quarta-feira, 19 de abril de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Arcabouço fiscal é insuficiente para zerar déficit

O Globo

Proposta apresentada exigiria aumento brutal da arrecadação para cumprir promessa de Haddad

O Projeto de Lei Complementar com o novo arcabouço fiscal encerra meses de suspense em torno do formato preciso das regras que o governo propõe para doravante reger a disciplina das contas públicas. O fim da expectativa e da ansiedade em torno do substituto do teto de gastos marca, porém, apenas o início dos desafios para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

O primeiro e mais óbvio desafio é político. Lula não tem maioria sólida no Congresso, é refém de negociações com políticos do Centrão e precisa convencer o próprio PT e seus aliados de esquerda da necessidade de disciplina fiscal para a economia brasileira recobrar o rumo do crescimento. Houve boa vontade do mercado financeiro e de lideranças partidárias com as ideias apresentadas, mesmo assim a negociação para valer começa agora. Será afetada pelo segundo desafio, nada óbvio: fazer as regras funcionarem.

Enquanto o teto de gastos é uma regra simples, que pode ser explicada em poucas palavras — as despesas são corrigidas pela inflação do ano anterior —, o novo arcabouço é cheio de ressalvas e desvãos que exigem, para calcular cenários, um algoritmo nada trivial. Os limites aos gastos são variáveis, sujeitos a critérios que despertam confusão mesmo entre economistas experientes.

Na essência, as despesas sempre aumentarão, entre 0,6% e 2,5% acima da inflação, numa proporção equivalente a no máximo 70% do aumento das receitas. Mas há uma quantidade enorme de exceções: 13 tipos de despesa não estarão sujeitas aos limites. Em especial, as garantias constitucionais para as áreas de saúde e educação farão com que essas rubricas orçamentárias cresçam mais, pressionando todas as outras.

Ao mesmo tempo, o projeto relaxa controles em vigor desde a Lei de Responsabilidade Fiscal, do ano 2000, eliminando a exigência das avaliações bimestrais de gastos que resultam em contingenciamento de despesas sempre que a meta de resultado primário está em risco. Desse modo, será mais difícil segurar a torneira dos gastos justamente nos momentos necessários.

Embora o projeto mantenha o compromisso com a meta de resultado primário — o objetivo é, de acordo com Haddad, zerar o déficit já em 2024 —, não cria sanção eficaz em caso de descumprimento. Apenas limita o crescimento das despesas no ano seguinte a 50% da alta de receitas apurada no ano anterior. Num universo em que a despesa cresce em qualquer situação, isso não é propriamente um incentivo à austeridade e ao controle dos gastos.

Reside precisamente nesse ponto a principal deficiência do arcabouço. Como as despesas sempre crescem — no mínimo 0,6% —, há um estímulo implícito ao governo para ampliar receitas se quiser cumprir as metas. Sem aumentar a arrecadação, as regras não sustentam a promessa de superávits.

Cálculos preliminares estimam ser necessários mais R$ 300 bilhões em impostos para cumprir os compromissos de Haddad. A arrecadação prevista em 2023 é de R$ 5,3 trilhões — e não é fácil ampliá-la, como mostra a confusão em torno da simples tentativa de acabar com a sonegação na compra em sites asiáticos, que renderia meros R$ 8 bilhões. Da forma como o projeto foi apresentado, portanto, há duas alternativas: ou as metas não serão cumpridas, ou haverá aumento brutal de carga tributária, que o Congresso precisará aprovar. Nenhuma delas é boa.

Não faz sentido subsidiar gasodutos com dinheiro da estatal do pré-sal

O Globo

Ideia em gestação no governo significa conta de luz mais cara e deterioração ainda maior das contas públicas

Enquanto o Ministério da Fazenda se desdobra para fechar as contas do novo arcabouço fiscal e garantir o apoio necessário à aprovação no Congresso, está em curso uma nova articulação com potencial para deteriorar ainda mais as contas públicas. Desta vez, o objetivo é obter subsídios para construir e operar gasodutos, sob o pretexto de “baratear” o preço do gás.

A iniciativa vai na contramão da necessidade imposta pelas novas regras para as contas públicas: reduzir o custo anual de mais de R$ 400 bilhões em incentivos fiscais. Essa realidade incômoda não foi capaz de evitar uma perniciosa confluência de interesses, em detrimento do contribuinte.

De um lado, estão empresas interessadas em implementar as determinações impostas pela lei de privatização da Eletrobras: instalar termelétricas a gás em regiões onde o nível de consumo não justifica o investimento. Do outro, o dirigismo do governo petista, interessado em “reindustrializar” o país com base na energia do gás.

O plano foi lançado em março numa reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), na presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice e também ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, e do ministro da Casa Civil, Rui Costa. Na ocasião anunciou-se uma Medida Provisória para aumentar a oferta e o consumo de gás natural, principalmente do pré-sal, hoje queimado ou reinjetado nos poços, por não haver gasodutos para aproveitá-lo.

Não falta engenhosidade para conseguir ajuda do Estado com dinheiro do contribuinte. Pela proposta em estudo, o Ministério de Minas e Energia usaria a estatal Pré-Sal Petrobras S.A. (PPSA), subsidiária da Petrobras, para subsidiar a construção dos gasodutos e sua operação. Parte do óleo que a empresa recebe como pagamento pela exploração seria vendida para subsidiar as empresas privadas encarregadas de construir e manter os gasodutos que abastecerão as térmicas impostas pela lei de privatização da Eletrobras, já apelidados pelo mercado com a alcunha “Brasduto”.

A tentativa de capturar recursos do Tesouro para bancar os gasodutos usa como justificativa o barateamento do preço do gás. É um argumento pouco convincente. Há dois anos, o Congresso aprovou a Nova Lei do Gás, também com a intenção de incentivar a concorrência e baixar o preço. Não houve mais concorrência, nem o preço caiu, já que ele flutua segundo a oferta e a demanda.

É lamentável que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pelo planejamento do setor elétrico, não tenha sido ouvida. Outro problema é o Congresso ter assumido o papel de definir investimentos no setor elétrico, inventando termelétricas e gasodutos país afora. A atribuição cabe à autoridade reguladora, a Aneel. Se a ideia dos subsídios for levada adiante, o brasileiro pagará em dobro pelos erros: como consumidor, na conta de luz mais cara, e como contribuinte, com mais subsídios a corroer a arrecadação de impostos.

Aplique-se a lei

Folha de S. Paulo

Responsabilização dos vândalos de 8/1, com ampla defesa, inibirá repetições

Começou a etapa em que os ministros do Supremo Tribunal Federal avaliam as denúncias da Procuradoria-Geral da República contra os acusados de envolver-se no ataque aos três Poderes em 8 de janeiro. Se a maioria do colegiado as aceitar, abre-se a ação penal.

No primeiro lote de cem acusados, metade, segundo os procuradores, atuou para incitar as Forças Armadas a romperem a institucionalidade, e a outra metade praticou o vandalismo contra prédios públicos. Ao todo, a Procuradoria já denunciou 1.359 cidadãos.

O relator, ministro Alexandre de Moraes, decidiu corretamente priorizar o julgamento das acusações contra as 313 pessoas que continuam presas em regime cautelar preventivo. Em tese, nesse conjunto está o núcleo que mais ameaçaria a ordem pública caso fosse libertado.

Cem dias depois de a aluvião de celerados arrasar porções do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e da sede do Supremo, as investigações até agora conhecidas confirmam a impressão inicial de que o golpismo que os embalava ficou longe de se traduzir em ameaça de ruptura da democracia.

O fato de uma "minuta de golpe" ter sido encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres —que era o secretário do Distrito Federal responsável pela segurança pública em 8/1— evidencia que ideias alopradas circularam nos altos escalões do Executivo.

Não há indícios, no entanto, de que o delírio subversivo tenha contaminado os altos comandos militares, parcelas expressivas do Congresso, governadores, a opinião pública nem as principais organizações civis do país. Golpes de Estado, como a história atesta, precisam de um mínimo de ancoragem nesses setores da sociedade para terem alguma chance de vingar.

A insânia do círculo bolsonarista estava isolada e foi incapaz de alterar a condução firme da institucionalidade no rumo do respeito aos resultados das urnas.

A baderna poderia ter sido evitada com o acionamento de cautelas básicas de policiamento. Uma atitude menos ignara de Jair Bolsonaro (PL) no sentido de orientar os seus seguidores a aceitarem o veredicto da soberania popular, além da remoção oportuna dos incitadores de golpe da frente dos quartéis, também teria prevenido as cenas vergonhosas de 8 de janeiro.

Uma vez cometidas as delinquências, a fórmula clássica para desestimular a sua repetição é aplicar a lei. Aqueles que ousaram arremeter contra as instituições da democracia brasileira, mesmo sem ter a mínima condição de derrubá-la, precisam encontrar a devida resposta do Estado de Direito.

Que sejam todos responsabilizados na medida dos seus atos, após exercerem a ampla defesa.

Farsa repetida

Folha de S. Paulo

Contando com complacência do PT, MST retoma invasões após hibernar sob Bolsonaro

Desde o começo de abril, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra invadiu ao menos nove fazendas no país —oito em Pernambuco e uma no Espírito Santo.

Somadas às três fazendas na Bahia em março, foram 12 propriedades rurais ocupadas ilegalmente em pouco mais de cem dias do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Esse número já é maior do que o de todas as invasões no primeiro ano de Jair Bolsonaro (PL) —as cifras variam, de acordo com as fontes, entre 8 e 11.

Nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso e Lula, a média anual era de 305 e 246 invasões, respectivamente, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em 2015, nos estertores da gestão Dilma Rousseff (PT), foram 182.

No final do governo Michel Temer, em 2018, a quantidade havia despencado para 14; no ano passado, contaram-se 12.

No período, mais de 72 milhões de hectares foram incorporados ao programa de reforma agrária, e cerca de 880 mil títulos de terra foram entregues a beneficiários.

Lula foi o que mais incorporou terras (47,6 milhões de hectares) e menos concedeu títulos (105,5 mil), enquanto Bolsonaro foi o que menos incorporou (72 mil) e mais distribuiu posses (402,9 mil).

Fato é que a reforma agrária não foi ignorada pelos governos brasileiros —perdeu muito do sentido como política pública, isso sim, em razão da urbanização e da produtividade da agricultura mecanizada.

A súbita retomada das invasões do MST, pois, não tem justificativa além de um exibicionismo ideológico que conta com a costumeira complacência dos sócios petistas.

Durante a campanha eleitoral de 2022, Lula disse em entrevista que o MST ocupava apenas terras improdutivas. É falso, mesmo agora.

As três fazendas invadidas em março produziam celulose. Uma das áreas ocupadas em Pernambuco pertence à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (a estatal Embrapa) e é usada para pesquisas científicas de manejo sustentável do bioma.

Não à toa, na segunda (17), o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD), considerou o episódio inaceitável, e a pasta emitiu nota condenando a ocupação.

Mas João Pedro Stédile, dirigente do MST, esteve na comitiva de Lula na China. O Planalto se associa a uma agremiação que faz uso de violência e só contribui para reforçar o antipetismo na sociedade.

O ‘exército do Stédile’ está de volta

O Estado de S. Paulo

Ao levar a tiracolo o líder do MST à China, Lula na prática endossou os métodos truculentos daquele bando. É assim que o presidente pretende reconstruir pontes com o agronegócio?

O presidente Lula da Silva escarneceu do Brasil que produz e respeita as leis e a Constituição ao levar uma figura como o sr. João Pedro Stédile, líder máximo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na comitiva de sua viagem oficial à China.

Como se não fosse insultuosa o bastante a mera presença de um notório invasor de propriedades no seleto grupo que acompanhou o presidente da República na visita ao maior parceiro comercial do País, Lula ainda permitiu que o chefão do MST figurasse na foto oficial do encontro de cúpula com o presidente chinês, Xi Jinping. Na cerimônia de posse de Dilma Rousseff como presidente do chamado Banco do Brics, Lula também fez questão de mencionar a presença de Stédile na plateia.

Uma deferência assim a alguém que, dias antes da viagem, prometera um “abril vermelho”, ou seja, um mês marcado por mais invasões de terra Brasil afora, leva este jornal a questionar: afinal, o que pretende Lula?

Quando diz que pretende “reconstruir pontes” com o agronegócio, ou Lula

está mentindo ou está dando sinais de desorientação. Calejado como poucos, desorientado Lula não é.

Ora, como acreditar na intenção de Lula de restabelecer laços institucionais e transmitir segurança ao agronegócio, o setor mais importante da economia brasileira, quando o presidente em pessoa respalda o líder de uma organização que por vezes pratica crimes, como o MST? É disso que se trata. Ao levar Stédile a tiracolo para a China, Lula não fez outra coisa senão endossar seus métodos truculentos para defender uma agenda política. Mais que o agronegócio, o País só tem a perder com essa atitude irresponsável do atual mandatário.

Com alguma dose de boa vontade, poder-se-ia dizer que a presença de Stédile na comitiva presidencial se tratou “apenas” de uma imprudência de Lula em um momento delicado do início de seu terceiro mandato, quando pontes, de fato, precisam ser reconstruídas e a sociedade precisa ser pacificada. Porém, a relação entre Lula e o MST é antiga o bastante para que se saiba muito bem que, quando lhe é conveniente, o presidente não hesita em apelar para os métodos ilegais da organização a fim de fazer prevalecer seus interesses – ou os interesses do PT.

Não faz tanto tempo assim desde que Lula, durante ato “em defesa da Petrobras” no Rio, em 2015, ameaçou convocar o “exército do Stédile” para enfrentar com violência as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff que grassavam por todo o País. “Quero paz e democracia, mas também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o ‘exército’ dele nas ruas”, disse Lula naquela ocasião.

Pois é ao líder dessa espécie de milícia a serviço do PT que o presidente conferiu enorme prestígio em sua passagem pela China. A mensagem que ele transmitiu com esse gesto é muito clara. De nada adiantará Lula dizer que busca unir e reconstruir o País se, na prática, condescende com o MST em suas violações das leis e da Constituição. Tão logo voltou da China, Stédile cumpriu a ameaça de provocar um “abril vermelho”. Uma área de preservação ambiental e de pesquisas genéticas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) foi invadida pelo MST em Pernambuco no domingo passado.

Não há paz possível quando não há respeito à ordem jurídica, da qual depende fundamentalmente a ordem social.

Em março, o MST já havia invadido fazendas de cultivo de eucalipto da empresa Suzano Papel e Celulose nos municípios de Teixeira de Freitas, Mucuri e Caravelas, na Bahia. Até hoje, não se ouviu uma só palavra do presidente da República condenando as invasões.

O MST, como qualquer grupo de interesse da sociedade, tem o direito de existir e defender sua agenda. É intolerável, no entanto, que recorra à violência e ao desrespeito às leis e à Constituição como instrumento de ação política. Isso não é democrático; é crime. O presidente, quando endossa esses métodos, tampouco ajuda o País a sair de um estado de permanente tensão entre cidadãos e adversários políticos que se tratam como inimigos irreconciliáveis. O Brasil precisa de paz e de respeito às leis e à propriedade para se desenvolver.

Iniciativa privada no serviço público

O Estado de S. Paulo

É preciso superar a identificação entre ‘público’ e ‘estatal’. Com regulação, contratos e supervisão adequados, entidades privadas prestam serviços públicos com mais qualidade e menor custo

Desde os anos 90 vem se consolidando – não sem certa inércia da sociedade e recalcitrância de enclaves políticos – a consciência de que o Estado não só não precisa ser empresário, como serviços públicos não precisam ser prestados por estatais. Com boa regulação, bons contratos e boa supervisão, a iniciativa privada tende a oferecer produtos e serviços com mais eficiência a menor custo. Ante o aperto fiscal crônico – agravado após a recessão e a pandemia –, cresce a disposição de gestores públicos de buscar a colaboração com a iniciativa privada a partir de modelos como as Parcerias Público-Privadas (PPPs) e concessões.

Em 2021, a Escola de Administração Pública e a Comunitas lançaram o Mapa da Contratualização de Serviços Públicos, sistematizando a informação sobre parcerias e contratos de gestão. Agora, a segunda edição oferece um guia de navegação entre os diversos modelos de contratualização. As duas publicações formam uma enciclopédia à disposição dos gestores públicos para que possam identificar boas práticas e as melhores opções de contratualização.

“O Estado está se especializando nas funções de inteligência, regulação e financiamento, puxando assim funções estratégicas; e o setor privado se especializa na execução dos serviços”, resumiu o coordenador do Mapa, Fernando Schuler. O princípio de uma boa sinergia na prestação de serviços é estabelecer a correta distinção, sem separação, entre as responsabilidades do setor público e do privado. O primeiro se responsabiliza por parte dos investimentos; pela determinação, conforme o interesse público, de regras e metas, incluindo as tarifárias; e pela supervisão desses objetivos. O segundo se compromete a complementar os investimentos e a realizar a gestão e execução dos serviços conforme os padrões especificados pelo Poder Público.

Há inúmeros exemplos de sucesso. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, quase todos os 40 melhores hospitais públicos brasileiros são geridos por Organizações Sociais e outros modelos de parceria com o setor privado. Fatores como a autonomia gerencial dos especialistas, métricas de resultado e mecanismos de contratações mais ágeis explicam esse desempenho. Em Belo Horizonte, 50 escolas operam sob um modelo híbrido: o parceiro privado cuida da gestão, e os professores da rede municipal, do ensino. A avaliação dos serviços é superior e os diretores têm 25% mais tempo para se dedicar a atividades educacionais, em vez de cuidar da administração. Além disso, as unidades foram construídas em um tempo 45% inferior ao gasto nas unidades estatais.

Há um amplo campo de atuação para aprimorar os modelos. Muitas licitações ainda são sobrecarregadas por detalhamentos sobre os meios (como procedimentos e insumos) para se atingir os fins desejados, com efeitos frequentemente contraproducentes. Seria mais relevante focar nesses fins, ou seja, preço, prazo e performance, e deixar às entidades especializadas a seleção dos meios. Para que isso funcione, é essencial que os contratos comportem regras claras de responsabilização e seguros-garantia para que, em caso de inadimplência ou baixo desempenho, os prestadores possam ser descontratados e substituídos rapidamente, garantindo a continuidade dos serviços.

À parte essas modernizações técnicas, gestores e cidadãos preocupados com a qualidade dos serviços públicos devem se empenhar em um trabalho de conscientização. “É preciso confrontar a ideia comum de que os modelos de contratualização pretendem diminuir, de algum modo, o alcance das políticas públicas ou o papel do Estado na garantia dos direitos de cidadania”, advertem os pesquisadores. “Ao contrário, o foco do novo modelo é exatamente assegurar eficiência à ação do Estado. Isto é, garantir que os serviços prestados aos cidadãos usuários do serviço público, em regra de menor renda, apresentem qualidade similar aos serviços contratados por cidadãos com maior renda, no setor privado. Este é, em última instância, o fim ético da reforma do Estado: promover uma maior igualdade no acesso a serviços.”

O dilema dos cartões de crédito

O Estado de S. Paulo

Alta da inadimplência demanda mudanças, mas é preciso evitar a tentação do tabelamento de juros

O Ministério da Fazenda resolveu mexer num vespeiro. Em reunião na segundafeira com representantes dos bancos, o ministro Fernando Haddad deu a partida no debate sobre o que é possível fazer para reduzir tanto as taxas de juros como a inadimplência nos cartões de crédito. Sua intenção é envolver o Banco Central, além do setor bancário, na procura de medidas que possam melhorar o panorama.

É uma tarefa desafiadora pela complexidade desse instrumento no País, envolvendo não apenas os bancos, mas o varejo, donos da bandeira do cartão e empresas emissoras e credenciadoras. É um setor sofisticado, que se utiliza de instrumentos aprimorados de tecnologia da informação, e do qual o comércio depende muito, pois a maioria das vendas no varejo é paga com cartões.

Aparentemente, prevaleceu o bom senso e não se decidiu a priori estabelecer um teto para os juros – como aconteceu no mês passado, por tresloucada iniciativa do Ministério da Previdência, com as taxas cobradas no crédito consignado concedido a aposentados. Como se sabe, um eventual tabelamento dos juros do cartão, ao contrário de baratear o crédito, ampliaria sua escassez – exatamente como ocorreu no caso do consignado antes da redefinição dos juros.

Pela facilidade de uso do crédito via cartão e pela generosidade com que os bancos oferecem cartões aos seus clientes mesmo antes que eles peçam, cresceu muito o número deles no Brasil – assim como aumentou o nível da inadimplência. A dívida não paga nos cartões explica boa parte dos pagamentos atrasados nas dívidas bancárias. A inadimplência está próxima dos 50% no crédito rotativo dos cartões e muitas pessoas nem se dão conta de que os juros cobrados nessa modalidade superam 400% em termos reais (ou seja, descontando-se a inflação). Com esse nível de taxas, a dívida se torna impagável.

Como disse o presidente da Febraban, Isaac Sidney, uma explicação para o alto custo dos financiamentos é o fato de não haver no País um sistema adequado de garantia do crédito. Para avançar na questão, seria necessário um mergulho aprofundado e detalhado do sistema de cartões – e de crédito, de forma geral – antes de levantar propostas. Em governos anteriores, buscou-se evitar que os clientes ficassem “pendurados” meses a fio no crédito rotativo dos cartões, resultando em empobrecimento. Uma das medidas foi adotada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), em 2017, estabelecendo que os bancos precisam necessariamente oferecer linhas de crédito mais baratas para o cliente que permanecer por mais de um mês no rotativo dos cartões. O efeito, porém, foi modesto, pois o atraso nos pagamentos não parou de crescer.

Com a inflação ainda em patamares acima do desejado e a perda de valor dos salários, é urgente um sistema de crédito que ajude a sustentar o crescimento econômico. O País precisa de instrumentos de crédito ao consumidor que funcionem de forma eficiente, descartando-se a imposição de limites arbitrários para os juros. Faz sentido, portanto, a busca por aprimorar o modelo dos cartões de crédito.

Lula veta taxação de compras de até US$ 50 por pessoa física

Valor Econômico

Não faltam problemas no início do governo e o presidente Lula não quis ter mais esse

A sonegação de impostos por disfarce de vendas de produtos por sites internacionais em remessas isentas entre pessoas físicas (limitadas a US$ 50) e as hesitações das respostas dadas pelo governo mostram não só que não existem respostas simples para problemas complexos, mas também que há respostas inconvenientemente complexas, e erradas, para questões em princípio simples. Coibir a sonegação é (deveria ser) uma tarefa diária do Estado, mas eliminar a isenção de impostos de uma hora para outra demanda avaliação séria e comunicação clara e direta.

Não deveria haver muita confusão sobre o que fazer no caso dos sites internacionais que, supostamente, estariam envolvidos nas operações de disfarce - e que não são apenas os chineses, embora seu volume de vendas no país seja superlativo. Identificada a irregularidade, a fiscalização deveria ser redobrada. O Ministério da Fazenda foi por outro caminho. Já que fiscalizar milhares de encomendas é um trabalho árduo, para o qual o Estado brasileiro está frequentemente desaparelhado, optou-se por taxar tudo.

Para a decisão foi levada em conta mais a conveniência do que duvidosa necessidade. O novo regime fiscal proposto pelo governo precisa de um aumento constante de receitas, já que os gastos subirão sempre acima da inflação. Talvez não houvesse tanta repercussão sobre o caso se agora não existisse uma oposição ampla, estridente e militante nas redes sociais. Demagogia e desinformação são as moedas correntes nesses meios e o governo se viu desconcertado pelo discurso de que estava prejudicando os pobres, quando se elegeu prometendo defendê-los. Era meia-verdade, ou seja, meia-mentira. Pesquisa da NIQ Ebit mostrou que 59% dos que fizeram compras nos sites internacionais em 2022 têm renda acima de R$ 4.848 e que 36% fizeram aquisições de até R$ 250 - e o restante, acima disso (Valor, ontem).

Tropeços nessas horas têm seu preço. Caiu como uma luva para a propaganda contrária nas redes a afirmação do ministro Fernando Haddad de que não conhecia a Shein, só a Amazon, onde comprava livros. A questão não era essa, mas completamente outra. Quem faz compras no Alibaba, Shein, Shopee e Wish paga imposto, ou deveria pagar. Há burlas conhecidas, como a remessa do produto em nome de pessoa física desconhecida, que não participou da transação, provavelmente fictícia, e o uso do mesmo mecanismo com o fracionamento da entrega em compras com valor acima de US$ 50.

O consumidor que cumpriu a lei fez sua obrigação, tanto o que recebeu remessas identificáveis de pequeno valor ou o que fez compras nos sites, recolhendo impostos. O que chama a atenção é a magnitude da taxação, 60%, que em vários casos não para por aí e se soma a ICMS e outros impostos que chegam a dobrar o preço da mercadoria. Dois vícios moram aí. O primeiro é o protecionismo, o segundo, o incentivo à sonegação que altos impostos fornecem.

Os chineses se tornaram imbatíveis na venda a baixos preços de bens populares, no início, e em quase todo o resto depois, subindo na escala tecnológica da produção. O histórico fechamento da economia brasileira reduziu a competitividade da produção nacional a tal ponto que, mesmo com 60% de impostos, muitos produtos vindos de fora ainda são mais baratos que os feitos aqui. O “custo Brasil” limita a capacidade concorrencial das empresas locais, mas sua eliminação é morosa demais, enquanto que a muralha de impostos altos é furada por oportunistas dispostos a correr riscos de burlar a legislação quando ele é favorável na relação custo-punição.

Além disso, acabar com a isenção de pequenas remessas de bens de até US$ 50 não seria um exemplo de isonomia, quando as classes de maior renda, que viajam ao exterior, podem trazer produtos isentos até US$ 1 mil, com direito a outros US$ 1 mil em compras no free-shopping também isentos.

Não faltam problemas no início do governo e o presidente Lula não quis ter mais esse. A explicação de membros do governo de que o fim da isenção não significava aumento de impostos foi encarada com descrédito. A decisão de Lula foi correta ao sinalizar que se deveria desde o princípio coibir fraudes, sem prejuízos ao consumidor. Isso, entretanto, não o livrará das críticas dos empresários favoráveis à medida, e dará trabalho extra ao ministro Fernando Haddad, que contava aumentar as receitas em até R$ 8 bilhões com a taxação abortada. Como ele resumiu: “O presidente pediu para resolver do ponto de vista administrativo: coibir o contrabando”.

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