Dyepeson Martins / Revista ISTOÉ
17/02/2023
Escolhido por Lula para chefiar o órgão mais estratégico no enfrentamento da fome no Brasil, Wellington Dias é enfático ao abordar o cenário de descaso e corrupção encontrado no Ministério de Desenvolvimento Social. Segundo ele, há indícios de participação da última gestão na desconstrução de uma rede integrada de assistência às famílias brasileiras, o que levou a crises humanitárias como a vivenciada nas terras Yanomami. “A missão de Bolsonaro era destruir tudo: a democracia, a rede de proteção social, a política ambiental e as relações internacionais”, frisou. Para o ministro, o maior desafio agora é a reconstrução de políticas sociais que garantam qualidade de vida às mais de 60 milhões de pessoas que convivem com a insegurança alimentar – 33 milhões em situação de fome. Entre as medidas, Dias reforçou a importância de investir na agricultura familiar num contexto de repactuação do Governo Federal com estados, municípios, setor privado e organismos internacionais. Em entrevista à ISTOÉ, o ministro ressaltou que 2026 é a meta para retirar o país do mapa da fome. A maior preocupação atualmente é a reestruturação do Cadastro Único para Programas Sociais, que tem mais de 2,5 milhões de beneficiários irregulares, conforme levantamento realizado pelo ministério. Os dados foram repassados a órgãos de fiscalização e serão investigados.
O senhor está à frente de uma pasta
fundamental para combater a desigualdade social, mas para que uma política
nacional se desenvolva é necessário diálogo com os entes da federação e acabamos
de sair de uma gestão que mantinha conflitos com governadores e prefeitos. Como
isso está sendo reconstruído?
O presidente Lula e também o vice Geraldo Alckmin chegaram ao governo com muito
mais experiência. Líderes com respeitabilidade, capacidade de diálogo e com uma
compreensão da conjuntura que vão enfrentar no Brasil e no mundo muito maior do
que em momentos anteriores. E da promessa feita durante a campanha é claro que
tem muitas particularidades, mas eu entendo que há três eixos principais: o
desenvolvimento econômico, que parte do princípio do potencial que o Brasil tem
para criar um ambiente de confiança. Também temos que desenvolver o social. Ou
seja, o presidente quer um desenvolvimento, mas que seja capaz de tirar o
Brasil novamente do mapa da fome, da insegurança alimentar e nutricional. O
Brasil é um dos maiores produtores mundiais de alimentos, mas que tem uma das
piores situações na área de segurança alimentar. E o presidente quer abraçar
também o compromisso do Brasil com a área ambiental do mundo. Ou seja, queremos
ter o Acordo de Paris como referência na área ambiental, além de liderar o
combate à fome e à pobreza. O nosso desafio é de integrar o social, o econômico
e o ambiental.
A crise econômica no Brasil afetou as
doações para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que foi transformado
em Alimenta Brasil pelo governo Bolsonaro. De 2011 a 2021, houve uma queda de
76% nas doações. Como fazer com que esse programa não se esvazie de novo?
Trabalhamos cientificamente e assim há uma transferência de renda, aquela renda
livre que chega em cada família que realmente precisa vivendo na rua, numa
comunidade indígena, numa comunidade quilombola, na zona rural ou na periferia
da zona urbana. Ou seja, uma população em situação de rua é a nossa prioridade.
Ali ao chegar num valor per capita, a gente já tem chances de alcançar um
padrão estabelecido pela Organização das Nações Unidas e, pela transferência
deste valor, tirar essas pessoas da situação de pobreza extrema. E ela
livremente, ao comprar lá na feira, no açougue, no mercadinho ou no
supermercado, faça com que esse dinheiro circule na economia. E é também um
fator econômico porque talvez seja a maior fatia de dinheiro que circula ali na
economia local. Além disso, nós temos, para a segurança alimentar e
nutricional, a merenda escolar. Ou seja, a rede de educação pública ter mais do
que comida, ter um alimento saudável e capaz de resolver a desnutrição.
Paralelo a isso, temos ainda uma rede de restaurantes populares e de cozinha
solidária, com o objetivo de nos tirar do mapa da fome. E de onde vem os
insumos para todas essas redes? Queremos que eles tenham como prioridade na
agricultura familiar.
Para realizar essas ações que o ministério
planeja é preciso ter orçamento. Como está o trabalho do ministério com
interlocutores no Congresso para garantir a efetividade dessas medidas?
Estamos trabalhando com um orçamento que não foi o nosso governo que fez, mas
tivemos abertura junto ao Congresso e ali obtivemos uma vitória inédita: fora
do governo, num momento de muita tensão, ainda no Congresso anterior, abrimos
um diálogo e aprovamos a PEC do Bolsa Família. Garante que a gente, que só
tinha R$ 400 por beneficiário do Bolsa Família, do Auxílio Brasil, pudéssemos
abrir o ano já pagando R$ 600. Além disso, recursos para outras necessidades —
Farmácia Popular, PAA, para o fomento, recursos para cisternas, sistema
simplificado de abastecimento de água, para a própria merenda escolar, para
garantir o programa Desenrola Brasil, um programa que tem um olhar especial
para pessoas físicas e pequenos negócios que estão endividados. Eu digo que o
ano de 2023 é um ano ainda de muitos cuidados, principalmente para novos
programas, mas o presidente tem direcionado o Ministério da Fazenda e o
Ministério do Planejamento, para o social, que é a sua prioridade.
As equipes de transição de governo
apontaram uma grande discrepância nos investimentos em relação às necessidades
de cada região. No resumo, disseram que onde menos se precisava era onde mais
se investia. Quais as medidas adotadas para fazer essa correção?
O Brasil cometeu um desequilíbrio em se tratando de vidas humanas. A gente pode
ver o que está acontecendo com os Yanomami, mas também temos problemas em
outras regiões do Brasil. Quem não se incomoda com tantas pessoas em situação
de rua? Tantas pessoas nos sinais de trânsito, nas portas de bancos, nas portas
de supermercados como pedintes. A mesma coisa a gente teve, de modo até mais
forte, na região Nordeste, na região Norte e principalmente na zona rural. Ou
seja, nas comunidades ribeirinhas, na floresta, tem muita gente sofrendo. Por
que? Se desmantelou o Cadastro Único, que é cérebro para um governo que deseja
ter um planejamento adquado de ações sociais.
Por que Bolsonaro manipulou o 2,5 milhões de
cadastros junto aos programas sociais?
Digo isso hoje, sem nenhuma dúvida, porque há investigações na área eleitoral
comprovando isso. Se fez isso para fins eleitoreiros. Ou seja, não tendo mais
um balizador, onde se podia fazer cientificamente a correta medição do controle
e acompanhamento, se permitiu que num aplicativo se distribuísse cartões do
Auxílio Emergencial, do Auxílio Brasil, sem passar pelo crivo adequado da rede
do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Assim como na Saúde, você tem as
equipes do Programa Saúde da Família, as unidades básicas de Saúde. No
desenvolvimento social a gente tem 12 mil pontos de atendimentos e equipes. São
cerca de 600 mil profissionais em todos os municípios do Brasil, informando a
rede de assistência social, a rede de segurança alimentar nutricional. Então, o
que estamos fazendo? A atualização do cadastro.
Quais são as maiores irregularidades no
cadastro?
O cadastro tem muitas ilegalidades. Há pessoas que ganham 8, 9, 10 salários
mínimos inscritas e recebendo indevidamente. Outras que estão passando fome com
as suas famílias, sem ter um leite, sem ter um pão para botar na mesa, muitas
vezes não tendo condição para necessidades básicas. E a porta de entrada para
elas fechada, sem poder acessar a transferência de renda. Então, nós deveremos
já agora, com a pactuação que fizemos, que foi quebrada lá trás com estados e
municípios, voltar a ter o pacto federativo. Um cofinanciamento. Nós vamos
repassar para cada unidade dessa um valor, um valor especial para a atualização
do cadastro e um valor para o funcionamento todos os meses, como era antes.
Garantir que nós tenhamos os conselhos, que a gente tenha conferência, diálogo
com a sociedade. O cadastro único, com essa regularização, com segurança, com
eficiência, é a base não apenas para transferência de renda, mas a política
para a dignidade e melhoria de vida.
Como o senhor avalia o cenário deixado pelo
governo Bolsonaro?
O Brasil começou em 2003 um plano, que comemoramos em 2014, quando o Brasil
recebeu uma certificação da ONU com o país fora do mapa da fome. Em 2021, 33
milhões de pessoas voltaram a passar fome. O Brasil voltou ao mapa da fome. E
estamos em 2023 recebendo o país nesta situação. Além disso, 28% da população
que tem uma ração alimentar, do ponto de vista humano, insuficiente. Tem uma
moderada ou grave desnutrição. Estou falando de 700 mil crianças, muito além do
que vivenciamos com os Yanomami, que chegam à rede hospitalar e a doença é
fome. Então, não é razoável. Paralelo a isso, há a necessidade de ter essa
integração de volta: Governo Federal, independente de partidos, reintegrado e
trabalhando em conjunto com cada município do Brasil, com cada estado
brasileiro, com o setor privado. Eu quero aqui, especialmente a partir deste
final de fevereiro, começo de março, viajar o país inteiro para que a gente
tenha um movimento nacional do combate à fome.
Outro grande problema é o desabastecimento
de água. Há um levantamento de que convênios que totalizaram R$ 1,4 bilhão para
a construção de cisternas não tiveram a prestação de contas.
Haverá um regramento e controle maior. Todas aquelas denuncias e
irregularidades que encontramos, abrimos investigação. Aliás, essa foi uma
orientação do presidente Lula, combater qualquer forma e desvio, de corrupção,
em qualquer área. O governo anterior pode ser comparado a “elefantes em casa de
louças”. Ao que parece, a missão era destruir tudo: a democracia, a rede de
proteção social, a política ambiental e as relações internacionais… tudo mesmo.
A união e reconstrução, compromisso do presidente Lula, não será uma missão
fácil.
Em termos práticos, qual é a meta do
governo para cumprir a maior bandeira da gestão: retirar o Brasil do mapa da
fome e acabar com a insegurança alimentar?
Levamos 11 anos, entre 2003 e 2014, para receber a certificação de tirar o
Brasil do mapa da fome. Agora temos, de um lado, mais experiência, mas também
num momento bastante delicado. Quero acreditar que temos até 2026 para ter pelo
menos a primeira medição comprovando o Brasil fora do mapa da fome e também da
insegurança alimentar e nutricional.
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