Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Politicamente frágil e manipulável, ela é
mais descartável e sobrante do que a classe operária, também em crise.
Desde 2021, dados como os do Pnad indicam
um encolhimento da classe média no Brasil. Ela já deixara de ser a mais
numerosa do país e, em proporção, equiparava-se à classe pobre. É sempre
complicado falar em classe social. As estatísticas oficiais lidam com
agrupamentos de dados e estratos sociais que são estratos de rendimentos.
Classe é outra coisa, mais qualitativa do que quantitativa, mais modo de vida e
tipo de mentalidade do que apenas dinheiro no bolso.
De qualquer modo, o rendimento é mediação
decisiva na situação de classe e mais ainda na da classe média. É ele que
define prestígio, aspirações sociais, nível de consumo e de ostentação. Enfim,
tudo aquilo que se tornou característico da sociedade capitalista na
modernidade, sociedade que é a classe média a que melhor a personifica.
Os níveis do sofrimento pessoal, decorrente
da situação econômica adversa, dos membros da classe média, tendem a ser mais
intensos do que os dos mais pobres. A classe média, com mais facilidade, tende
ao imediatismo e ao inconformismo, tende a achar que pobreza é um atributo dos
outros, os que já nasceram assim, pobres. Fica surpresa e indignada quando a
pobreza lhe bate à porta.
Os pobres não tendem propriamente ao
conformismo, porque são o último grande reduto social da esperança. Eles têm
outra compreensão da adversidade. Os que mais carecem são os que mais esperança
têm. Sofrem de modo diferente da classe média.
A consciência socialmente crítica da classe média é diferente e intolerante, enquanto a consciência crítica dos pobres tende a ser a da certeza na superação da adversidade. Os da classe média acham que têm mais a exigir do que os da classe pobre, mais generosos, que têm mais a dar de suas pessoas ainda que nada a dar de seu bolso.
A classe média é refém do hoje e do agora.
É muito vulnerável às limitações quantitativas do mundo da vida cotidiana.
Mesmo quando tem fé e a professa confia mais nas ilusões mercantis do dízimo do
que em qualquer outra coisa. É societária.
O Deus do pobre tende a ser um Deus do
mundo do sagrado e da compaixão. Um mundo comunitário, ainda não corroído pelo
primado do interesse na mediação da vida.
Esse é um quadro próprio para entender os
sofrimentos e consequências do declínio social da classe média. É o que, quase
que certamente, definirá seu protagonismo nas eleições de 2022. Talvez
diferente de 2018.
Na sociedade moderna, a classe média é o
termômetro da situação social. Quando as crises chegam nela, geralmente é
porque as estruturas econômicas fundamentais do sistema capitalista foram
alcançadas pelas irracionalidades corrosivas da falta de prudência e de
competência para administrar a economia.
Não só por parte dos políticos que, no
Estado, respondem pela carência de discernimento e de decisões competentes em
relação aos problemas sociais e à situação econômica. Mas também aqueles que no
setor privado enfrentam dilemas e impasses e correm o risco de tomar decisões
erradas. Ou que abrem mão de sua responsabilidade política no campo econômico e
no campo social. Os que se entregam à tutela de políticos, profissionais ou
amadores, voltados unicamente para as tarefas da própria reeleição. Como o
atual presidente em campanha eleitoral pela reeleição desde o dia em que foi
eleito para o mandato atual. Mal tomara posse, já estava abertamente agindo
como candidato a um novo mandato.
A classe média é a categoria social
termômetro da decadência porque classe social típica da sociedade de consumo.
Já não é da classe trabalhadora e produtiva, a classe operária, que depende a
sobrevivência do capitalismo. Depende da classe improdutiva, a dos
consumidores, os que, ao comprar, realizam a riqueza contida no que foi
produzido e comercializado.
A decadência da classe média, num país como
o Brasil, tem muito a ver também com o fato de que é categoria sem inserção
criativa na realidade social. Não é inovadora na criação de situações e de
relações sociais. É personagem apenas dos fatores e condições sociais de
reprodução, de reiteração social, se as coisas vão bem. Se vão mal, porém, ela
empurra a sociedade para a negatividade, para a ruptura institucional ou para a
revolução. Enfim, para o inesperado.
Nesse sentido, ela não tem como defender-se
contra as adversidades sociais. É politicamente frágil e manipulável. Nas lutas
e reivindicações de atualizações salariais ou de melhoria das suas condições de
vida, tem a fragilidade de ser mais descartável e sobrante do que a classe
operária, também em crise. Já a classe operária tem como recuar adaptativamente
para funções que podem ser revitalizadas. É muito menor sua incerteza quanto ao
amanhã.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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