O Globo
Aquele período é, ao mesmo tempo, o sangue
da nova política brasileira e um persistente enigma a ser decifrado
Durante o mês de junho, revisitarei na
coluna os protestos de junho de 2013, esse mês que não parece terminar.
Dez anos depois, eles seguem nos assombrando e nos convocando a desvendá-los. Por um lado, é evidente que junho de 2013 é um marco temporal que claramente separa os 20 anos da Era FHC-Lula do agitado mundo das grandes manifestações de rua, da prisão de empresários e políticos e do populismo radical de direita. Por outro lado, a ligação entre os protestos de 2013 e tudo o que aconteceu depois não é direta, nem é simples.
Eles têm dois momentos distintos. Na
primeira quinzena, foram o ápice de dez anos de lutas de jovens das periferias
urbanas reivindicando a redução das tarifas de transporte público. Começou com
a revolta do Buzu em Salvador, em 2003, passando pelas duas revoltas da catraca
em Florianópolis, em 2004 e 2005, e pela revolta contra o aumento da passagem
em Vitória, em 2012. Em junho de 2013, protestos em Porto Alegre, Goiânia e
principalmente São Paulo serviram como catalisadores de uma mobilização
nacional que reduziu o valor das passagens em todo o país, aumentou o padrão do
subsídio ao transporte público e colocou na agenda da grande política o
horizonte da tarifa zero.
Mas, na segunda quinzena de junho, os
protestos extrapolaram o formato “revolta de transporte”. As mobilizações se
massificaram, e as reivindicações se ampliaram. As manifestações da segunda
quinzena de junho foram muito estudadas, e seu conteúdo reivindicatório é
claro: de um lado, pediam direitos sociais, como transporte público, educação e
saúde; de outro, pediam o fim da corrupção. A demografia dos manifestantes
também é clara. Embora tenham sido maciças e mobilizado todo tipo de gente,
elas foram predominantemente juvenis e não apenas apartidárias, como
antipartidárias. Seis por cento dos brasileiros saíram às ruas em junho. O
apoio aos protestos foi de 89%, e a rebelião popular fez a avaliação do governo
Dilma despencar de 63% para 31%.
Junho de 2013 despertou uma inquietação
social difusa, que não parece aplacar e tem sido politicamente explorada, tanto
à esquerda como à direita. A polarização política foi a maneira como o sistema
político enfrentou o levante de junho, dividindo as reivindicações dos
manifestantes e colocando uma parte da sociedade civil para combater a outra.
Políticos de esquerda se apresentaram como
quem poderia atender às demandas sociais, o que implicaria combater os setores
anticorrupção, exibidos como uma elite econômica insensível. Os políticos de
direita se apresentaram como quem poderia atender às demandas anticorrupção, o
que implicaria combater a esquerda, exibida como fundamentalmente corrupta.
A unidade da sociedade civil que
reivindicava simultaneamente direitos sociais e combate à corrupção foi
cindida, e a revolta contra o Estado foi substituída por um antagonismo
fratricida entre os setores da sociedade que prioritariamente defendiam
direitos sociais e aqueles que prioritariamente combatiam a corrupção.
A subordinação da inquietação de junho aos
interesses das lideranças políticas, de esquerda e de direita, se manifestou
numa triste mudança de forma. Os alegres protestos multitudinários, enfeitados
de cartazes dessemelhantes e animados por humor subversivo, foram substituídos
pela ressurreição da forma comício que separava os líderes políticos
monopolizando os microfones das massas passivas ostentando símbolos
padronizados.
Mas, se a inquietação social do pós-junho
de 2013 por um lado animou as manifestações polarizadas pró e anti-Dilma que
dominaram os anos 2015 e 2016, ela também animou, nos mesmos anos, as duas
ondas de ocupações de escolas, mostrando que o espírito original de junho não
tinha de todo desaparecido.
Junho de 2013 é uma força subjacente que
não se deixa inteiramente apreender pela esquerda ou pela direita. O espírito
de junho parece estar presente no duradouro apoio à Lava-Jato, na mobilização
dos entregadores por aplicativos e na intrigante greve dos caminhoneiros de
2018. Junho de 2013 é, ao mesmo tempo, o sangue da nova política brasileira e
um persistente enigma a ser decifrado.
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