Valor Econômico
Em vez de buscar um novo arranjo a maioria
dos líderes insiste em reforçar as brigas e as animosidades pretéritas, num
jogo entrópico
O passado está vencendo o futuro do país em
duas frentes. A primeira é a bolsonarista. O projeto de Bolsonaro não só elogia
o passado, inclusive o macabro mundo das torturas, como é vazio de propostas
para modernizar o Brasil nos próximos anos. Surpreendentemente, a oposição
também não consegue se livrar dos problemas pretéritos. Uma combinação de
políticas dos rancores com a falta de uma proposta para além do curto prazo
gera uma paralisia de ação e de proposição. Neste cenário, as candidaturas
movem-se pelo retrovisor, quando a sociedade espera um norte mais amplo para
enfrentar os desafios do século XXI.
Bolsonaro é um presidente saudosista, tanto
da ditadura militar quanto de um mundo conservador idílico que teria havido no
passado, quando o patriarcalismo podia vender uma falsa ideia de harmonia entre
todos os grupos sociais. O autoritarismo e a política dos valores radicais se
encontram nesse modelo mental. Seus inimigos são a Constituição de 1988, com
sua proposta de universalização de direitos por meio de políticas públicas e de
democratização do sistema político, bem como as visões mais recentes sobre o
meio ambiente, a questão de gênero, a igualdade racial e a maior preocupação
das empresas com seu impacto na comunidade - o bolsonarismo critica fortemente
o modelo de ESG nas redes sociais.
O projeto bolsonarista tem um referencial
em tendências do presente, em especial a visão de extrema direita ao estilo de
Viktor Orbán. Mas esse modelo húngaro não apresenta nenhuma ideia relevante
sobre como enfrentar os enormes desafios contemporâneos. O mesmo cenário se
repete com Bolsonaro: ele não tem nenhuma proposta consistente para resolver os
dilemas da educação, da saúde, das questões urbanas, da temática ambiental e,
sobretudo, da desigualdade e da pobreza sob os marcos da realidade
contemporânea.
O máximo que o bolsonarismo nos apresenta é
uma distopia: um mundo dominado pela sociedade completamente armada, por
empreendedores que agem como predadores ambientais, por nenhuma garantia de
direitos trabalhistas, pela destruição da ciência, pela colonização da escola
por doutrinadores religiosos e pela aliança do atraso oligárquico do Centrão
com o projeto autoritário de poder eterno da família Bolsonaro. O futuro do
Brasil bolsonarista seria como um Mad Max tupiniquim, só que com maior
predomínio masculino no comando do caos.
A distopia bolsonarista não é só o mundo
caótico que propõe. Ela começa, na verdade, com a ameaça de golpe caso não
vença a eleição, ou caso ganhe a Presidência da República e não consiga
governar de forma autocrática por conta dos controles democráticos advindos do
STF, do Congresso Nacional e da Federação. É importante frisar que o uso de
métodos autoritários está no horizonte próximo tanto na hipótese de derrota
como na de reeleição. Isso ocorre porque Bolsonaro não vislumbra sair do poder
tão cedo nem ter uma oposição que funcione como limitadora de sua autoridade, o
que o torna um obstáculo para qualquer futuro alternativo e baseado num projeto
mais plural de sociedade, atento às tendências e desafios do século XXI.
Diante desta distopia bolsonarista, a oposição deveria apresentar-se como uma porta para um novo futuro. Só que o passado também tem dominado a estratégia e mesmo a agenda dos oposicionistas, da chamada terceira via ao lulismo. A primeira razão está na força da política do rancor em sua lógica de atuação. Os partidos e lideranças políticas ainda não se recuperam do trauma disruptivo que se iniciou em 2013, a partir do qual grande parcela do sistema partidário desestruturou-se completamente, em especial o centro democrático. Mas, em vez de buscar um novo arranjo, a maioria dos líderes insiste em reforçar as brigas e as animosidades pretéritas, num jogo entrópico em que o passado engole o futuro.
A política do rancor tem sua base primeira
dentro dos próprios grupos e partidos políticos. A autodestruição do PSDB é o maior
exemplo disso. As mágoas entre as lideranças tornaram inviável ter uma
candidatura própria ou coligada com outras legendas, de modo a somar, e não a
subtrair. O conflito entre Doria e Aécio é um jogo de soma negativa, ninguém
ganha com ele. Sob esta lógica suicida, líderes plumados do partido estão hoje
mais preocupados com o espólio depois das eleições - quem vai ser o chefe maior
dos tucanos - do que com a forma como será apresentado o partido aos seus
eleitores históricos, cada vez em menor número, mas que mereciam mais respeito.
As mágoas internas também estão dentro do
lulismo. Mas elas não são apenas a continuação de brigas do passado, embora
muitas vezes o sejam, como comprova o imbróglio em Pernambuco e noutros
estados. Há um rancor conceitual com a forma pela qual Lula governou em seus
oito anos de mandato, num modelo baseado em alianças amplas e, especialmente,
em políticas públicas lastreadas em compromissos construídos entre divergentes.
Muitos não entenderam e/ou não gostaram da escolha de Alckmin para o posto de
vice porque até hoje não compreenderam e/ou assimilaram o modo lulista de
governar, preferindo um sectarismo que não tem base na necessidade democrática
de lidar e dialogar com uma sociedade heterogênea como a brasileira.
O debate atual está tão eivado de rancores
e miopias que não se percebe que, se o melhor da lógica política da
redemocratização for recuperado, não há nenhuma contradição na aliança entre
Lula e Alckmin. Que os concorrentes reclamem dessa dupla, é explicável pela disputa
dos votos. Que os aliados do lulismo reclamem, é porque não entenderam nada da
história recente. Bolsonaro é um corte histórico radical porque optou por uma
política contra os compromissos entre divergentes, algo que já estava em crise
desde o segundo governo Dilma, embora menos por motivos ideológicos e mais por
inabilidade e pelo desgaste do modelo político criado na Nova República.
O fato é que nos governos FHC e Lula,
durante 16 anos, houve conflitos, mas também acordos importantes e formas de
congregar posições diferentes. Para entender esse processo, é preciso ir além
do presidencialismo de coalizão. Ambos os presidentes conversaram e negociaram
com atores sociais diversos e antagônicos e sempre deixaram uma porta aberta
para o diálogo.
Hoje, após quase uma década de tantas
brigas que se transformaram em rancores, as forças políticas oposicionistas
estão míopes em relação ao significado da distopia bolsonarista. Há lideres
políticos e sociais que não apostam numa conversa civilizada entre si porque
acreditam ser possível fazer oposição se Bolsonaro vencer. Para esses, sugiro
um exercício: pergunte aos movimentos de direitos humanos húngaros e ao
financista George Soros se é possível contrapor-se e controlar democraticamente
o governo Orbán. A resposta será negativa e deveria iluminar quem se amarrou no
passado e poderá assim inviabilizar o futuro do país, de nossos filhos e netos.
Somente será possível evitar a distopia
bolsonarista se os oposicionistas conversarem mais entre si e, principalmente,
se escolherem Bolsonaro como alvo central de suas críticas, usando o fracasso
das políticas atuais como parâmetro de um novo modelo voltado para o futuro do
país. Obviamente que cada partido ou força política pode buscar seu caminho
próprio, mas quem não entender que o maior desafio histórico do momento é
evitar a continuidade do bolsonarismo certamente estará fazendo um jogo contra
o Brasil no curto prazo, e em detrimento das próximas gerações, no longo prazo.
Ao fazer da política um jogo de rancores e
vetos aos demais oposicionistas, cada grupo neste espectro contribui para o
fortalecimento do bolsonarismo. Seria preciso que as candidaturas de terceira
via, Ciro Gomes, Janones e Lula dissessem que têm diferenças entre si, mas que
aceitam assinar, formalmente, um pacto para evitar tanto o duplo golpe que
Bolsonaro pode dar - seja para evitar a derrota, seja para governar
autocraticamente -, como a continuidade das ideias perversas presentes nas
políticas públicas bolsonaristas, como a destruição do meio ambiente, o
sucateamento da educação e da ciência, a desestruturação do SUS e o armamento
da população a serviço das milícias políticas e de bandidos.
Mais do que tudo, as candidaturas de
oposição precisam se livrar da lógica do passado e apresentar projetos de futuro
para o país que dialoguem com três coisas: com as experiências que deram certo
no pós-1988 (e elas são pluripartidárias); com a lista de equívocos e desastres
promovidos pelo bolsonarismo, para se contrapor a tais políticas; e, por fim,
com ideias novas que circulam no mundo e no Brasil sobre os desafios
contemporâneos. No lugar da distopia bolsonarista é preciso apresentar soluções
que se alimentem de evidências científicas, de práticas bem-sucedidas e
replicáveis, além de um ideal de sociedade mais plural e congregador.
Os rancores e os sectarismos não irão
vencer o pesadelo bolsonarista. Apenas a apresentação de sonhos coletivos de
futuro, por meio de uma perspectiva generosa de conversa com todos os grupos
sociais, será capaz de levar o Brasil a um caminho mais amplo de mudanças. E
nenhum partido ou candidato oposicionista conseguirá fazer tal transformação
sozinho, pois só um oposicionismo plural poderá sepultar a distopia
representada por Bolsonaro. É preciso entender isso antes que seja tarde.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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