quarta-feira, 19 de abril de 2023

Morre, aos 92 anos, o historiador Boris Fausto

Valor Econômico

Professor de ciência política e advogado escreveu livros fundamentais para entender o Brasil

O historiador e cientista político Boris Fausto morreu nessa terça-feira (18), em São Paulo, aos 92 anos. O velório será na Funeral Home, na região da Avenida Paulista, a partir de 8h desta quarta-feira (19). Em junho de 2021, havia sofrido um acidente vascular cerebral, mas teve recuperação nos meses seguintes.

Boris Fausto nasceu em 8 de dezembro de 1930, ano que ficou gravado com destaque em sua obra: o livro “A Revolução de 1930 - Historiografia e História”, publicado originalmente em 1969 e várias vezes reeditado, tornou-se um clássico de referência em salas de aula e na pesquisa. Foi sua tese de doutorado no departamento de história da Universidade de São Paulo (USP), defendida no ano anterior.

A chamada Revolução de 1930, movimento armado iniciado em 3 de outubro daquele ano, sob a liderança de Getúlio Vargas, tinha o objetivo imediato de derrubar o governo de Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes, eleito presidente da República. Assim foi feito e Vargas assumiu o cargo de presidente provisório em 3 de novembro, iniciando um período de 15 anos no poder, até ser deposto, em 1945.

Fausto tomou aquele momento da história brasileira para estudo por razões políticas, costumava dizer: quis contrapor sua análise ao entendimento, então endossado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), de que se tratara de uma “revolução burguesa”, em que as classes médias e operária tivessem exercido papel preponderante. Em vez disso, Fausto pensou o episódio e seus desdobramentos como resultado de uma crise de hegemonia, um conflito intraoligárquico originário da disputa pelo controle do Estado, com participação de militares dissidentes. Como consequência final, o Estado ganha autonomia política em relação aos conflitos de classe, e abre-se um vazio de poder, que conduz a um regime de compromisso entre classes e o estamento burocrático-governamental (sem vínculos de representação direta, portanto).

Na época de publicação do livro, Fausto vinha de uma longa experiência comunista. No princípio dos anos 1950, filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e depois, ainda enquanto terminava o curso de direito na Universidade de São Paulo (USP), concluído em 1953, aderiu ao Partido Operário Revolucionário Trotskista (POR-T).

Essa militância radical durou cerca de dez anos, até pouco antes do golpe de 1964. “Eu e meu irmão Ruy começamos a ler Trótski meio por acaso. A gente achava que alguma coisa estava errada na União Soviética. Ficamos inteiramente encantados com o que ele dizia e com o pensamento dele. Um dia, eu estava lendo “A Revolução Traída”, numa daquelas aulas aborrecidas (no curso de direito), lá bem no fundo, e um colega que se chamava Sebastião Simões de Lima, na saída, me perguntou: “Você é trotskista?” Eu disse: “Não sei. Eu admiro o Trotski. Eu leio os livros do Trotski.” E aí ele me introduziu nas microcélulas do trotskismo” [depoimento para o dossiê “80 anos da Revolução de 1930”, publicado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getulio Vargas]

Formado, exerceu a advocacia privada por algum tempo. Tornou-se procurador do Estado em 1962. Graduou-se em história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 1966 e doutorou-se em 1969. “Muito incentivado pela minha mulher, Cynira, eu resolvi fazer o curso de história, porque eu gostava muito de história e achava que o direito era apenas uma via de sustento, uma via profissional, mas o meu gosto era a história” [no mesmo depoimento].

Graduação, mestrado, doutorado, foi vencendo etapas ainda enquanto trabalhava na consultoria jurídica da USP. O escritório de advocacia de que participava com dois amigos ficara para trás. Mas a entrada definitiva na vida acadêmica ia sendo adiada. Seus laços antigos com a esquerda radical levavam a empecilhos difíceis de transpor. Apenas depois de se aposentar como funcionário público passou à docência, no departamento de ciência política, atividade em que permaneceu por dez anos (1988-1997).

A falta de um comprometimento de carreira no departamento de história deu-lhe certa liberdade de movimentos. “Meus orientadores eram orientadores um pouco entre aspas...”, mas, mesmo assim, o trabalho na consultoria impunha restrições às suas ambições de pesquisador, por restringir o tempo em que podia afastar-se de São Paulo” [no mesmo depoimento].

São Paulo foi cenário para a parte de sua obra produzida no gênero da chamada micro-história, aquela em que o autor reduz a escala de observação e ocupa-se de ações humanas e significados não valorizados nos grandes quadros históricos. Dirige sua observação para o dizer e o fazer de pessoas comuns, mas as enquadra em contextos socioculturais relevantes. São dessa vertente os livros “Crime e Cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924)” (1984 e 2001), “O Crime do Restaurante Chinês - Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos Anos 30” (2009) e “O Crime da Galeria de Cristal” (2019).

Em “Negócios e Ócios - Histórias da Imigração” (1997) e “Memórias de um Historiador de Domingo” (2010), Fausto é autobiográfico e faz a chamada ego-história. Nessa forma de expressão narrativa também justapõe a observação do privado à contextualização sociocultural encontrada em universos coletivos.

No primeiro livro (ganhador do prêmio Jabuti de 1998 na categoria “ciências humanas”), ocupa-se da família, judia de origem, num desenho mais geral de história da imigração. No segundo, tipos familiares também aparecem, mas a prevalência é de personagens da sua vida já mais autônoma, a partir do ingresso na faculdade de direito, em 1949, e daí para fases seguintes da vivência pessoal e política, até o afastamento do radicalismo trotskista.

Falando sobre a política dos anos recentes, alertava para os perigos das explicações incompletas oferecidas a públicos pouco informados, em discursos de conteúdo religioso ou laico. “As pessoas precisam de simplificações, mas as simplificações muitas vezes são perigosas, na medi bda em que não dão conta da realidade. Então há um certo mal, demoníaco, e há um setor salvador, puro. Há um herói salvador, que irá encaminhar o país. Há um representante de Satanás, que vai levar o Brasil pro inferno. O problema é que nem há Satanás, que, se existir, não estará preocupado com o Brasil, [pois] o Universo é muito grande, nem existem anjos salvadores. Não gosto de dar receitas, mas é uma coisa que a população precisa aprender, para não ter depois contínuas decepções, que têm sido um pouco a história deste país. Isso não é bom” [depoimento a Roberto D’Avila, na GloboNews, em 27 de outubro de 2018].

Com a morte da mulher, Cynira, em 2010, após 49 anos de casados, Fausto fez do luto a motivação para um exercício de memória, registrado em um diário publicado no livro “O Brilho do Bronze” (2014).

Deixou dois filhos, o sociólogo Sergio Fausto e o antropólogo Carlos Fausto.

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