O Estado de S. Paulo
A PEC 9/2023 perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente
A partir de 2009, alterações legislativas
visaram a implementar maior participação das mulheres nos partidos políticos e
no processo eleitoral. Essas ações afirmativas receberam apoio significativo do
Judiciário, em decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo
Tribunal Federal (STF).
Estabeleceu-se no artigo 44, V, da Lei dos Partidos (Lei n.º 9.096/95) que os recursos partidários serão aplicados, no mínimo, no porcentual de 5% na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Por sua vez, conforme a Lei n.º 13.165 de 2015, determinou-se a reserva de no mínimo 5% e de no máximo 30% do montante do Fundo Partidário Eleitoral para aplicação nas campanhas de suas candidatas.
Todavia, o Congresso Nacional editou em
2019 a Lei n.º 13.831, por via da qual se introduzia na Lei dos Partidos
Políticos o artigo 55-C, segundo o qual “a não observância do disposto no
inciso V do caput do art. 44 desta lei, até o exercício de 2018, não ensejará a
desaprovação das contas”. Retirou-se força cogente da obrigação de destinar 5%
para a promoção da participação feminina nos partidos.
Em 2020 o TSE, respondendo à consulta da
deputada Benedita da Silva, fixou o entendimento de caber a divisão da “fatia
feminina” do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e TV entre candidatas negras e
brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas por cada partido. O
mesmo critério deveria ser adotado para homens negros e brancos.
O Congresso, que em 2019 abonara o
descumprimento das ações afirmativas para igualdade de gênero na vida política
e eleitoral, no entanto, reconheceu o seu relevo ao dar dignidade
constitucional àquelas ações, promulgando, em abril de 2022, a Emenda
Constitucional (EC) n.º 117. Por essa emenda, introduziram-se no artigo 17 da
Constituição os parágrafos 7.º e 8.º. Essas regras consagram a destinação de 5%
do fundo dos partidos para a promoção da participação política da mulher, bem
como a aplicação de até 30% do Fundo Eleitoral na campanha das candidatas.
Mas – tem sempre um mas –, nesta mesma
emenda constitucional, que dava alçada constitucional às ações afirmativas,
contraditoriamente, anistiavase o descumprimento dessas ações nas eleições
anteriores. Atribuía-se, portanto, caráter constitucional ao disposto no artigo
55-C da lei de 2019, acima reproduzido. No artigo 3.º desta EC, estipulou-se
não serem aplicadas “sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de
valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não
preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos
em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda
Constitucional”.
A incongruência é total: por um lado,
perdoava-se o descumprimento da lei; por outro, se dava relevo às ações
afirmativas. Em 2021, por exemplo, pela Emenda Constitucional n.º 111,
decidiu-se que, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos
recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha,
os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos
Deputados devem ser contados em dobro.
Tendo-se estabelecido em nível
constitucional a adoção de medidas favorecedoras da participação feminina na
vida partidária e nas eleições, a todos de boa-fé poderia parecer que, agora,
essas obrigações eram para valer. Se na eleição de 2022 as normas de promoção
da igualdade de gênero e de cor não foram observadas, multas e demais sanções
devem ser impostas aos partidos, pois só a eficácia delas tem capacidade de
constranger ao futuro respeito de sua disciplina e garantir sua observância.
Dessa forma, dar-se-ia concretude aos princípios reitores da Constituição,
inscritos em seu preâmbulo e consistentes na solidariedade, na redução das
desigualdades e no combate à discriminação por preconceito de sexo ou cor.
Contudo, reiterando comportamento
contraditório, o Congresso examina agora a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) n.º 9/2023, segundo a qual não serão aplicadas quaisquer sanções, multa
ou suspensão dos Fundos Partidário ou Eleitoral aos partidos que não
preencheram a cota mínima de recursos ou não destinaram os valores mínimos em
razão de sexo ou de cor.
Esta vergonhosa proposta perpetua a
desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas
endossadas constitucionalmente. As minorias são falsamente atendidas em ano
eleitoral, para serem depois abandonadas pelos partidos políticos, cujos
deputados e senadores têm o desplante de usarem indevidamente o poder de
legislar recebido do povo para garantir impunidade às suas entidades:
flagrante, portanto, o desrespeito ao princípio da moralidade ao legislar em causa
própria.
Revela-se que lei e normas constitucionais
em prol da igualdade surgem para inglês ver, um faz de conta, pois logo lhes
são retirados os efeitos, em afronta aos princípios cardiais de nosso arcabouço
constitucional. A PEC n.º 9/2023 atinge a Constituição e toca matéria muito
sensível, que só acentuará a desconfiança sobre o Parlamento.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
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