Podemos pelo União Brasil e, principalmente,
a candidatura ao Planalto por uma à Câmara comprova que a corrida eleitoral
deste ano, assim como todas as demais, ainda guarda surpresas. Até o momento, o
ex-juiz era o pré-candidato de centro mais bem colocado nas pesquisas, com
pontuação em torno de 7%.
Em
movimento aparentemente calculado, o tucano João Doria ameaçou abandonar a
disputa pela Presidência para, em questão de horas, voltar atrás e anunciar que
sairá do governo de São Paulo para concorrer. Com a desistência de Moro, terá
de provar que sua candidatura tem condição de sair do chão.
O
jogo ainda está em aberto, e toda atenção agora estará voltada para o chacoalho
prestes a ocorrer nas pesquisas de intenção de voto. A esperança de Doria é
quebrar a polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o
presidente Jair Bolsonaro (PL), os dois primeiros colocados.
Apesar
das conquistas inegáveis de seu governo, seu desempenho sofrível tem sido
insuficiente para ultrapassar até a margem de erro. Em matéria de rejeição, ele
só perde para Bolsonaro, no máximo também para Lula. O efeito no eleitorado da
encenação de ontem ainda é uma incógnita, mas não será nada difícil a pantomima
enfraquecer ainda mais a candidatura Doria.
Moro, em contrapartida, antes de engatar na campanha para deputado federal, deveria explicar os motivos que o levaram a desistir. Embora seu poder de transferir votos seja desconhecido, poderia também apontar quem será seu candidato (logicamente, nem Lula nem Bolsonaro). Parte de seus eleitores deverá optar por outros nomes de centro, campo em que estão Doria, a emedebista Simone Tebet e, mais bem colocado que ambos, o pedetista Ciro Gomes (com ao redor de 7%). Não será desprezível, claro, a migração em direção a Bolsonaro, hoje porta-voz do sentimento antipetista.
A
desistência de Doria abriria a possibilidade à candidatura do governador do Rio
Grande do Sul, Eduardo Leite, pelo PSDB. O gaúcho perdeu as prévias tucanas
para o paulista, mas nunca desistiu da Presidência. Chegou a avaliar a saída do
partido para ser candidato por outra legenda, opção que acabou descartando.
Leite tem um perfil distinto de Doria. É um dos postulantes com menor rejeição
e também um dos menos conhecidos. Isso lhe dá oportunidade de se apresentar na
campanha como novidade, numa eleição em que a rejeição ao atual governo permite
antever a presença do espírito de mudança.
Tudo,
como se vê, continua indefinido. E ainda faltam sete meses para a abertura das
urnas. Se — eis a grande incógnita — houver mesmo afunilamento das candidaturas
alternativas a Lula e Bolsonaro num único nome, ainda haverá o desafio de superar
um dos dois líderes para chegar ao segundo turno.
Antes
da decisão de Moro, o nome a bater era Bolsonaro, que soma em torno de 30% das
preferências. Em ascensão no último levantamento e com a provável chegada de
apoiadores que estavam com o ex-juiz, o presidente deverá se fortalecer. Criar
uma candidatura alternativa à polarização continua uma missão difícil, embora
não impossível. A desistência repentina de Moro e a hesitação oportunista de
Doria abrem, sem dúvida, caminhos a explorar.
Nota
do Ministério da Defesa distorce os fatos para elogiar o Golpe de 1964
O Globo
Não
é por ter acontecido há 58 anos — e, portanto, por não estar na memória da
maioria dos brasileiros — que a história do Golpe Militar de 1964, que
instaurou duas décadas de uma ditadura sangrenta no país, pode ser reescrita ao
sabor desta ou daquela ideologia. É flagrante a desonestidade com essa
história, recente e dolorosa, que emana da nota divulgada na quarta-feira pelo
Ministério da Defesa. Assinada pelo até então ministro Walter Braga Netto e
pelos comandantes das três Forças — Almir Garnier Santos (Marinha), Paulo
Sérgio Nogueira de Oliveira (Exército) e Carlos de Almeida Baptista Junior
(Aeronáutica) —, ela distorce fatos ao dizer que “o movimento de 31 de março de
1964 é um marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os
anseios e as aspirações da população da época”.
Como
pode ser um marco de evolução um regime que rasgou a Constituição, fechou o
Congresso, cassou políticos, aposentou ministros do Supremo, censurou a
imprensa, sufocou a liberdade de expressão, institucionalizou a tortura e deu
cabo de opositores negando às famílias o direito de velar seus corpos? Se o
Golpe de 1964 pode ser considerado um marco, é de um dos momentos mais sombrios
da História do Brasil. Precisa, sim, ser lembrado, mas como a ruptura que foi,
para que não seja repetido na nossa democracia.
Outro
equívoco é afirmar que “nos anos seguintes ao 31 de março de 1964, a sociedade
brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento
econômico e de amadurecimento político”. Que estabilização? Nem o regime
instaurado foi estável. No fim dos anos 1960, houve “o golpe dentro do golpe”,
que tornou a ditadura mais radical, com instrumentos como o AI-5, permissão ao
governo para cometer todo tipo de arbítrio. É certo que o país cresceu em média
6,3% ao ano no período, mas o “milagre econômico” era mais uma peça
publicitária. Como afirmou no GLOBO a colunista Míriam Leitão, “houve duas
recessões, calote da dívida externa, e no fim o país estava com uma
hiperinflação que foi debelada apenas na democracia”.
Tanto
quanto o conteúdo da nota, preocupa o contexto. Compreende-se que o ministro
Braga Netto, cotado para ser vice na chapa do presidente Jair Bolsonaro, ocupa
um cargo político. Mas os comandantes das três Forças, não. A linha que separa
os quartéis da ideologia do Planalto deveria estar clara à luz da Constituição.
Especialmente num cenário em que Bolsonaro volta a atacar instituições da
República e a demonizar urnas eletrônicas, insinuando não aceitar o resultado
das próximas eleições e ameaçando a democracia com novos arroubos golpistas.
Já
há crises suficientes na agenda política nacional, a maioria fabricada pelo
próprio Bolsonaro. Não precisamos de mais uma. A defesa intransigente da
democracia é dever de todos os brasileiros. Nas mais de três décadas desde a
redemocratização, vivemos o período democrático mais longevo da História do
Brasil, tantas são as reviravoltas políticas gravadas na trepidante memória do
país. Este sim deveria ser um marco para celebrar todos os dias.
Terceiros fora
Folha de S. Paulo
Defecção de Moro e oscilações de Doria
tornam mais difícil quebrar polarização
O recuo do
ex-juiz Sergio Moro na disputa pela Presidência da República em
outubro e a comédia
de erros encenada pelo tucano João Doria para manter-se na corrida
pelo Planalto acentuam a contraposição entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva (PT) e o atual mandatário, Jair Bolsonaro (PL).
A força gravitacional dos dois polos por
ora vai destruindo ou enfraquecendo tudo o que possa ameaçar o seu protagonismo,
numa espécie de profecia que se autorrealiza —a expectativa de mau desempenho
estimula a defecção e subtrai apoio dos desafiantes, o que por sua vez reforça
a polarização.
No caso de Moro, que com 8% das intenções
de voto apareceu empatado na terceira colocação com Ciro Gomes (PDT) no mais
recente Datafolha, a redução de ambições foi drástica. Trocou o Podemos pela
União Brasil e agora pode disputar uma vaga de deputado federal no estado de
São Paulo.
Dá uma vez mais vezo o ex-julgador da Lava
Jato a quem o critica por ajustar-se docilmente a conveniências mesquinhas da
política. Deixou a magistratura para ser ministro de Bolsonaro; muda de partido
como quem troca de camisa; abala-se para a opção que mais facilmente lhe
assegure um cargo nos próximos quatro anos.
É possível também que a capitulação de
Sergio Moro reflita em parte o cálculo de otimização de bancadas de que se
ocupam as legendas. Quem não tem candidato presidencial forte para impulsionar
a eleição de deputados inclina-se a aliar-se com mais fluidez nos estados e a
gastar mais com campanhas de postulantes ao Legislativo.
Fluidez, aliás, abundou nas oscilações
vertiginosas do governador paulista em torno de seu destino político nesta
quinta (31). O dia começou com a notícia de que ele desistiria de concorrer ao
Planalto, sairia do PSDB e cumpriria até o final o seu mandato no estado.
Terminou com tudo isso desfeito e o plano
original retomado, numa autêntica "guinada de 360 graus".
Se não passou de subterfúgio para
solidificar o apoio de seu partido, rachado, e atrair atenção para seu discurso
de despedida, o tiro pode ter saído pela culatra. O João Doria que saiu desse
episódio rocambolesco inspira ainda menos confiança do que o que nele entrou,
marcando 2% no Datafolha.
Pela primeira vez na República, ao que tudo
indica, disputarão o cargo político mais elevado do país um ex-presidente e o
presidente na função. São, ademais, duas figuras populares, sobejamente
conhecidas do eleitor. Seria normalmente dificultoso uma outra candidatura
competir nessas condições.
A escassez de opções, porém, não é boa para
o Brasil, que só viu crescer nos últimos anos a pilha de obstáculos ao seu
desenvolvimento.
Regalia descabida
Folha de S. Paulo
É inaceitável PEC que prevê reajustes a
cada cinco anos para juízes e promotores
Anos eleitorais despertam uma generosidade
temerária no Congresso Nacional. É com esse espírito que os parlamentares
ameaçam tirar do arquivo a proposta de emenda constitucional conhecida como PEC
do Quinquênio.
O texto, que aumenta em 5% os vencimentos
de juízes e promotores a cada cinco anos trabalhados, foi apresentado no Senado
em 2013, mas desde então passou quase todo o tempo parado na Casa.
Nos últimos dias a PEC —que institui mais
um privilégio para as categorias que já estão entre as mais bem remuneradas do
serviço público— voltou
a ser comentada e a receber emendas, num sinal de que está prestes a
ser ressuscitada.
Está em debate, ademais, a extensão da
benesse. A versão original da proposta implica um gasto adicional para os
cofres públicos estimado em R$ 3,6 bilhões anuais; se o quinquênio for
estendido a advogados, defensores e delegados, são mais R$ 900 milhões; se
valer para todo o funcionalismo, como quer uma das emendas, a conta sobe para
R$ 10 bilhões.
Uma estratégia usual para a aprovação de
farras orçamentárias desse tipo é acenar com a criação da regra mais
catastrófica —para, depois de alguma negociação, definir outra de impacto
menor.
Dada a situação de penúria das contas
públicas e os gastos com pessoal já excessivos do Judiciário, a PEC deveria ser
rejeitada em qualquer uma de suas versões.
Daí não se segue, ressalve-se, que não
existam problemas a resolver em certas carreiras do serviço público. Um deles,
que motiva a defesa dos quinquênios, é que a diferença entre os salários
iniciais e finais se estreitou em demasia, o que pode tornar-se um óbice à
retenção dos melhores profissionais.
Embora os salários pagos pelo setor público
sejam, na média, maiores que os da iniciativa privada, a relação não vale
indistintamente para todas as carreiras. Um advogado que chegue à condição de
sócio nos melhores escritórios do país, por exemplo, em geral terá ganhos
superiores ao teto da administração (R$ 39.293,32 mensais).
Pondere-se, entretanto, que o Estado
oferece a vantagem da estabilidade no emprego; no Judiciário, em particular,
magistrados desfrutam, na prática, de vencimentos superiores ao teto, além das
férias de 60 dias.
De todo modo, trata-se de questão a ser resolvida em uma reforma administrativa, não por meio de um trem da alegria oportunista.
A indignidade da fome
O Estado de S. Paulo
Um em cada quatro brasileiros vive em insegurança alimentar. Isso deveria tirar o sono de qualquer governante minimamente compassivo
No extenso rol de atribuições de um
presidente da República, que vão muito além daquelas descritas formalmente no
texto constitucional, nenhuma é mais importante do que dotar o País das
condições mínimas para que seus governados tenham uma vida digna. No fim do
dia, a missão precípua do chefe do Poder Executivo é essa. Todas as políticas
públicas de qualquer governo responsável deveriam ser orientadas
primordialmente por esse norte moral.
Mas o direito a uma vida digna tem sido
sonegado a milhões de brasileiros. Em pleno século 21, o patrimonialismo, hoje
materializado em “rachadinhas” e “orçamentos secretos”, segue como o dínamo de
um sistema político que deveria assegurar aquele direito básico, impedindo que
o Brasil consiga, enfim, livrar-se dos grilhões do passado. Enquanto isso, a
brutal desigualdade entre os cidadãos e uma permanente sensação de injustiça
social se fazem sentir por um número cada vez maior de brasileiros.
O que pode ser mais indigno do que a dor da
fome? Qualquer governante minimamente compassivo deveria perder o sono sabendo
que muitos de seus governados não têm o que comer. Já se noticiou que o
presidente Jair Bolsonaro não dorme bem, mas as causas de sua insônia
provavelmente são outras. Com um arremedo de programa de transferência de renda,
o Auxílio Brasil, Bolsonaro apenas finge que ataca o problema da fome.
Uma recente pesquisa do Datafolha revelou
que 23% dos brasileiros vivem em domicílios atendidos pelo programa lançado
pelo governo no fim do ano passado como substituto do Bolsa Família, marca
fortemente ligada ao PT, e do auxílio emergencial, que socorreu os desvalidos
nos momentos mais dramáticos da pandemia de covid-19. O maior número de
beneficiários do Auxílio Brasil está concentrado na Região Nordeste. Lá, 37%
dos entrevistados pelo instituto de pesquisa disseram pertencer a famílias
atendidas pelo programa.
Um dado da pesquisa revela o grau de
improviso na concepção do Auxílio Brasil – uma cartada meramente eleitoreira –
e a falta de condições estruturais para que os brasileiros mais pobres, de
fato, tenham condições de melhorar de vida. Para a grande maioria dos
entrevistados (68%), o valor do benefício é insuficiente para a subsistência.
Apenas 29% consideram os cerca de R$ 400 suficientes. Entre os que pertencem ao
estrato mais pobre da população (com renda mensal familiar de até dois salários
mínimos), a insatisfação com o Auxílio Brasil é ainda maior: 71% estão
descontentes com o que recebem. E não estão descontentes simplesmente porque
querem mais e mais dinheiro do Estado. Estão descontentes porque o valor que
recebem é corroído por uma inflação renitente e, de fato, não basta para
garantir comida na mesa durante todos os dias do mês.
Segundo o Datafolha, entre os brasileiros
mais pobres que recebem o Auxílio Brasil, 35% afirmaram não ter comida
suficiente em casa para satisfazer as necessidades da família. Considerando o
total da população, são 24% os brasileiros nessa condição de insegurança
alimentar – um contingente de cerca de 50 milhões de pessoas. O problema aflige
principalmente as famílias da Região Nordeste (32%). Nas Regiões Sudeste,
Centro-Oeste e Norte, 23% das famílias se disseram afetadas, e na Região Sul,
18%.
Um programa social tão mal-ajambrado
decorre fundamentalmente da má concepção que Bolsonaro faz do que seja
governar. O presidente jamais esteve interessado em melhorar a vida de seus
governados e entregar a um eventual sucessor um país melhor do que aquele que
recebeu. Bolsonaro só tem olhos para o seu projeto de poder e para a proteção
dos seus familiares e aliados. Tudo que diz ou faz gira em torno desse
desiderato.
Sobre a mesa de trabalho do próximo
presidente – que, para o bem do Brasil, não haverá de ser Bolsonaro – estará,
entre muitos outros, o grave problema da insegurança alimentar que, hoje, assola
um em cada quatro brasileiros. O atual mandatário jamais se esforçou para
formular uma política eficaz de transferência de renda. No máximo, buscou
emular sua nêmesis, Lula da Silva, na formação de uma legião de cativos de
projetos assistencialistas.
A lei também vale para o presidente
O Estado de S. Paulo
Ao indeferir o pedido de arquivamento da PGR, ministra reitera aspecto fundamental do regime republicano: o presidente tem o dever de zelar pelo respeito à lei
Na terça-feira, a ministra Rosa Weber, do
Supremo Tribunal Federal (STF), indeferiu o pedido do procurador-geral da
República, Augusto Aras, para arquivar o Inquérito 4875, que investiga o
suposto crime de prevaricação por parte de Jair Bolsonaro no caso da negociação
na compra da vacina indiana Covaxin. A decisão da ministra Weber não envolve
nenhum juízo sobre o comportamento de Bolsonaro, que ainda precisará ser
apurado. O indeferimento do arquivamento refere-se aos deveres do cargo de
presidente da República, com o reconhecimento de que eventual inércia do chefe
do Executivo federal perante a notícia da ocorrência de crimes pode configurar
crime de prevaricação.
No pedido, Augusto Aras defendeu que a
conduta atribuída a Jair Bolsonaro – a suposta omissão perante a denúncia feita
pelos irmãos Miranda –, mesmo se fosse comprovada, não configuraria crime de
prevaricação, uma vez que esse dever não está previsto nas atribuições
constitucionais do presidente da República. Segundo a Procuradoria-Geral da
República (PGR), o ato de ofício mencionado no tipo penal do art. 319 do Código
Penal – “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou
praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal” – precisaria estar previsto expressamente. Nessa lógica, no caso, não
haveria um ato de ofício a ser exigido do presidente da República para que se
possa cogitar em prevaricação.
Na decisão, Rosa Weber discorda
veementemente da posição da PGR. Mesmo não constando das atribuições do art. 84
da Constituição, “é perfeitamente possível extrair, do próprio ordenamento
jurídico-constitucional, competência administrativa vinculada a ser exercida
pelo chefe de governo”, diz a decisão. A interpretação de Rosa Weber não amplia
o enquadramento do art. 319 do Código Penal, o que afrontaria o princípio da
legalidade.
A decisão reitera um princípio fundamental
do Estado de Direito: ninguém está acima da lei. “O presidente da República
também é súdito das leis e, situando-se no vértice da hierarquia
administrativa, não pode se furtar ao dever tanto de extirpar do sistema
jurídico aqueles atos infralegais que se põem em antítese com as leis da
República quanto de repreender, no plano disciplinar, os agentes do executivo
transgressores do ordenamento jurídico”, lê-se na decisão.
Não é comum um juiz indeferir pedido de
arquivamento do Ministério Público, que é o titular da ação penal. Afinal, não
faz sentido dar prosseguimento a uma investigação em que, desde o início, a
promotoria está convencida da impossibilidade da ocorrência de crime naquelas
circunstâncias.
No caso, Rosa Weber fundamentou o
indeferimento do pedido na jurisprudência do STF, que admite a apreciação do
mérito do pedido de arquivamento em duas situações: “quando fundado na
atipicidade penal da conduta ou lastreado na extinção da punibilidade do
agente, hipóteses nas quais se operam os efeitos da coisa julgada material”.
São casos em que há um juízo sobre o mérito da controvérsia criminal – e isso
cabe ao magistrado decidir.
Ao analisar o mérito do pedido (no caso,
indeferindo o arquivamento), a ministra Weber joga luzes sobre outro importante
aspecto do Estado Democrático de Direito: toda função pública está sujeita a
controle, também as atividades do Ministério Público. O procurador-geral da
República não é “o único juiz de suas próprias postulações”, o que, se assim o
fosse, significaria “nítida inversão, desautorizada pela Carta da República, do
arquétipo constitucional de divisão funcional do Poder”.
Ao apresentar, com rigor técnico, as
exigências relativas ao exercício do poder no regime republicano, Rosa Weber
desvela também a incompreensível submissão das teses jurídicas de Augusto Aras
aos interesses do Palácio do Planalto. A Constituição pode e deve ser mais
efetiva do que postula o procurador-geral da República. O chefe do Executivo
federal não está autorizado à inércia perante a comunicação de crimes no seu
governo.
Antes tarde do que nunca
O Estado de S. Paulo
Com leilão da Codesa, governo conclui primeira privatização em três anos e três meses; ritmo precisa acelerar
O governo que prometia arrecadar R$ 1
trilhão em privatizações na campanha eleitoral levou três anos e três meses,
mas finalmente conseguiu vender sua primeira estatal. Após uma longa disputa em
leilão, a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa) foi arrematada pelo fundo
de investimento Shelf 199, gerido pela Quadra Capital. Foi a primeira vez que o
modelo que associa a concessão dos serviços públicos à venda da estatal foi
testado no setor portuário. O fundo deverá desembolsar R$ 106 milhões em bônus
de outorga, valor que se soma aos R$ 326 milhões que serão desembolsados na
aquisição das ações da empresa pública federal.
O consórcio vencedor será responsável por
administrar os Portos de Vitória, com um portfólio de cargas já consolidado e
uma posição favorável de acessos rodoviário e ferroviário, e Barra do Riacho,
especializado no embarque de celulose. Mais importante do que a arrecadação
gerada pela operação são os investimentos que a empresa se comprometeu a
realizar. Serão R$ 855 milhões nos próximos 35 anos. Além disso, 7,5% de suas
receitas anuais dos portos deverão ser pagas à União ao longo do contrato.
São mais do que conhecidas as dificuldades
econômicas e financeiras do País. O Orçamento deste ano reservou apenas R$ 42,3
bilhões para investimentos públicos federais, o menor volume da história, e a
maior parte – R$ 8,7 bilhões, quase 21% do total – ficará com o Ministério da
Defesa. Já o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) terá
somente R$ 6,2 bilhões para manter todas as rodovias federais do País, um terço
do que seria necessário, segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT).
É por tudo isso que a privatização da
Codesa pode se tornar um marco para o setor portuário e deve ser celebrada.
Além do Espírito Santo, há outras seis companhias docas estatais – Pará, Ceará,
Rio Grande do Norte, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo – na administração de 17
portos em todo o País. De acordo com levantamento da Confederação Nacional da
Indústria (CNI), juntas elas deixaram de investir R$ 17,5 bilhões entre 2010 e
2021. O caminho para impedir a completa deterioração dessa infraestrutura
passa, necessariamente, por parcerias com o setor privado, já que o custo de
manutenção desses empreendimentos é muito elevado. Com recursos cada vez mais
escassos, o Estado precisa concentrar sua atuação em áreas como saúde e
educação.
Ainda neste ano, o governo pretende
privatizar o Porto de Santos, o maior da América Latina, e os de São Sebastião
e Itajaí. É evidentemente uma boa notícia, mas a demora em dar andamento a
esses processos permanece como um motivo de preocupação. É melancólico que a
primeira realização do governo na área de desestatizações tenha partido do
Ministério da Infraestrutura, e não da pasta comandada pelo ministro Paulo
Guedes. Tudo indica que a capitalização da Eletrobras será concluída neste ano,
mas é bom lembrar que o saldo ainda é negativo: o governo Bolsonaro criou duas
estatais e, até agora, só vendeu uma.
Em pré-campanha, Bolsonaro volta a pôr
urnas em dúvida
Valor Econômico
A chapa estará assim unida em apoio a uma
ditadura que não permitiu eleições como a que Bolsonaro vai disputar
A janela das trocas partidárias se fechou,
o presidente Jair Bolsonaro se filiou a um partido, o PL, três anos depois de
ter pertencido a um, 10 ministros saíram dos cargos para disputar as eleições,
da mesma forma que o fazem 16 dos 26 governadores. Mas a campanha eleitoral se
abre em ambiente politicamente carregado - Bolsonaro voltou a atacar as urnas
eletrônicas e o Supremo Tribunal Federal.
Os sentidos dos discursos de Bolsonaro vêm
aos trancos e barrancos, é difícil discernir a lógica e a sequência dos
raciocínios, se é que existe sequência e lógica. Entre uma motociata e uma
cavalgada em Parnamirim (RN), ele disse que “o povo armado jamais será
escravizado”, para emendar a seguir que “podem ter a certeza que, por ocasião
das eleições de 2022, os votos serão contados no Brasil”. Não há dúvida de que
os votos serão contados, manual ou eletronicamente - sua preferência é o manual
- enquanto a primeira frase, se tem nexo com a seguinte é a de que o presidente
e seus adeptos não aceitarão o resultado. A proximidade sintática de armas e
urnas não sugere apostas na democracia.
“Não serão dois ou três que decidirão como
esses votos serão contados”, continuou Bolsonaro, falseando os fatos, como faz
com frequência. A Câmara votou por maioria contra o voto impresso, mas
Bolsonaro prefere fulanizar seus desafetos para facilitar sua tarefa de
propaganda - no caso, contra os ministros do STF Luís Roberto Barroso,
ex-presidente do TSE, Edson Fachin, atual presidente da instituição encarregada
de supervisionar as eleições, e Alexandre de Moraes, próximo a ocupar o cargo.
Para dar tom messiânico à sua cruzada pela reeleição, Bolsonaro a qualifica
como uma disputa entre “o bem e o mal”.
Bolsonaro retoma o caminho interrompido em
setembro, quando patrocinou manifestação golpista contra o Supremo e as
instituições, que lhe renderam citações em inquéritos por atos contra a
democracia e divulgação de fake news. Após se assegurar, abraçado ao Centrão,
de que não sofrerá impeachment, e apreciar melhoria de sua popularidade e de
suas chances eleitorais, o presidente volta a colocar as eleições sob suspeição
e insinuar que não acatará o desfecho das urnas, por definição falseados. Ele
já havia acusado ministros do STF de agirem para que Lula volte a ocupar a
Presidência.
O STF entrou de novo na mira do Planalto e
não é outro arroubo do presidente, como comprovou ontem a defesa do deputado
Daniel Silveira (União Brasil-RJ), que se escondeu na Câmara na terça-feira
para não cumprir determinação judicial do ministro Alexandre de Moraes de
voltar a usar tornozeleira eletrônica. Silveira foi preso e é réu em processo
criminal por atentar contra a democracia e pregar a volta da ditadura. A prisão
foi autorizada pela Câmara. Truculento, ele debocha de Moraes, e propõe que o
ministro seja “impichado e preso”. Ontem, em cerimônia no Planalto, Bolsonaro
disse que não se pode aceitar “passivamente” o que está acontecendo com o
deputado, pondo em dúvida até se ele pode ser preso - após decisão unânime do
STF referendada pelo Legislativo.
Silveira participou da posse dos novos
ministros, na qual o presidente elogiou o golpe militar de 31 de março de 1964.
Em ordem do dia na terça-feira sobre a data, o ministro da Defesa, Walter Braga
Netto, que deixa o cargo como possível vice na chapa de Bolsonaro, mencionou
que o país seria uma “republiqueta” sem as obras do governo militar e que então
já existia a luta do “bem contra o mal”. A chapa estará assim unida em apoio a
uma ditadura que não permitiu eleições como a que Bolsonaro vai disputar.
Além disso, por palavras, atos e decretos,
Bolsonaro faz apelo às armas para que o “povo” defenda sua “liberdade”, isto é,
o direito de escolher Bolsonaro como presidente e de se opor, com o uso da
força, se isso não acontecer. Enquanto facilita a disseminação de armas para
todos, inclusive milícias, que já tinham trânsito quase livre para obtê-las, o
presidente, em suas pregações, estimula um clima de violência e tumulto que não
se via há décadas em eleições presidenciais.
Ontem ainda o presidente arrumou tempo para
ofender os ministros do STF. “Se não tem ideias, cala a boca. Bota a tua toga e
fica aí”. A Justiça, se o presidente insistir nesta escalada, terá de
enquadrá-lo, em decisões politicamente delicadas, em várias categorias de
crimes eleitorais. São desafios com os quais Bolsonaro prepara, conta e dos
quais pode tirar partido. O TSE terá mais trabalho este ano do que nunca.
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