segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Memória / Crônica | Graziela Melo* - De frente para trás

– 1963 o ano da democracia, comido por 1964 – o ano da ditadura – Uma palavra sobre o Governo Arraes.

O ano de 1963 foi de intensa movimentação política. Logo em janeiro foi o plebiscito que devolveu a João Goulart os poderes do regime presidencialista, anulando, portanto acordo anterior imposto pelos militares como condição para que Jango assumisse. Em Pernambuco, Arraes tomou posse no Governo do Estado, depois de ganhar a eleição para o representante dos usineiros João Cleofas de Oliveira, perdedor pela terceira vez, tendo, por isso ficado conhecido como “João três quedas”.

O Governo de Arraes, em Pernambuco, foi uma grande dor de cabeça para os militares golpistas, usineiros (a casta pernambucana) e correntes da extrema direita que viam em tudo o fantasma do comunismo e a presença nefasta do assim chamado “Ouro de Moscou”. Com relação a esta descabida propaganda da direita, alguém do PCB fez um sambinha irônico:

Lá no xilindró

Seu delegado diz

“É ouro de Moscou”.

Eu não conheço

Este tal de “seu Moscou”

Mas pelo jeito

Qui tô vendo

Deve sê trabaiadô

E de valô...

Governando um Estado do Nordeste com uma longa história de pobreza, subnutrição na cidade e no campo, analfabetismo, muitos conflitos de terra, poderosos e atuantes núcleos das Ligas Camponesas lideradas pelo lendário Francisco Julião, Arraes se limitou, durante o pouco tempo que durou este seu governo, a cumprir a Constituição do país e do Estado que governava. Nunca se afastou dela, uma vírgula, sequer. Por isso mesmo foi tão odiado. Foi a primeira vez que os usineiros sentiram o peso da lei e foram obrigados a pagar o salário mínimo a seus trabalhadores, coisa que antes, só existia no papel. Acharam, então que a lei era ruim quando não estava a favor deles.

Certa vez, em um litígio em um engenho em Vitória de Santo Antão, os camponeses invadiram a terra. A Justiça havia dado ganho de causa ao proprietário, pois se tratava de terra produtiva e que, além disso, gerava emprego para outros tantos trabalhadores. Mas os camponeses se recusavam a sair. Arraes foi lá. Ele, o governador. Tinha a responsabilidade de impedir que o caso viesse a se transformar num estopim que poderia ser usado para desestabilizar seu governo. Conversou. Parlamentou. Costurou. Ao final, os camponeses saíram e sem violência abandonaram o local. E, em nenhum momento foram agredidos pela polícia.

Sempre estivemos nós, do PCB, intrinsecamente envolvidos no Governo Arraes pré-64. Pela sua opção, pela prática político-administrativa, Arraes, sempre e mais voltado para a área social, representava, em muito, a concretização de nossos ideais.

Um grupo relativamente grande e ativo do Diretório Municipal de Recife, do velho PCB, – inclusive eu – se envolveu na briga para tocar o barco, empenhando o melhor que existia em nossas almas idealistas e em nossas forças, nosso discernimento político e prático. Ninguém tinha preguiça. No comando do então Serviço Social Contra o Mocambo, membros do Diretório do PCB, lá estavam, por assim dizer, trabalhando de sol a sol: Dra. Naide Regueira Teodosio, Miguel Batista, Nelson Rosas, Americo de Araujo Pinheiro – pai do hoje membro do Diretório Estadual/PPS/RJ, Rosemberg Araújo Pinheiro –, Graziela de Moura Cavalcanti Melo, Mario Valentim do Nascimento – filho do já falecido membro do Diretório Nacional, Amaro Valentim do Nascimento.

Além disso, também nos envolvemos no Movimento de Cultura Popular (MCP), capitaneado por Paulo Freire que inventou e produziu revolucionário método de alfabetização para adultos e crianças. O método tinha a vantagem de alfabetizar, dando, concomitantemente, consciência política e social, tanto ao cidadão adulto como à criança.

Frases como estas: “O voto é do povo” e “O povo vota”, apareciam em todas as cartilhas, adaptadas ao ano escolar. Inventamos grupos de poesia, acompanhados pela orquestra do maestro Geraldo Menutti, subíamos morros, charcos e alagados. Saudades do grupo formado por Moema Cavalcante, Magnólia Cavalcanti – ambas filhas do escritor Paulo Cavalcanti –, Rivadavia Correia, Liana Aureliano, Zanita, Joacir de Castro, David Hulack, Marcelo Melo, Oswaldo Coelho e muitos outros.

E aí veio 1964. E veio assim: o verão findara deixando uma grande saudade nos recifenses. Com as águas de março, o Capibaribe perdera seu tom escuro esverdeado e se tornara barrento, enfezado, correndo sem parar, até encontrar o Beberibe, lá perto do cais do porto. O rio é assim. Ele nunca se cansa de buscar o mar. Ele corre, corre, corre. Em Recife, ele confunde as pessoas. Se mete pelas ruas e quando você pensa que passou por ele, lá está ele na sua frente. Esconde-se pelas esquinas. Finge que não te vê. Depois te enrola, te cerca de água por todos os lados.

Passei a manhã em casa. Gilvan não veio almoçar como era de costume e à tarde saí com a intenção de trabalhar. A cidade estava inquieta e corriam muitos boatos. Na redação do jornal, muita gente entrando e saindo e havia os que se dispunham a não voltar para casa temendo serem presos. À noite numa grande assembléia no Sindicato dos Bancários o clima era de muita tensão. Notícias que até então eram contraditórias, dia seguinte se concretizaram. O golpe estava na rua.

*Crônicas, contos e poemas, p. 50 – Abaré Editorial / Fundação Astrojildo Pereira, 2008.

Um comentário:

Anônimo disse...

Já não há pessoas assim idealistas .hoje é tudo pelo dinheiro. Políticos que só querem ficar ricos a custa do erário