O Estado de S. Paulo.
Diante de um novo mundo do trabalho que parece deslumbrante e assustador, o Brasil convive com práticas cuja persistência ainda nos surpreende
Inteligência artificial, automação, interconectividade, ciclos de produção e de duração de produtos cada vez mais curtos, novas formas de articulação e de organização das diferentes tarefas, novas tarefas, desaparecimento de determinadas funções e ofícios simbolizam algumas das transformações por que passa o mercado de trabalho em escala mundial. A tecnologia, cujo avanço nos espanta por sua velocidade, empurra o mundo para a frente e, ao mesmo tempo, vai deixando para trás o que não foi capaz de mudar. É para esse mundo que o Brasil precisa estar preparado, ou, no mínimo, estar-se preparando, para nele se inserir competitivamente.
Sem ter encontrado rotas adequadas para
alcançar este novo mundo do trabalho que parece, ao mesmo tempo, deslumbrante e
assustador, o Brasil convive com um mundo do trabalho envelhecido, atrofiado,
com práticas cuja persistência ainda nos surpreende. Um lado sombrio coexiste
com seu lado brilhante. Robôs, assepsia, silêncio, eficiência, alta
produtividade são parte do mesmo mundo em que más condições de trabalho,
desperdício, desrespeito ao trabalhador continuam sendo a característica geral.
Neste Brasil que tem uma eficiente
indústria aeronáutica, de tempos em tempos são encontrados trabalhadores
submetidos a regime de trabalho análogo ao da escravidão. Na semana passada,
três conhecidas empresas vinícolas assinaram um termo de ajuste de conduta com
o Ministério Público do Trabalho (MPT) do Rio Grande do Sul. Acusadas de utilizar
em suas unidades funcionários terceirizados que eram submetidos a condições
análogas às de escravos, essas empresas comprometeram-se a pagar indenizações
estimadas em R$ 7 milhões e a cumprir 21 obrigações destinadas a garantir o
direito dos trabalhadores.
Algumas dessas obrigações, de tão óbvias,
poderiam levar o leitor a perguntar por que estão ali listadas. Uma delas, por
exemplo, impõe às empresas vinícolas o compromisso de abster-se de manter
trabalhador, contratado por elas ou por empresas por elas contratadas,
submetido “a condições contrárias às disposições de proteção ao trabalho,
reduzindo-o, em qualquer das suas formas, à condição análoga à de escravo”.
Ora, práticas dessa natureza, diz o MPT, são vedadas pelo Código Penal, por
Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), pela Convenção sobre
Escravatura e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, “ratificadas
pelo Brasil e incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio com força normativa
supralegal”. Ou seja, as empresas comprometem-se a cumprir a lei, o que nada
mais é do que seu dever desde que foram constituídas.
Há no Brasil outras empresas denunciadas
por utilizar regimes de trabalho análogos à escravidão. Um dos mais recentes
relatórios da OIT aponta a existência, em 2021, de 50 milhões de pessoas no
mundo vivendo em condições de escravidão moderna.
Mas os brasileiros poderiam ter sido
poupados do cinismo com que o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento
Gonçalves tratou esses fatos. Depois de defender as vinícolas, a entidade
empresarial atribuiu, sem nenhum pudor, a existência de trabalho escravo a
programas sociais do governo, como o Bolsa Família. “Há uma larga parcela da
população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontrase
inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de
salutar para a sociedade”, afirmou.
Parte das empresas brasileiras, como as
filiadas à entidade de Bento Gonçalves, despreza respeito humano se disso
dependerem seus lucros. Isso não é novidade. Na ditadura militar, empresas de
diferentes segmentos apoiaram práticas ilegais. O caso da Volkswagen, que se
comprometeu com o Ministério Público Federal (MPF) a pagar indenização de R$ 36
milhões por ter colaborado com a ditadura militar na repressão às atividades de
sindicalistas nas décadas de 1970 e 1980, representa o primeiro ajuste de
contas empresarial com o passado.
Por iniciativa também do MPF, o Centro de
Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), vinculado à Universidade Federal de
São Paulo, conduz uma pesquisa denominada Responsabilidade de empresas por
violações de direitos durante a ditadura. O Caaf é a instituição que analisa as
1.049 caixas com restos humanos encontrados na vala do cemitério de Perus para
identificar 41 desaparecidos políticos que para ali teriam sido levados na
década de 1970 para encobrir violações de direitos humanos pela repressão
policial-militar.
O objetivo da pesquisa é investigar
empresas que colaboraram com a ditadura passando-lhe informações sobre
atividade sindical ou dando-lhe apoio logístico e material aos aparatos
repressivos, inclusive para a instalação de centros clandestinos de prisão e de
tortura. São empresas que, em sua maioria, como as vinícolas gaúchas, continuam
a operar normalmente num mundo em modernização, a despeito de seu passado
sombrio. Assim caminha parte do mundo empresarial.
*Jornalista, é autor, entre outros, do
livro ‘O súdito (banzai, Massateru!)’ (Editora Terceiro Nome
Um comentário:
Esse artigo me fez lembrar da música q tinha como refrão "é preciso saber viver".
Ninguém discordaria disso. Todos precisamos saber.
Mas isso é filosofia barata. O que é saber viver? Como viver? Enfim, precisamos saber, mas...e daí?
O autor relata um problema. Ninguém discorda. Nem há como discordar. Mas...e daí?
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