A observação do passado ensina que o
processo golpista não é fácil
"Golpe" é a palavra na ordem do
dia. Adquiriu vida maiúscula em língua de políticos e páginas
de jornais. Entidade tangível em mesa de bar, reunião de trabalho e almoço
de domingo.
Quanto mais se fala, mais cresce a
concretude. Antes se aludia ao "fantasma" do golpe, agora se discutem
se seus braços são armados e se seu rosto é o presidencial.
Consenso não tem. Discute-se a coisa e seu nome, pois, como em 1889, 1930, 1964, há quem defina a mudança política à força como golpe, como quem a chame de "revolução". Os "revolucionários" atuais se dispõem às armas em nome da "liberdade" de impor o resultado eleitoral. Cantiga ensaiada em falas de presidente e família, de seu círculo político e dos fardados de diferentes forças e patentes.
No debate público, há o setor "não vai
ter golpe". São os aferrados à tese de que, mesmo em frangalhos, as
instituições democráticas aguentarão o tranco. No outro polo estão os
catastrofistas. São os que frisam os perdigotos golpistas a transbordar das escarradas
presidenciais.
Ambas as posições, a otimista e a
pessimista, se baseiam em declarações. É um indicador, porque não existe golpe
se ninguém tem intenção de golpear. Mas entre intenção e ação vai fosso largo e
longo. A observação de golpes passados ensina que não é bolinho transpô-lo. Estudos
sobre nativos e estrangeiros listam muitos percalços no processo golpista.
Um é que gogó é uma coisa, ação é outra.
Pode-se esbravejar e conspirar, mas, ausentes apoios político e militar, fica
tudo no reino das histórias infantis, com seus vilões ineptos para concretizar
o plano de dominar o mundo. O cão ladra, mas, na hora do vamos ver, podem
faltar-lhe dentes para a mordida.
Segundo óbice é organizar o encadeamento de
pequeninas ações que, juntas, configuram um golpe. Quem já tentou pôr ordem em
mais de duas dúzias de pessoas sabe quanto chove dissenso, imponderabilidade,
indisciplina, e até pedra, nas ações coletivas. Coordenar um golpe é desafio em
si, requer inteligência dos estrategistas políticos, ingrediente escasso na
casa golpista.
Não basta ordenar. Até o plano mais
perfeitinho morre na praia, sem remadores para a travessia. Precisa quem tope o
risco e, aí, o jogo de lealdades é um poker. Tem legalista que se bandeia no
último minuto, mas tem quem combina tudo e some na hora H. E, dado o amadorismo
bolsominion, não custa lembrar que é preciso saber executar.
Supondo que o golpe tupiniquim não
fosse o
fiasco do norte-americano que lhe serve de modelo, os problemas
mudariam de nível.
Um seria o reconhecimento internacional. A órbita
Putinesca talvez aplaudisse, os governos democráticos, não. A imprensa global,
que o mercado lê, cairia de pau na quartelada. Em escala doméstica, o governo
golpista careceria de legitimidade entre a metade da sociedade já hoje amuada
com o governo, incluído pedaço do PIB.
Haveria oposição obstinada, a não se ser
que se fechassem tribunais, executivos estaduais, legislativo e jornais, se
prendesse, exilasse ou arrebentasse a quase totalidade das elites cultural e
intelectual e boa parte das cúpulas política e jurídica. O antigolpismo uniria
os democratas. A resistência tomaria muitas formas, dentro e fora do que
restasse das instituições, no país e fora dele, nas redes e nas ruas.
Por fim, ainda que nada desse errado,
haveria que governar. E esse, como está bem demonstrado, não é o forte de
Bolsonaro.
*Professora de sociologia da USP e
pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
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