domingo, 19 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

O Brasil é mais conservador do que muitos gostariam

O Globo

Tentar ‘consertar’ a sociedade sem levar em conta seus sentimentos pode ter consequências dramáticas

Que o Brasil é plural se tornou consenso. Poucos parecem, porém, atentar para as consequências práticas — e políticas — dele. Uma pesquisa da Quaest, que ouviu 2.016 brasileiros e cujos resultados foram antecipados pelo GLOBO, dá uma ideia do fosso que separa a população em temas que aqueles com maior renda ou melhor formação tendem a considerar “resolvidos” ou “pontos pacíficos numa democracia moderna”.

Para espanto deles, nada menos que 56% dos pais brasileiros consideram normal que crianças que passam dos limites apanhem (42% discordam). Na opinião de 41%, a escola não é local apropriado para debater sexualidade com adolescentes (56% acham que é). Gays e lésbicas se beijando em público incomodam 46% (48% não veem problema). Para 73%, o aborto não deveria ser legal. E 67% são contra a legalização de cassinos e jogos de apostas.

É um equívoco imaginar que a visão conservadora está restrita à direita. Ainda que os percentuais sejam mais elevados entre eleitores de Jair Bolsonaro, eles não estão tão distantes dos manifestados pelos de Luiz Inácio Lula da Silva. No caso do castigo físico às crianças, apenas nove pontos percentuais. Na repulsa ao beijo gay, no repúdio à legalização do aborto e no debate escolar sobre sexualidade, a diferença gira em torno de 20 pontos.

Prova de que o conservadorismo não tem coerência ideológica é a resposta similar, por vezes idêntica, noutros temas polarizadores. É o caso da reprovação aos cassinos, que aglutina 67% dos lulistas e 68% dos bolsonaristas. E não só. Para 92% dos brasileiros — percentual idêntico entre eleitores de Lula e Bolsonaro —, é preciso haver mais fiscalização para impedir o desmatamento da Amazônia. Também para 92% — 90% dos lulistas e 95% dos bolsonaristas —, pagamos impostos demais. Na opinião de 64% — 68% dos bolsonaristas e 60% dos lulistas —, políticos não deveriam ocupar cargos nas estatais. E, segundo responderam 58% — em percentuais idênticos nos dois grupos —, as mulheres não têm mais dificuldade para alcançar o sucesso profissional.

Concordâncias e divergências são esperadas em grandes populações. Não se podem definir mais de 208 milhões por alguns clichês, nem se deve enxergá-los apenas através das lentes de minorias que se consideram referência, quase sempre ignorando o que se passa ao redor. Os riscos dessa atitude — altaneira para uns, arrogante para outros — ficaram claros nos últimos anos.

Erupções sociais ou movimentos de revolta surgem sem aviso prévio. Foi assim em 2013, quando a fagulha do aumento na tarifa de ônibus em São Paulo levou milhões de jovens às ruas, numa reação que não estava no radar de partidos, sindicatos, academia ou imprensa. A pauta difusa de reivindicações parecia menos importante que o impulso de ir às ruas para protestar. Partiu daquele movimento descoordenado a sucessão de mobilizações contra a corrupção, em favor do impeachment de Dilma Rousseff e a favor da eleição de Bolsonaro, quando ainda era um deputado do baixo clero.

Para todos os que lidam com o público — não apenas políticos —, ignorar ou desafiar o sentimento predominante na população em nome de crenças ideológicas ou de alguma pretensa missão civilizatória é um erro que pode trazer consequências dramáticas. O certo é aprender a conviver com as diferenças e a respeitar opiniões contrárias, como em toda sociedade civilizada.

Regime de MEIs precisa de avaliação criteriosa antes de qualquer expansão

O Globo

Quem mais se beneficia não é a base da pirâmide, mas a população de escolaridade e renda mais altas

Criado para acelerar a formalização de empreendedores de baixa renda e escolaridade, o regime tributário do Microempreendedor Individual (MEI) passou por tamanha expansão que hoje quase 15 milhões, ou 15% da população ocupada, estão registrados nele. O Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2021 prevê ampliar ainda mais o alcance do programa. Um estudo recente do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV) mostra que seria o caminho errado a seguir.

De acordo com a pesquisa, quem mais tem se beneficiado não são os empreendedores da base da pirâmide, mas profissionais com formação e renda muito além das concebidas como alvo do programa. Entre os MEIs em dia com as contribuições previdenciárias, 31% têm ensino superior completo, mais que o dobro do percentual entre trabalhadores informais (12,7%), mais até mesmo que o observado no conjunto dos formais (22,4%). Mais: 56,4% dos MEIs ganham mais que dois salários mínimos. Entre os informais, apenas 15,6% têm renda similar.

É possível argumentar que, mesmo não atendendo os mais pobres, o programa tem papel social relevante. Tal argumento padece de vários problemas. O primeiro é achar que programas podem continuar funcionando ao longo de anos anos sem ser submetidos a avaliação criteriosa. O segundo é acreditar que o Estado dispõe de recursos infinitos para gastar em subsídios. O terceiro (e maior) problema é não reconhecer a gravidade de os mais vulneráveis continuarem desassistidos.

O MEI é um programa caro para a sociedade. Para participar, o empresário por conta própria, com no máximo um empregado e receita anual de até R$ 81 mil, só precisa de um CNPJ. Pagando contribuição previdenciária de apenas R$ 66, passa a ter direito de se aposentar pelas regras do INSS com um salário mínimo e de acessar benefícios como auxílio-doença. Se o MEI não contasse com subsídios, o valor da contribuição deveria ser, no mínimo, 24% maior. A diferença nessa conta quem banca são os demais contribuintes.

Diante dos fatos, era esperado que o Congresso já tivesse proposto mudanças para ajustar o foco e atender os mais necessitados. Não foi o que pensou o senador Jayme Campos (União-MT), autor do PLP 108/2021, aprovado no Senado e atualmente na Câmara. O projeto vai na direção contrária à desejável. Propõe aumentar para R$ 130 mil a receita anual e para dois o número de funcionários contratados.

Tal ideia não faz sentido. “Num momento histórico que combina fragilidade estrutural das contas públicas e urgência de apoio do governo à população mais vulnerável, o uso eficiente de recursos públicos torna-se mais essencial do que nunca”, escreveu o economista Luiz Schymura no Valor Econômico. “A discussão correta não é sobre a ampliação do MEI, um programa bem-intencionado, porém crivado de problemas, mas sim sobre o seu reexame e reformulação.” O governo federal, que se autointitula responsável fiscal e socialmente, deveria usar sua base no Congresso para barrar o PLP 108/2021.

Envelheceu mal

Folha de S. Paulo

PT, aos 43, repisa teses derrotadas e nega fatos desabonadores de sua trajetória

O passado atormenta o Partido dos Trabalhadores, como a um indivíduo incapaz de resolver as suas neuroses e olhar para a frente.

Na semana em que comemorou os 43 anos de fundação, o diretório nacional da agremiação divulgou uma resolução em que reitera o seu apego a teses derrotadas pela história e insiste em não chamar pelo nome os fatos desabonadores da trajetória petista.

Na fabulosa narrativa, as acusações contra gestões do PT não passaram de torpe tentativa de criminalizar a política. Pouco importa estarem fartamente documentados o mensalão e o assalto à Petrobras, para citar os escândalos que não desaparecerão por causa dos erros e abusos da Lava Jato e do ex-juiz Sergio Moro.

O manifesto chama de golpe a deposição da presidente Dilma Rousseff, o que tampouco resiste ao confronto com a realidade. A denúncia foi aceita pela Câmara, com voto de 72% dos deputados, e o processo correu sob a direção do presidente do Supremo Tribunal Federal no Senado, onde 75% decidiram pela cassação.

Considerar ruptura constitucional esse ato juridicamente perfeito é trafegar na mesma frequência de quem contesta os resultados das urnas de 2022. Trata-se, ademais, de péssima estratégia para quem necessita, a fim de cumprir promessas de campanha, de aliados que apoiaram o impeachment.

Se a falsificação da história cobra seus maiores custos do próprio PT, o apego a doutrinas empoeiradas na economia ameaça a renda e o emprego de dezenas de milhões de brasileiros.

A sigla, vê-se na resolução de aniversário, continua devota de que alguns iluminados em posições de Estado terão o condão de fazer deslanchar o desenvolvimento. Bastaria manipularem na direção que consideram correta os juros, o câmbio, os impostos, o gasto público e as decisões empresariais ditas "estratégicas".

Em nome dessa quimera, o partido agora investe contra a autonomia do Banco Central, a privatização da Eletrobras, a Lei das Estatais e a contenção do BNDES, iniciativas tomadas para evitar a repetição dos abusos que engendraram o descalabro recessivo de 2014-16.

A agremiação que corretamente louva a moderação exercida pela institucionalidade nos apetites autoritários do bolsonarismo se contradiz ao imprecar contra mecanismos que procuram evitar os danos do exercício ilimitado do poder.

Em vez de preocupar-se com os determinantes do enriquecimento e do bem-estar dos povos —assentados na produtividade do trabalho, estagnada no Brasil—, o PT continua a vender atalhos e feitiçarias que só produzem ruínas.

Envelheceu mal.

Ciência de impacto

Folha de S. Paulo

Reajuste em bolsas de pós-graduação é correto, mas gestão deve ser eficiente

Cursar uma pós-graduação no Brasil é decerto tarefa árdua. Bolsistas só podem ter vínculo empregatício se a contratação ocorrer após a concessão da bolsa, se o trabalho estiver relacionado com a pesquisa, se o orientador autorizar e se a remuneração não for superior ao valor pago pelo governo.

A bolsa, assim, acaba funcionando como salário para uma atividade de dedicação exclusiva. Nesse sentido, o reajuste de 40% para mestrado e doutorado e de 27% para pós-doutorado, anunciado pelo governo federal na quinta (16), é bem-vindo. Os valores não eram reajustados desde 2013.

O IPCA, índice utilizado como referência para as metas de inflação do Banco Central, mostrou variação de quase 70% de 2014 a 2022.

No mestrado, o pagamento passará de R$ 1.500 para R$ 2.100 mensais, e no doutorado, de R$ 2.200 para R$ 3.100. Já pesquisadores no pós-doutorado receberão R$ 5.200 — antes eram R$ 4.100.

A perda de valor real da remuneração foi acompanhada de aumento no número de bolsas: em 2010, eram cerca de 55 mil; atualmente, são 99 mil. Ademais, a pós-graduação brasileira cresceu 48,6% na última década, de 3.128 programas em 2011 para 4.650, em 2020.

A quantidade de artigos publicados acompanhou esse investimento. Em 1998, foram 11.839 textos, o que colocava o país em 20º lugar no ranking global dos que mais publicam. Vinte anos depois, com a produção crescendo sete vezes, o Brasil saltou para 13º.

O problema é que não basta formar mestres e doutores e publicar. As pesquisas realizadas devem fornecer contribuições sólidas para o campo científico, e o melhor modo de aferir tal contribuição é a partir da análise do impacto da produção —o número de vezes em que cada artigo foi citado por outros cientistas ou estudiosos.

Nesse ponto, nossos resultados não chegam a ser animadores. A base de dados Scimago mede esse efeito aferindo o número 1 à média mundial. Entre 2016 e 2020, o Brasil obteve 0,87, enquanto os EUA tiveram 1,58. Ficamos atrás até mesmo de vizinhos como Chile (1,18), Argentina (1) e Peru (0,96).

A importância do investimento em educação e ciência é inegável para o desenvolvimento de qualquer país. Mas o Brasil ainda precisa alocar recursos escassos de forma mais racional e eficiente. O aumento do gasto no setor deve ser visto como um meio, não como um fim em si mesmo.

A defesa da democracia dentro da lei

O Estado de S. Paulo.

Atos do 8 de Janeiro trazem problemas inéditos para a Justiça. É preciso cuidado na apuração de responsabilidades e no uso das medidas cautelares. Sem impunidade e sem linchamento

Os atos antidemocráticos do 8 de Janeiro trazem especiais desafios para o sistema de Justiça penal. A gravidade dos ataques às sedes dos Três Poderes exige uma resposta efetiva, sem impunidades, e dentro da lei, sem atuações extralegais que, além de suscitarem nulidades, poderiam transformar os responsáveis por esses atos em vítimas do sistema penal. Nesse caso, em vez de prover uma solução, a Justiça estaria agravando o problema.

Expor no papel essas duas exigências – efetividade e aderência à lei – não é difícil. Outra coisa, muito diferente, é conseguir implementá-las na prática, num caso que envolve milhares de pessoas, tipos penais novos e uma imensa pressão popular. A aumentar o desafio, os procedimentos relativos aos ataques estão sob jurisdição do Supremo Tribunal Federal (STF), que não está estruturado para processar esse tipo de caso. Trata-se de uma Corte constitucional, não de uma vara criminal.

“Não há maneira de proteger o Estado Democrático de Direito que não seja por meio do Estado Democrático de Direito”, disse o professor Carlos Japiassú, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em recente evento acadêmico no Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) para debater qual deve ser a resposta do Estado aos atos antidemocráticos.

Na apuração e punição das responsabilidades, disse Japiassú, o único caminho é respeitar as garantias constitucionais e o devido processo legal. “É preciso ter cautela, sob pena de haver soluções inadequadas que, mais adiante, (...) possam atingir todos os demais.”

A respeito do crime de tentativa de golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal), o professor Japiassú observou que as duas únicas maneiras democráticas para retirar um governo legítimo é “pelo voto, nas eleições, ou pelo processo de impeachment”. Fora daí, disse ele, “qualquer tentativa dessa natureza, por intermédio da violência ou da grave ameaça, constitui crime”. Nessa verificação, é preciso cuidado ao discernir quais condutas constituem efetivamente uma tentativa de golpe de Estado, respeitando sempre o princípio da legalidade. Não há crime sem lei anterior que o defina, diz a Constituição.

Outro assunto debatido foi o uso das medidas cautelares processuais – em concreto, das prisões preventivas – para fins de segurança pública. O professor Gustavo Badaró, da Universidade de São Paulo (USP), lembrou que essas medidas são delimitadas em lei. No entanto, está havendo um uso “de algo que é excepcional (...) de forma ampliativa, e não de forma restritiva”.

Como defesa da liberdade, a legislação privilegia as medidas cautelares diferentes da prisão, como a proibição de ir a determinados lugares. Segundo a advogada Marina Coelho Araújo, elas têm se mostrado efetivas em muitos casos. “É preciso ter critérios para avaliar a proporcionalidade e a legitimidade dessas medidas”, disse a advogada.

Flávia Rahal, outra advogada, defendeu a atuação do STF. “O Supremo tinha que agir com muita rapidez naquele momento. (...) O fortalecimento da democracia também se mostra pelo respeito à lei e pelo respeito às instituições”, declarou. Ela ressaltou, no entanto, que isso não significa abandonar as garantias constitucionais e processuais. Comentou, por exemplo, o modo como as audiências de custódia foram realizadas. Houve uma divisão de funções, que excluiu uma das principais finalidades da audiência: avaliar, a partir das circunstâncias concretas da pessoa, a necessidade da prisão.

Ao longo do evento, houve o reconhecimento de que as circunstâncias são excepcionais e que inexiste um caminho ideal, perfeito. Por isso, é preciso ser especialmente criterioso, respeitando os direitos fundamentais. Mencionando o Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper, que trata dos efeitos e limites da tolerância com os intolerantes, o professor Gustavo Badaró comentou que até os intolerantes “têm o direito de serem considerados intolerantes somente depois do devido processo legal”.

Mais incertezas, agora no crédito

O Estado de S. Paulo.

A possibilidade de desaceleração mais intensa no crédito foi citada nas reuniões entre economistas e o BC há alguns dias, o que pode comprometer ainda mais o crescimento do PIB

O Índice de Atividade do Banco Central (IBC-Br) mostrou a falta de fôlego da economia no encerramento do ano, em queda de 1,46% no último trimestre em relação aos três meses anteriores. Considerado uma prévia do Produto Interno Bruto (PIB), o indicador confirmou a tendência de desaceleração que já vinha sendo observada desde a virada do primeiro para o segundo semestre do ano passado e deu razão às expectativas modestas sobre o desempenho da economia em 2023. Mesmo com a Selic elevada, com efeitos mais relevantes em setores como indústria e comércio, o IBC-Br apontou que o PIB encerrou o ano com alta de 2,6%. E a concessão de crédito, que avançou 10,4% ante 2021, teve uma contribuição inegável para o desempenho da economia.

Foi por essa razão, mas por motivos opostos, que o comportamento do crédito foi mencionado nas reuniões trimestrais entre economistas e o Banco Central há alguns dias. Os bancos já vinham sinalizando mais cautela na concessão de crédito, e a percepção de que a desaceleração tende a ser mais intensa do que o esperado foi reforçada após o BC ter deixado clara a disposição de manter a Selic elevada por mais tempo. Com base nesse cenário, a consultoria Tendências projetou uma queda real de 2,8% na concessão de crédito neste ano em relação a 2022 – recuo de 0,3% para pessoas físicas e de 5,8% para empresas. Já a LCA Consultores reconheceu que uma crise de crédito pode comprometer ainda mais o já cambaleante crescimento econômico.

É bem verdade que o cenário, na área de crédito, já não era muito favorável. A inadimplência atingiu 65,19 milhões de pessoas em janeiro, número muito próximo do recorde histórico, segundo levantamento da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil). Nada menos que um em cada quatro brasileiros estava com o nome sujo na praça no mês passado. Em média, as dívidas por consumidor em janeiro atingiram R$ 3.883,63, a maior parte delas (63,04%) com bancos. Não bastasse o número de consumidores com contas atrasadas já ter subido 7,74% ante janeiro do ano passado, há um dado ainda mais preocupante. A quantidade de devedores com tempo de inadimplência de 91 dias a um ano subiu 16,30%.

Esse contexto amplia as incertezas e projeta ainda mais dificuldades sobre o comportamento do PIB neste ano. As estimativas do mercado preveem um aumento de 0,76%, segundo o mais recente boletim Focus, e certamente vão se deteriorar ainda mais se o cenário de contração de crédito se confirmar. A economista-chefe do banco Credit Suisse, Solange Srour, espera um crescimento de 0,87% neste ano, mas já não descarta mudar as estimativas e nem mesmo a ocorrência de dois trimestres consecutivos de resultados negativos, o que configuraria uma recessão técnica. Para se defenderem, além de mais exigentes, os bancos tendem a elevar o custo do crédito, retroalimentando uma inadimplência já bastante alta.

A combinação entre endividamento alto, inflação elevada e crédito mais caro costuma, por fim, desembocar no mercado de trabalho e aumentar o desemprego, último dos indicadores a reagir a uma crise e, até o momento, um dos únicos que têm sido poupados. Há muitas razões para se preocupar com o desempenho da economia neste ano. Desde que conquistou autonomia formal, o BC manteve a prioridade de zelar pela estabilidade monetária. Mas, para obter aval do Congresso ao projeto, a instituição cedeu nas negociações políticas e teve de aceitar agregar novos objetivos secundários às suas funções, entre os quais minimizar a flutuação da atividade econômica e fomentar o pleno-emprego.

Assim, o trabalho da instituição, já bastante desafiador em termos de controle de inflação e gerenciamento de expectativas, ainda será testado muitas vezes ao longo dos próximos meses. Tendo vencido temporariamente a batalha pela manutenção das metas de inflação, a despeito da cruzada do presidente Lula da Silva contra Roberto Campos Neto, tudo indica que o BC ainda será alvo de muitas pressões neste ano.

O idioma é questão da União

O Estado de S. Paulo.

STF acerta ao decidir que Rondônia não poderia, como pretendia, vetar a ‘linguagem neutra’

O Supremo Tribunal Federal (STF) tomou a decisão certa ao derrubar, por unanimidade, uma lei estadual de Rondônia que proibia o uso da chamada “linguagem neutra” em instituições de ensino públicas e privadas. Vale notar que os ministros do STF nem chegaram a analisar o mérito da “linguagem neutra” – que cria em português um gênero neutro, isto é, nem masculino nem feminino, para se referir a pessoas que não se identificam com nenhum desses dois gêneros. Corretamente, o Supremo ateve-se à questão da competência: a edição de normas gerais sobre diretrizes e bases da educação é prerrogativa da União, e não dos Estados. Logo, a lei de Rondônia é inconstitucional. Simples assim.

A determinação do Supremo valerá em todo o País assim que o acórdão for publicado, anulando automaticamente leis estaduais e municipais que versem sobre o tema – central na disputa ideológica travada no País nos últimos anos. Como informou o Estadão, há pelo menos 45 leis ou projetos similares em análise nos legislativos estaduais ou municipais de 19 Estados e do Distrito Federal. Um equívoco que acaba de ser corrigido.

A Constituição atribui funções e competências próprias aos entes federados. Longe de mera formalidade, trata-se de definir as regras do jogo entre as diferentes instâncias de poder da Federação. Como destacou o ministro relator, Edson Fachin, os Estados também têm a prerrogativa de legislar sobre educação, mas devem se submeter às normas gerais editadas pela União. E o Brasil dispõe da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB (Lei n.º 9.394/1996), aprovada pelo Congresso e sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.

A pretexto de promover o aprendizado da norma culta da língua portuguesa, a lei rondoniense bania a “linguagem neutra” ou “não binária” dos materiais didáticos e das atividades educacionais em instituições de ensino, bem como de editais de concursos públicos. Claramente, portanto, avançava o sinal em relação à competência estadual, invadindo terreno da União, a quem compete legislar sobre normas gerais de educação, como bem destacou o ministro relator.

Vale lembrar que a lei de Rondônia já estava suspensa desde novembro de 2021, por liminar do próprio ministro Fachin. Agora o julgamento no plenário virtual do STF pôs fim ao caso e estabeleceu uma orientação geral para o País.

Toda língua é viva e acompanha as transformações da sociedade, refletindo variações geográficas, sociais e etárias. À medida que o tempo passa, novas palavras e expressões são incorporadas ao idioma, da mesma forma que outras caem em desuso. A existência de uma norma culta não exclui as demais. Ao acompanhar o voto do relator, o ministro Nunes Marques enfatizou que a inconstitucionalidade declarada no caso da lei de Rondônia deve se aplicar tanto à proibição de variantes da língua quanto a eventuais tentativas de impor determinadas modalidades de uso. Ou seja, da mesma forma que é proibido proibir, não cabe impor jeitos de falar. A língua portuguesa é patrimônio de quem a utiliza e nenhuma lei pode mudar isso.

 

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