segunda-feira, 27 de março de 2023

Irapuã Santana - O desafio da reconstrução

O Globo

Estamos nos colocando para discutir sem ao menos definir o quê. Falamos para nós mesmos, xingamos e excluímos quem está de fora

Ninguém se entende, seja no grupo de zap, seja no Facebook ou noutra rede. Por sorte, ainda resta alguma zona segura nos barzinhos pelas ruas país afora.

Mas algumas coisas chamam a atenção em todas essas discussões, como a ausência de presunção de boa-fé da pessoa com quem a gente conversa, bem como uma delimitação rígida e evidente do tema em questão. Por fim, mas não menos importante, nem sequer existe um consenso sobre o significado do assunto. Os exemplos podem ser muitos: desde se a Terra é redonda, passando pelos elementos sociais que geram discriminação, até se é possível contestar a ciência.

Quando falamos de política, então, ninguém se entende. O estudo “Realities of Socialism”, do Fraser Institute — produzido em conjunto com think tanks nos Estados Unidos, na Austrália e no Reino Unido — mostrou que em torno de metade dos jovens desses países entre 18 e 24 anos se declara socialista. Mas, quando se pergunta o que entendem por socialismo, o índice despenca. Apenas 25% desse grupo define como o modelo classicamente estabelecido. Todo o restante acha que socialismo é o governo oferecer mais serviços à população mais carente e garantir renda mínima a quem precisa. O interessante é que, por esse entendimento, até o liberalismo tem similaridades com esse modelo de atuação do Estado.

Aqui no Brasil, depois do 8 de Janeiro, a AtlasIntel realizou uma série de pesquisas para nos ajudar a compreender o país em que estamos. De acordo com o levantamento, 75,8% dos brasileiros discordavam da ação dos manifestantes que invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o STF. Mas o que mais se destacou na pesquisa foi 39,7% dos entrevistados declararem que Lula não ganhou mais votos do que Bolsonaro. Depurando ainda mais os dados, vemos que 36,8% defendiam uma intervenção militar para anular a eleição de Lula, e apenas 9,5% defendiam uma nova ditadura militar. Note-se que são pontos distintos.

Isso é importante para mostrar a real intenção das pessoas, dentro da complexidade do mundo real. Uma pesquisa Ipec, de outubro do ano passado, perguntou quanto as pessoas consideram importante viver num país democrático. Somente 2% deram a nota mínima, enquanto 85% atribuíram notas de 8 a 10. Quando passamos à definição do alcance, 41% dos entrevistados disseram que democracia é importante apenas para quem acredita nos mesmos valores que eles, transmitindo uma ideia de superioridade moral e autoritária. Por fim, na pergunta sobre o que acham da frase “democracia é permitir que forças militares intervenham quando o governo for incompetente”, 39% concordaram totalmente.

Isso tudo mostra que estamos mais atrasados do que pensávamos. Estamos nos colocando para discutir sem ao menos definir o quê. Falamos para nós mesmos, xingamos e excluímos quem está de fora, tornando o desafio de reconstrução ainda muito maior.

 

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