Folha de S. Paulo
Facções usam estratégias típicas de
movimentos sociais para contestar governos
Fogo em montanhas de lixo, carros virados,
vitrines quebradas, barricadas. Sem contar pichações, saques e incêndios. O Le
Monde resumiu a quinta como dia de cólera, que escorreu semana afora. A ignição
foi a reforma da Previdência. Mas mobilizações similares vêm se sucedendo na
terra de Macron,
basta lembrar os coletes amarelos. O assunto era outro, o formato, o mesmo: um
coquetel de violência e política.
A mistura é frequente, a nomeação, variável. Os eventos franceses, nos quais
correram soltos a tática black bloc e a repressão policial, foram classificados
como protestos. Ninguém morreu. Se tivesse havido letalidades, mudaria o nome?
Na França,
a política violenta nem seria novidade, lá se inventou a guilhotina.
Aqui já se viu esse filme francês,
estrelado por quebra-quebra black bloc e cacetada policial. Mas nem todas as
ações coletivas reivindicativas que envolvem violência têm sido tratadas como o
que sempre são: políticas.
O plano desbaratado do PCC é
emblemático. O promotor Lincoln
Gakiya, um dos alvos potenciais, admitiu serem "ataques a agentes
públicos e sequestro de autoridades para forçar o governo", mas
despolitizou: "infelizmente, estão fazendo uso político". Não apenas
o uso da ação do PCC, mas ela própria foi carregada de política.
Grupos em desvantagem na repartição de recursos e poder que se organizam e
dirigem demandas a autoridades são uma definição de movimento social que casa
com o vídeo da facção a propósito da situação carcerária no Rio
Grande do Norte. Na cena, são três. Seus rostos cobertos, como em muitas
manifestações antiglobalização, um deles porta máscara do Anonymous.
Exibem armas, como em filmagens de
movimentos islâmicos. A simbologia é política. O planejamento minucioso de um
possível assassinato evoca os atentados de movimentos como as Brigadas
Vermelhas, o Ira, o Eta. Em todos, a fronteira entre ação criminal e política é
esfumaçada.
As demandas também são políticas. A lista
ecoou de um gravador. Nem rosto nem nomes, à maneira dos movimentos que negam
liderança. A voz anônima falou por todos. Como é típico de movimentos, reclamou
direitos, o dos presos -como as visitas íntimas e a liberação dos que já
cumpriram pena. E, como os movimentos anticorrupção, denunciou práticas
espúrias de autoridades.
A resposta foi igualmente política. Virou
assunto no parlamento. O senador Randolfe se solidarizou com o colega ameaçado,
mas lembrou a culpa no cartório do governo ao qual Moro serviu
–o plano malogrado era de agosto.
O vice-presidente, didático, remontou ao
livro do ex-juiz para apontar a situação contemporânea como resultado de inação
deliberada de Bolsonaro.
O ex-presidente respondeu, de seu retiro espiritual em Miami, equiparando
o complô ao atentado que sofreu (e do qual acusou um partido) e ao
assassinato de um prefeito petista.
Violência e política se entrelaçaram neste
episódio, como no 8 de
janeiro.
Grandes organizações criminais, e não só o PCC, controlam territórios e
populações, à maneira de pequenos estados. Agora avançam no uso de estratégias
típicas de movimentos sociais para contestar governos.
Sua legitimidade para fazê-lo não depende
apenas das armas que portam, mas das demandas que vocalizam, a de grupos
sociais a que os políticos raramente ouvem. Se a política institucional não abrir
logo seus ouvidos, pode acabar surda pelo ratatá das metralhadoras.
*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
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