O Globo
Esquerda resolveu 'passar o trator',
escrevendo um projeto de Constituição à sua imagem e semelhança
O círculo se fechou. Há uma semana, os
chilenos deram maioria absoluta à direita na eleição do Conselho
Constitucional. O Partido Republicano, de José Antonio Kast, ultraconservador,
ficou com 23 das 51 cadeiras. A direita moderada ficou com outras 11. O ciclo
iniciado com a vitória da esquerda nas eleições para a Assembleia Constituinte,
dois anos atrás, conclui-se na forma de um teorema: a política identitária move
o eleitorado para a direita.
As manifestações populares de 2019 e 2020 desaguaram no plebiscito que aprovou a produção de uma nova Constituição, em substituição à Carta herdada da ditadura de Pinochet e várias vezes emendada. Sob o impulso das ruas, que queriam redes ampliadas de proteção social, a esquerda obteve maioria na Constituinte.
A maioria nominal esquerdista da
Constituinte não refletia a paisagem política do país. No turno inicial das
eleições de novembro de 2021, seis meses após a eleição da Constituinte, o
candidato presidencial de esquerda Gabriel Boric,
que triunfaria no turno final, obteve apenas 26% dos votos. No mesmo pleito, a
direita conquistou 48% das cadeiras na Câmara, batendo largamente a esquerda.
Mesmo assim, a esquerda resolveu “passar o trator”, escrevendo um projeto de
Constituição à sua imagem e semelhança.
Constituição é o contrato de regras que
mantém a unidade da sociedade nacional. Precisa, portanto, refletir um consenso
político de longo prazo. A maioria da Constituinte chilena preferiu, porém,
replicar na Carta seu programa ideológico completo.
Nasceu, do exercício insano, um monstro de
388 artigos que condensava as mais desvairadas utopias identitárias, ecológicas
e sociais. O Chile se
tornaria um Estado plurinacional. Os povos indígenas ganhariam “autogoverno”,
até “instituições jurisdicionais tradicionais”. A palavra “gênero”, repetida 39
vezes, desdobrava-se na exigência de “paridade de gênero” em todos os órgãos da
administração pública, direta ou indireta, e na totalidade das instituições de
representação popular.
O projeto deslizava para a faixa do
ridículo. Os juízes, bem como as autoridades políticas, ficariam obrigados a
tomar decisões amparadas num “enfoque de gênero”. A “Natureza” adquiria o
estatuto de sujeito de direitos. Ficariam proibidas “todas as formas de
precarização no emprego”, seria garantido o direito geral ao trabalho “de livre
escolha” e a seguridade social pública evitaria qualquer “redução dos meios de
subsistência” dos cidadãos.
O pleito da Constituinte teve participação
de escassos 42% dos eleitores. O plebiscito do projeto constitucional,
realizado em setembro de 2022 sob a nova regra do voto obrigatório, contou com
86% de participação — e o rejeitou por uma maioria esmagadora de 62% dos
votantes. Os chilenos declaravam-se fartos com os folguedos infantis da
esquerda pós-moderna. O pêndulo começava a mover-se no sentido oposto.
Kast inventou seu partido em meados de
2019. O ciclo eleitoral inaugurado com a Constituinte abriu espaço para a
difusão nacional das suas ideias, alicerçadas na trindade Pátria, Deus e
Família. O Partido Republicano não merece o rótulo de “ultradireita” que a
esquerda tenta lhe impingir, pois evita contestar a democracia, a igualdade
jurídica e a laicidade estatal. Situa-se no pátio do conservadorismo duro,
exibindo-se como interlocutor da centro-direita tradicional. Seu triunfo
decorre da rejeição majoritária às políticas identitárias de esquerda.
A indagação política moderna é “como
promover o bem-estar dos cidadãos?”. Os identitários a substituíram por outra,
que não admite acordos: “Quem somos nós?”. A esquerda pós-moderna oferece a
seguinte resposta: “Uma coleção de minorias oprimidas”. A direita dura,
liderada por Kast, tem respostas eleitoralmente mais eficazes: “Somos o povo
chileno”, “somos patriotas”, “somos cristãos”. A resposta da esquerda enfatiza
a diferença, a fragmentação, enquanto a direita apela à igualdade e à unidade.
O deslocamento da política para a esfera
das identidades é uma fórmula certa para a vitória dos conservadores. A prova
disso está no círculo chileno.
2 comentários:
Identitarismo (raça, gênero e ancestralidade): a fórmula de conversão da esquerda em direita.
Na próxima encarnação eu quero ser muulher,apenas isso.
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