O Globo
Não é de todo errado olhar para o desfile
das escolas de samba como um passar de bastão de uma geração a outra para a
melhor compreensão da História nacional nunca contada por inteiro
O que podem ter em comum uma Olimpíada, o
jornalismo colaborativo transnacional e o carnaval? Veremos.
Em Olimpíadas modernas, o número de esportes que compõem a espinha dorsal do megaevento tende a ser fixo — não mais de 28. Já é tentacular o bastante, considerando que muitos esportes olímpicos se desdobram em várias “disciplinas” . O atletismo traz embutido um leque de extensões — as “disciplinas” —, designação dada às competições de arremesso, corridas na pista, provas de salto. Os XXXIII Jogos Olímpicos de Paris, marcados para o próximo ano, serão exceção, com direito a um festão de 32 esportes (48 disciplinas) divididos em 329 provas. Uma coisa, porém, não muda: toda Olimpíada é construída em torno dos dois esportes-âncoras de maior audiência e lucro: natação e atletismo. Transcorrem em semanas separadas. As provas de um só começam quando o outro terminou de entregar a última medalha.
Nessas modalidades — e apenas nelas —
disputam-se provas de revezamento. Seja na pista ou na água, elas são
eletrizantes paras o espectador, pois cada passagem de bastão proporciona uma
incerteza única, um tensionamento adicional. Durante um revezamento ocorrem
mudanças tão radicais na colocação das equipes em disputa, que o suspense, não
raro, dura até o final. Dos atletas que a disputam (sempre quatro por equipe,
umbilicalmente dependentes um do outro), a prova exige algo além da esperada
habilidade atlética, controle psicológico ou preparo físico — exige confiança,
entrega. Ao contrário de modalidades em que o fazer coletivo está na raiz do
desempenho, como no vôlei ou no basquete, natação e atletismo são esportes
ferozmente individuais. Seus expoentes são lapidados para, sozinhos, triturar
os demais. Quando pinçados para provas de revezamento, eles precisam sair de
seu condicionamento solitário. Até, se necessário, saber desacelerar em vez de
brilhar solo. Difícil. É frequente numa prova de atletismo ver dois atletas do
mesmo time feito náufragos, um à procura da mão do outro, mas em velocidades
discordantes. O tilintar do bastão que vai ao chão, mesmo quando não ouvido, é
horrendo. É por essas e outras que técnicos nem sempre escolhem os mais velozes
para o revezamento. Analisam quem passa maior segurança ao grupo, quem dará
melhor continuidade à corrida.
Nesta semana, coube ao consórcio
transnacional de mídia Forbidden Stories (Histórias Proibidas) demonstrar a
força de um revezamento no âmbito também sempre competitivo do jornalismo.
Desde sua criação cinco anos atrás, a entidade assumiu a missão de retomar o
trabalho de jornalistas que tenham sido mortos ou impedidos pela força de
prosseguir determinada apuração. Como ponto de partida, deram continuidade à
investigação potencialmente devastadora de uma editora indiana, Gauri Lankesh,
sobre a indústria de desinformação praticada pelas mais altas autoridades de
seu país. Lankesh morreu assassinada pouco antes de poder publicar seu trabalho
— foi alvejada no rosto por um motoqueiro jamais identificado.
Um ano depois, a Forbidden Stories
conseguiu dar ao caso amplitude e contexto, além de gerar toda uma série sobre
desinformação global intitulada “Story killers” (Matadores de Matérias
Jornalísticas). Trabalhando de forma colaborativa, uma centena de jornalistas
de 30 organizações de imprensa mapeou como a indústria da desinformação se
sustenta, se alastra, manipula eleições, destrói reputações e apaga a verdade.
No Brasil, a Folha de S.Paulo integra o consórcio. Uma reportagem da série,
assinada por Patrícia Campos Mello, destrincha as ferramentas empregadas pela
multinacional espanhola Eliminalia para apagar o passado on-line de clientes
encrencados com a Justiça.
A ideia de dar continuidade a uma apuração
interrompida pela censura ou pelo crime, atravessando gerações e geografias,
vem se somar a outras iniciativas jornalísticas colaborativas de peso global já
existentes. O tema poderia terminar aqui. Mas, por estarmos em dias de carnaval
no Brasil, não é de todo errado olhar para o desfile das escolas de samba
também como um revezamento — um passar de bastão de uma geração a outra para a
melhor compreensão da História nacional nunca contada por inteiro. Se uma ala
correr muito, o conjunto perde. Se atrasar demais, também. A beleza está na
conjunto. Ninguém larga a mão do outro.
Um comentário:
A empresa Eliminalia tem filial no Brasil e oferece seus serviços também por aqui. Será que ela consegue apagar TODOS os crimes divulgados cometidos por Jair Messias Bolsonaro?
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