Valor Econômico
Professor de ciência política e advogado
escreveu livros fundamentais para entender o Brasil
O historiador e cientista político Boris
Fausto morreu nessa terça-feira (18), em São Paulo, aos 92 anos. O velório será
na Funeral Home, na região da Avenida Paulista, a partir de 8h desta
quarta-feira (19). Em junho de 2021, havia sofrido um acidente vascular
cerebral, mas teve recuperação nos meses seguintes.
Boris Fausto nasceu em 8 de dezembro de
1930, ano que ficou gravado com destaque em sua obra: o livro “A Revolução de
1930 - Historiografia e História”, publicado originalmente em 1969 e várias
vezes reeditado, tornou-se um clássico de referência em salas de aula e na
pesquisa. Foi sua tese de doutorado no departamento de história da Universidade
de São Paulo (USP), defendida no ano anterior.
A chamada Revolução de 1930, movimento armado iniciado em 3 de outubro daquele ano, sob a liderança de Getúlio Vargas, tinha o objetivo imediato de derrubar o governo de Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes, eleito presidente da República. Assim foi feito e Vargas assumiu o cargo de presidente provisório em 3 de novembro, iniciando um período de 15 anos no poder, até ser deposto, em 1945.
Fausto tomou aquele momento da história
brasileira para estudo por razões políticas, costumava dizer: quis contrapor
sua análise ao entendimento, então endossado pelo Partido Comunista do Brasil
(PCB), de que se tratara de uma “revolução burguesa”, em que as classes médias
e operária tivessem exercido papel preponderante. Em vez disso, Fausto pensou o
episódio e seus desdobramentos como resultado de uma crise de hegemonia, um
conflito intraoligárquico originário da disputa pelo controle do Estado, com
participação de militares dissidentes. Como consequência final, o Estado ganha
autonomia política em relação aos conflitos de classe, e abre-se um vazio de
poder, que conduz a um regime de compromisso entre classes e o estamento
burocrático-governamental (sem vínculos de representação direta, portanto).
Na época de publicação do livro, Fausto
vinha de uma longa experiência comunista. No princípio dos anos 1950, filiou-se
ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e depois, ainda enquanto terminava o
curso de direito na Universidade de São Paulo (USP), concluído em 1953, aderiu
ao Partido Operário Revolucionário Trotskista (POR-T).
Essa militância radical durou cerca de dez
anos, até pouco antes do golpe de 1964. “Eu e meu irmão Ruy começamos a ler
Trótski meio por acaso. A gente achava que alguma coisa estava errada na União
Soviética. Ficamos inteiramente encantados com o que ele dizia e com o
pensamento dele. Um dia, eu estava lendo “A Revolução Traída”, numa daquelas
aulas aborrecidas (no curso de direito), lá bem no fundo, e um colega que se
chamava Sebastião Simões de Lima, na saída, me perguntou: “Você é trotskista?”
Eu disse: “Não sei. Eu admiro o Trotski. Eu leio os livros do Trotski.” E aí ele
me introduziu nas microcélulas do trotskismo” [depoimento para o dossiê “80
anos da Revolução de 1930”, publicado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getulio Vargas]
Formado, exerceu a advocacia privada por
algum tempo. Tornou-se procurador do Estado em 1962. Graduou-se em história
pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 1966 e
doutorou-se em 1969. “Muito incentivado pela minha mulher, Cynira, eu resolvi
fazer o curso de história, porque eu gostava muito de história e achava que o
direito era apenas uma via de sustento, uma via profissional, mas o meu gosto
era a história” [no mesmo depoimento].
Graduação, mestrado, doutorado, foi
vencendo etapas ainda enquanto trabalhava na consultoria jurídica da USP. O
escritório de advocacia de que participava com dois amigos ficara para trás.
Mas a entrada definitiva na vida acadêmica ia sendo adiada. Seus laços antigos
com a esquerda radical levavam a empecilhos difíceis de transpor. Apenas depois
de se aposentar como funcionário público passou à docência, no departamento de
ciência política, atividade em que permaneceu por dez anos (1988-1997).
A falta de um comprometimento de carreira
no departamento de história deu-lhe certa liberdade de movimentos. “Meus
orientadores eram orientadores um pouco entre aspas...”, mas, mesmo assim, o
trabalho na consultoria impunha restrições às suas ambições de pesquisador, por
restringir o tempo em que podia afastar-se de São Paulo” [no mesmo depoimento].
São Paulo foi cenário para a parte de sua
obra produzida no gênero da chamada micro-história, aquela em que o autor reduz
a escala de observação e ocupa-se de ações humanas e significados não
valorizados nos grandes quadros históricos. Dirige sua observação para o dizer
e o fazer de pessoas comuns, mas as enquadra em contextos socioculturais
relevantes. São dessa vertente os livros “Crime e Cotidiano: A Criminalidade em
São Paulo (1880-1924)” (1984 e 2001), “O Crime do Restaurante Chinês -
Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos Anos 30” (2009) e “O Crime da
Galeria de Cristal” (2019).
Em “Negócios e Ócios - Histórias da
Imigração” (1997) e “Memórias de um Historiador de Domingo” (2010), Fausto é
autobiográfico e faz a chamada ego-história. Nessa forma de expressão narrativa
também justapõe a observação do privado à contextualização sociocultural
encontrada em universos coletivos.
No primeiro livro (ganhador do prêmio
Jabuti de 1998 na categoria “ciências humanas”), ocupa-se da família, judia de
origem, num desenho mais geral de história da imigração. No segundo, tipos
familiares também aparecem, mas a prevalência é de personagens da sua vida já
mais autônoma, a partir do ingresso na faculdade de direito, em 1949, e daí
para fases seguintes da vivência pessoal e política, até o afastamento do
radicalismo trotskista.
Falando sobre a política dos anos recentes,
alertava para os perigos das explicações incompletas oferecidas a públicos
pouco informados, em discursos de conteúdo religioso ou laico. “As pessoas
precisam de simplificações, mas as simplificações muitas vezes são perigosas,
na medi bda em que não dão conta da realidade. Então há um certo mal,
demoníaco, e há um setor salvador, puro. Há um herói salvador, que irá
encaminhar o país. Há um representante de Satanás, que vai levar o Brasil pro
inferno. O problema é que nem há Satanás, que, se existir, não estará
preocupado com o Brasil, [pois] o Universo é muito grande, nem existem anjos
salvadores. Não gosto de dar receitas, mas é uma coisa que a população precisa
aprender, para não ter depois contínuas decepções, que têm sido um pouco a
história deste país. Isso não é bom” [depoimento a Roberto D’Avila, na
GloboNews, em 27 de outubro de 2018].
Com a morte da mulher, Cynira, em 2010,
após 49 anos de casados, Fausto fez do luto a motivação para um exercício de
memória, registrado em um diário publicado no livro “O Brilho do Bronze”
(2014).
Deixou dois filhos, o sociólogo Sergio Fausto e o antropólogo Carlos Fausto.
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