segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Demétrio Magnoli - Liberalismo sem democracia

O Globo

O núcleo principal do empresariado está dizendo que não se reconhece no bolsonarismo — no culto ao autoritarismo e nos ataques à democracia conduzidos pela extrema direita

 ‘É natural que a Fiesp assine um manifesto em defesa da democracia, já que não existe liberalismo, economia de mercado ou propriedade privada, valores tão caros à entidade e ao setor industrial, sem que exista segurança jurídica, cujo pilar essencial é a democracia e o Estado de Direito.’

Foi assim que Josué Gomes da Silva, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, justificou o manifesto empresarial pela democracia. O gesto é positivo. Mas a justificativa contém um erro conceitual: o liberalismo não precisa da democracia. Nessa disjuntiva encontra-se a raiz da adesão de tantos empresários ao bolsonarismo.

O liberalismo tomou de assalto o Ocidente no século XIX, antes do advento das democracias contemporâneas. Os princípios liberais clássicos — os direitos individuais, as liberdades civis e políticas, o secularismo, o livre mercado — estabeleceram-se em regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos. A democracia (o governo da maioria) chegou depois.

Democracia, tal como entendida hoje, supõe o direito universal de voto, algo que só se difundiu ao longo do século XX. Os sistemas pioneiros de governo liberais baseavam-se no consentimento de uma minoria que gozava o privilégio de plenos direitos políticos. Massas de pobres eram excluídas do voto por muralhas ligadas à propriedade ou à renda. O primeiro país a instituir o sufrágio feminino foi a Noruega — em 1913.

O rótulo democracia liberal indica uma ruptura e uma adaptação. O liberalismo sofreu uma revolução interna para acomodar-se ao advento da democracia de massas. Nesse passo, tornou-se menos “puro” na esfera econômica, pois teve de admitir as intervenções estatais destinadas a combater a pobreza extrema e as mais clamorosas desigualdades sociais.

Nem todos aceitaram a mudança. Uma corrente de economistas liberais, aferrada ao dogma da absoluta liberdade de mercado, enxergou na democracia liberal um malévolo disfarce do socialismo. Dessa crença nasceu uma atração por regimes autoritários dispostos a conduzir programas de radical liberalização econômica.

Na origem, o pensamento liberal interpretava as liberdades políticas e econômicas como partes indissociáveis de uma mesma doutrina. Milton Friedman, pai fundador da Escola de Chicago, desafiou essa tradição ao operar como conselheiro do ditador chileno Augusto Pinochet e do regime totalitário chinês. A liberdade, imaginava Friedman, floresce na esfera econômica, alastrando-se mais tarde pela esfera política.

A dissociação teórica entre as duas esferas propicia um álibi à corrente de liberais que veem na democracia um valor secundário ou, em certos casos, um obstáculo à promoção irrestrita da liberdade de mercado. Talvez encontre-se aí uma explicação para a adesão de significativa parcela do empresariado brasileiro à candidatura de Bolsonaro em 2018: a presença de Paulo Guedes num superministério da Economia aparecia, a muitos deles, como garantia de realização das reformas liberais que alegavam desejar.

Guedes definiu o governo Bolsonaro como uma aliança entre liberais e conservadores. Trata-se de um duplo erro conceitual deliberado. A extrema direita bolsonarista não é conservadora, mas reacionária: defende a ruptura com a democracia e um retrocesso à “idade de ouro” da ditadura militar. O liberalismo econômico do governo é apenas uma fantasia para recobrir políticas populistas, como a inconstitucional PEC Kamikaze e a tentativa de subordinar a Petrobras às necessidades reeleitorais do presidente.

O manifesto democrático empresarial, firmado por representantes da indústria paulista e de grandes instituições financeiras, assinala uma cisão relevante. O núcleo principal do empresariado está dizendo que não se reconhece no bolsonarismo — no culto ao autoritarismo e nos ataques à democracia conduzidos pela extrema direita. O cristal se quebrou e não pode ser restaurado.

Josué Gomes da Silva assinou o manifesto por bons motivos: ele prefere a democracia liberal ao autoritarismo, liberal ou iliberal. Merece aplausos, mesmo quando confunde conceitos.

 

6 comentários:

Anônimo disse...

Com toda sua retórica nós sabemos que os empresários vão fechar com Bolsonaro porque não querem arriscar em uma aventura de um governo petista corrupto e irresponsável, que já deu declarações que vai censurar a livre imprensa, que não vai respeitar o teto de gastos e que vai continuar financiando os governos ditatoriais mundo afora com dinheiro público
Bolsonaro garantiu o crescimento do PIB em meio a guerra e pandemia, A inflação está caindo e o desemprego também
As privatizações tem sido um sucesso e o Brasil mais do que nunca está sendo atraente para investimentos estrangeiros em um mundo conturbado e incerto

Anônimo disse...

Ainda bem que o ministro Paulo Guedes logo vai cair fora, o pior ministro da Economia que já tivemos, como também, o presidente, o pior sufoco que lá tivemos. Pior até que o MALan de triste memória.

ADEMAR AMANCIO disse...

Tem muito empresário que ainda é bolsonarista,ainda bem que quem decide eleição é o povo.

Anônimo disse...

são minoria os empresários: o povo vai expelir o ex-tenente da presidência

Anônimo disse...

O MALan, de triste memória, ao menos trabalhava bastante no seu ministério. Mas hoje temos um MALANDRO na presidência que pouco trabalha e só nos empobrece, enquanto brinca de motociatas e de bandido com armas por aí!

Anônimo disse...

Bolsonaro não é liberal e nem conservador. É só um bandido mentiroso!