sábado, 3 de junho de 2023

Pablo Ortellado - Os dois legados de junho de 2013

O Globo

Aquele período é, ao mesmo tempo, o sangue da nova política brasileira e um persistente enigma a ser decifrado

Durante o mês de junho, revisitarei na coluna os protestos de junho de 2013, esse mês que não parece terminar.

Dez anos depois, eles seguem nos assombrando e nos convocando a desvendá-los. Por um lado, é evidente que junho de 2013 é um marco temporal que claramente separa os 20 anos da Era FHC-Lula do agitado mundo das grandes manifestações de rua, da prisão de empresários e políticos e do populismo radical de direita. Por outro lado, a ligação entre os protestos de 2013 e tudo o que aconteceu depois não é direta, nem é simples.

Eles têm dois momentos distintos. Na primeira quinzena, foram o ápice de dez anos de lutas de jovens das periferias urbanas reivindicando a redução das tarifas de transporte público. Começou com a revolta do Buzu em Salvador, em 2003, passando pelas duas revoltas da catraca em Florianópolis, em 2004 e 2005, e pela revolta contra o aumento da passagem em Vitória, em 2012. Em junho de 2013, protestos em Porto Alegre, Goiânia e principalmente São Paulo serviram como catalisadores de uma mobilização nacional que reduziu o valor das passagens em todo o país, aumentou o padrão do subsídio ao transporte público e colocou na agenda da grande política o horizonte da tarifa zero.

Mas, na segunda quinzena de junho, os protestos extrapolaram o formato “revolta de transporte”. As mobilizações se massificaram, e as reivindicações se ampliaram. As manifestações da segunda quinzena de junho foram muito estudadas, e seu conteúdo reivindicatório é claro: de um lado, pediam direitos sociais, como transporte público, educação e saúde; de outro, pediam o fim da corrupção. A demografia dos manifestantes também é clara. Embora tenham sido maciças e mobilizado todo tipo de gente, elas foram predominantemente juvenis e não apenas apartidárias, como antipartidárias. Seis por cento dos brasileiros saíram às ruas em junho. O apoio aos protestos foi de 89%, e a rebelião popular fez a avaliação do governo Dilma despencar de 63% para 31%.

Junho de 2013 despertou uma inquietação social difusa, que não parece aplacar e tem sido politicamente explorada, tanto à esquerda como à direita. A polarização política foi a maneira como o sistema político enfrentou o levante de junho, dividindo as reivindicações dos manifestantes e colocando uma parte da sociedade civil para combater a outra.

Políticos de esquerda se apresentaram como quem poderia atender às demandas sociais, o que implicaria combater os setores anticorrupção, exibidos como uma elite econômica insensível. Os políticos de direita se apresentaram como quem poderia atender às demandas anticorrupção, o que implicaria combater a esquerda, exibida como fundamentalmente corrupta.

A unidade da sociedade civil que reivindicava simultaneamente direitos sociais e combate à corrupção foi cindida, e a revolta contra o Estado foi substituída por um antagonismo fratricida entre os setores da sociedade que prioritariamente defendiam direitos sociais e aqueles que prioritariamente combatiam a corrupção.

A subordinação da inquietação de junho aos interesses das lideranças políticas, de esquerda e de direita, se manifestou numa triste mudança de forma. Os alegres protestos multitudinários, enfeitados de cartazes dessemelhantes e animados por humor subversivo, foram substituídos pela ressurreição da forma comício que separava os líderes políticos monopolizando os microfones das massas passivas ostentando símbolos padronizados.

Mas, se a inquietação social do pós-junho de 2013 por um lado animou as manifestações polarizadas pró e anti-Dilma que dominaram os anos 2015 e 2016, ela também animou, nos mesmos anos, as duas ondas de ocupações de escolas, mostrando que o espírito original de junho não tinha de todo desaparecido.

Junho de 2013 é uma força subjacente que não se deixa inteiramente apreender pela esquerda ou pela direita. O espírito de junho parece estar presente no duradouro apoio à Lava-Jato, na mobilização dos entregadores por aplicativos e na intrigante greve dos caminhoneiros de 2018. Junho de 2013 é, ao mesmo tempo, o sangue da nova política brasileira e um persistente enigma a ser decifrado.

 

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