Governo precisa manter controle de pastas estratégicas
O Globo
Entregar ao Centrão ministérios como o da
Saúde em uma reforma desfiguraria a administração
Em nome da governabilidade, o presidente
Luiz Inácio Lula da
Silva prepara uma reformulação na Esplanada dos Ministérios, com maior espaço
para partidos que não estavam com o PT na campanha eleitoral de 2022. A decisão
faz todo o sentido para que o governo tenha um bloco de sustentação no
Congresso e, assim, pare de negociar apoio a cada votação.
Embora necessária, a adesão em maior peso do
Centrão não pode se dar a qualquer preço. Para evitar eventuais acusações de
estelionato eleitoral, ministérios estratégicos precisam permanecer sob o
comando daqueles ligados ao grupo vitorioso em outubro.
Num sistema presidencialista e
multipartidário, como o brasileiro, a regra é o presidente ser eleito sem
maioria no Parlamento. Por isso a necessidade, comum a todos os vencedores
desde a primeira eleição direta em 1989, de formar uma coalizão.
No passado, porém, a construção da base era menos complexa, porque o tamanho médio das bancadas era maior e caciques tinham mais controle sobre como elas votavam. Com o apoio de apenas três partidos, PFL, MDB e PPB, o tucano Fernando Henrique Cardoso obteve maioria de quase 70%. Em seu primeiro mandato, Lula governou com seis partidos.
De lá para cá, a costura política ficou
mais difícil. Mudanças na legislação e no comportamento dos eleitores
incentivaram transformações no “presidencialismo de coalizão”, termo criado
pelo sociólogo Sérgio Abranches em artigo de 1988. Apesar da redução da
fragmentação partidária, o Congresso passou a ter um número maior de bancadas
médias. Elas formam blocos e federações, mas isso não necessariamente significa
coesão.
Diante do problema que ajudou a criar, o
governo anterior decidiu abdicar de fazer política, ao entregar o orçamento
secreto às lideranças do Congresso. Em certa medida, a reforma ministerial
agora em gestação tenta escrever um novo capítulo no presidencialismo de
coalizão, com a maior presença de políticos de diferentes partidos pertencentes
ao Centrão dentro do governo, mesmo sem a garantia de apoio amplo das
respectivas bancadas. A meta tem os seus desafios.
Ávidos por ministérios com verbas vultosas
para gastar, eles miram os maiores alvos, como Saúde, Desenvolvimento e
Assistência Social e Educação. Mas mesmo que os partidos prestes a entrar ou
elevar o poder na Esplanada tivessem nomes com capacidade comprovada para
assumir essas pastas, não seria a melhor solução.
Governos se definem pelos ministérios que
consideram intocáveis. Isso valia no passado e continua valendo hoje. Os
partidos que agora tentam negociar o comando de pastas estratégicas são os
mesmos que estavam nesses postos no governo Bolsonaro.
Por óbvio, a reforma ministerial só terá
chance de sucesso se Lula oferecer postos do interesse de quem deseja atrair.
Nesse sentido, o PT e os partidos aliados deverão ceder algumas de suas pastas. A
presidente do PT, Gleisi Hoffmann, reconheceu ao GLOBO que o governo precisa
ter base no Congresso e está disposto a perder espaço. Esse é,
sem dúvida, o primeiro passo.
Redução de mortes violentas é positiva, mas
combate ao crime ainda desafia
O Globo
É estarrecedor que no ano passado o Brasil
tenha registrado o maior número de estupros da história
Contém boas e más notícias a nova edição do
Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A boa é que o país registrou
no ano passado o menor número de mortes violentas (homicídios dolosos,
latrocínios, lesões corporais seguidas de morte, mortes decorrentes de
intervenções policiais) da última década: 47.508. A taxa de mortalidade ficou
em 23,4 por 100 mil habitantes, uma queda de 2,4% em relação ao ano anterior. A
péssima é que em 2022 aconteceu o maior número de estupros da História. Foram
74.930 casos, um aumento de 8,2% em relação a 2021.
A tendência de queda nas mortes violentas
vem desde 2018 e pode ser explicada por vários motivos: mudança no perfil da
população brasileira, com diminuição do número de adolescentes e jovens, grupo
de maior risco; políticas públicas implantadas por estados; períodos de
armistício na guerra entre quadrilhas. Claro que qualquer redução da violência é
bem-vinda, mas o Brasil ainda apresenta indicadores inaceitáveis. Basta dizer
que, a cada hora, cinco brasileiros são assassinados.
Há que ressaltar ainda que as realidades
são diferentes conforme o estado e a região. No Nordeste, houve redução de 4,5%
na taxa de mortes violentas por 100 mil habitantes. Já as regiões Sul, Norte e
Centro-Oeste apresentaram aumento (3,4%, 2,7% e 0,8% respectivamente). Segundo
o Anuário, o Amapá, com 50,6 mortes por 100 mil habitantes (mais que dobro da
média nacional), é o estado mais violento. São Paulo (8,4) e Santa Catarina
(9,1) surgem como os menos violentos.
Na contramão de outros indicadores, o
aumento no número de estupros é estarrecedor. A cada hora, oito vítimas foram
estupradas em 2022. A maior parte (61,4%) tinha menos de 14 anos. Convém
lembrar que essas estatísticas representam apenas os casos registrados em
delegacias, e a subnotificação é alta nesse tipo de crime. Está claro que os
governos precisam formular políticas públicas específicas para combater essa
chaga que avilta o Brasil.
O combate à violência continua sendo um
desafio. Os tiroteios constantes, as balas perdidas, os assassinatos a qualquer
hora do dia e em qualquer lugar não dão aos brasileiros a sensação de que a
situação está melhorando. É verdade que há experiências bem-sucedidas, mas de
modo geral faltam políticas para enfrentar as quadrilhas. As que existem muitas
vezes são equivocadas, baseadas mais na truculência do que na inteligência e no
planejamento.
Está certo o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, ao cobrar a implementação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Aprovado em 2018, ele prevê uma integração maior entre os estados. O Brasil só conseguirá domar a violência quando tiver uma estratégia nacional, que envolva todas as forças de segurança. Sabe-se que as facções do Sudeste agem em todo o país — e até no exterior. Enquanto o problema não for tratado de forma distinta, o Brasil pode até obter reduções nas taxas de mortes, mas dificilmente conseguirá convencer o cidadão de que ele está mais seguro.
Um viés de investimento ainda não mapeado
Valor Econômico
Com a retomada da discussão sobre a reforma
tributária dedicada à renda, a sociedade tem uma oportunidade para discutir se
há ajustes a serem feitos
Qualquer ser humano, na hora de tomar suas
decisões financeiras, já tem que lidar com seus vieses psicológicos e
cognitivos, conforme o campo da psicologia econômica vem documentando há
algumas décadas. Estamos falando de comportamentos como efeito manada, Fomo
(fear of missing out), excesso de confiança e outros que, como se sabe, podem
levar os indivíduos a tomar decisões ineficientes ou pouco racionais na hora de
investir.
Aqui no Brasil, porém, há outro viés que
interfere na decisão das pessoas na hora de decidir o que fazer com suas
aplicações financeiras, que é a assimetria regulatória entre os produtos. Dados
divulgados pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e
de Capitais (Anbima) mostram uma retirada vultosa de recursos de fundos de
investimento, numa soma que alcançou R$ 379 bilhões nos últimos 12 meses até
junho. Sem olhar os dados no detalhe, alguém poderia imaginar que, numa época
de Selic elevada, os investidores brasileiros estão fugindo do risco de
aplicações mais voláteis em um período de incerteza nos mercados globais, e que
tiraram os recursos que estavam em fundos multimercados e de ações. Mas embora
isso também seja verdade, o fato é que a maior parte dos resgates se concentra em
fundos de renda fixa. Foram sacados R$ 256 bilhões em 12 meses. E isso justo
quando a taxa básica de juros está em 13,75% ao ano, nível que tanto incomoda o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e gera atritos recorrentes com o
presidente do BC, Roberto Campos Neto.
Com uma remuneração tão alta na renda fixa,
por que os investidores estão resgatando suas aplicações? E a resposta é que
não estão resgatando. Mas migrando os recursos para outro tipo de aplicação de
renda fixa, que tem regulação diferente. Outro dado recém-divulgado, desta vez
pela B3, aponta que as Letras de Crédito imobiliário (LCIs) e Letras de Crédito
do Agronegócio (LCAs) foram os produtos de maior destaque de captação também no
período de 12 meses até junho. Foram R$ 273 bilhões em dinheiro novo entrando
nessas aplicações nesse intervalo, com o estoque investido nesses dois produtos
saltando 61% em um ano, para mais de R$ 722 bilhões. Não que seja uma novidade,
mas as LCIs e LCAs gozam de duas importantes diferenças ante os fundos de investimento.
Elas não têm marcação a mercado e, portanto, o valor que o cliente vê aplicado
na conta não oscila diariamente, e são isentas de Imposto de Renda sobre o
ganho. Já os fundos de investimento precisam registrar seus investimentos,
tanto em títulos públicos quanto em corporativos (inclusive os feitos em papéis
de captação bancária), pelo valor de mercado, o que faz o preço de suas cotas
sacudir quando as condições de mercado mudam para pior. Além disso, estão
sujeitos a tributação, inclusive pelo come-cotas, que penaliza em 15% o retorno
das aplicações de investidores não multimilionários a cada seis meses
(lembrando que os fundos exclusivos ainda escapam desta tributação antes do
resgate). Esse diferencial competitivo das LCIs e LCAs, embora não seja novo,
se mostra ainda maior em um ambiente de taxa de juros mais elevada - e hoje com
alcance facilitado pelas plataformas digitais de investimento. É uma questão
matemática. Os 15% de IR que na melhor das hipóteses incidem sobre o ganho em
fundos de renda fixa podem representar 0,3 ponto percentual ao ano se a Selic
estiver a 2%, como ocorreu no auge da pandemia, ou mais de 2 pontos percentuais
com a Selic nos atuais 13,75% ao ano.
Apenas trocando a aplicação de um produto
menos eficiente do ponto de vista tributário por outro mais favorecido, mas
permanecendo na mesma classe de ativos, o investidor já ganha mais 2 pontos de
retorno no ano. De quebra, ainda escapa de ver seu investimento oscilar durante
a jornada - e aí a psicologia econômica explica essa relutância em se encarar a
realidade. Há que se dizer que provavelmente fez uma escolha certa o investidor
que fez essa troca, a depender do seu horizonte de investimento, de sua
necessidade de liquidez - já que muitas LCIs e LCAs só podem ser resgatadas no vencimento
-, e do seu apetite a risco de crédito (lembrando que nem todo emissor honra
seus compromissos e que o Fundo Garantidor de Créditos tem cobertura limitada a
R$ 250 mil).Mas há que se pensar se é isso que se deseja do ponto de vista
regulatório. Que um investimento tenha vantagem sobre o outro não pela sua
qualidade em si, mas pela diferença de regras a que está sujeito. Para citar
mais um exemplo, recentemente o Tesouro Nacional tomou a iniciativa de lançar
títulos públicos desenhados para os brasileiros programarem sua aposentadoria.
Chamado de Tesouro Renda+, o produto é de longo prazo e prevê amortizações em
parcelas mensais ao longo de 20 anos, e que funcionarão como renda complementar
ao INSS para os compradores.
O investimento não tem, porém, nenhuma
vantagem fiscal como os tradicionais PGBL e VGBL, e que carregam consigo, por
outro lado, os custos e taxas ligados à contratação de um plano de previdência.
Com a perspectiva de que a discussão sobre a reforma tributária dedicada à
renda seja retomada no segundo semestre, a sociedade tem uma oportunidade para
discutir quais desses incentivos tributários criados há bastante tempo
atingiram os objetivos inicialmente esperados, e se há ajustes a serem feitos,
seja com sua revisão ou com possível equiparação à de outros produtos, para que
a tributação seja neutra na tomada de decisão dos indivíduos.
Ambiente tenso
Folha de S. Paulo
Lula diz não ceder em acordo entre Mercosul
e UE, mas pode ter de voltar atrás
O giro do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) pela Europa, no que diz respeito ao meio ambiente, foi marcado por
alguma tensão e pouco resultado. O mandatário falou grosso, saiu de mãos vazias
e não demorará a ter sua gestão cobrada por coerência nessa matéria.
O governo brasileiro tinha expectativa de
ver a Dinamarca contribuir com o Fundo Amazônia, reativado após o congelamento
obtuso, por Jair Bolsonaro (PL), do dispositivo bilionário que recompensa o
Brasil por preservar florestas. O
desembolso não ocorreu, mas a primeira-ministra Mette Frederiksen declarou
empenhar-se por incluir algum valor no orçamento.
O fundo destravado já havia colhido
promessas de doações equivalentes a R$ 108 milhões da União Europeia (UE), R$
500 milhões do Reino Unido e R$ 2,5 bilhões dos EUA. Antes de ser paralisado,
Noruega e Alemanha haviam depositado R$ 3,3 bilhões.
O ponto focal do périplo europeu foi a
reunião de cúpula com 33 países da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e
Caribenhos (Celac) e 25 da UE, em Bruxelas. Ao final do encontro, em entrevista
coletiva, o petista elevou o tom ao abordar o acordo Mercosul-UE.
O ponto de atrito está na carta adicional
sobre o acordo enviada pela UE em março, tratando de padrões ambientais a serem
exigidos. Em abril, o Parlamento Europeu já havia aprovado lei proibindo
produtos oriundos de desmatamento —criticada por parte do setor agropecuário no
Brasil.
"Era uma carta que ameaçava com
punição se a gente não cumprisse determinados requisitos ambientais. Tem que
haver dois parceiros estratégicos, não discutir ameaças", queixou-se Lula
na entrevista. Ele
enviará uma contraproposta, mas assegurou que não vai ceder na questão.
O tempo dirá. Não se descarta que Lula
esteja a engrossar a voz mais no intuito de manter trunfo de negociação, talvez
para tentar salvar o que puder da política de compras estatais para favorecer
produtos nacionais. Nada a estranhar num governo que vê, equivocamente, o
Estado como principal agente da atividade econômica.
Péssimo será, entretanto, se Brasília
seguir implicando com cláusulas ambientais por subscrever a velha alegação do
agronegócio de que se trataria do também antigo protecionismo europeu. Se assim
foi no passado, deixou de ser.
Combater mudanças climáticas (e, portanto,
o desmatamento) representa hoje anseio legítimo de muitas nações, um imperativo
ditado pela ciência. O próprio governo brasileiro promete desmatamento zero;
assim, precisa adequar sua ação estratégica no tema, por coerência e por não haver
meia volta nessa marcha global.
Cracolândia ambulante
Folha de S. Paulo
Estado e município batem cabeça sobre
política que enfrente o problema em SP
Não há bala de prata para resolver um
problema complexo cuja causa é multifatorial, como a cracolândia na cidade de
São Paulo. Mas governo do estado e prefeitura parecem confusos até mesmo para
decidir qual caminho seguir.
Recentemente, o Palácio dos
Bandeirantes esteve calado, recusando entrevistas sobre o assunto.
O silêncio foi quebrado na terça (19), com
o anúncio de que o governo moveria a
aglomeração de usuários do bairro Santa Ifigênia para o Bom Retiro, ambos no
centro.
O objetivo seria afastar a cracolândia de
áreas residenciais e comerciais e aproximá-la de equipamentos públicos como o
Complexo Prates, da Prefeitura, que integra uma unidade de acolhida para
pessoas em situação de rua, um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e
uma unidade da Assistência Médica Ambulatorial.
Contudo, na quarta (20), o prefeito Ricardo
Nunes (MDB) disse que não havia sido informado sobre a intenção do estado.
A abordagem da prefeitura tem sido a do
confronto para desfazer grandes aglomerações, como a megaoperação policial na
Praça Princesa Isabel em maio de 2022 —o que facilitaria o contato de
assistentes sociais com os usuários.
O resultado, entretanto, foi a dispersão da
cracolândia por bairros do centro como Campos Elíseos e Santa Ifigênia, gerando
transtorno para comerciantes e moradores. Aumentaram os ataques a lojas e os
furtos de celulares de motoristas e de passageiros de ônibus.
Enquanto isso, moradores do
Bom Retiro se mobilizaram por meio de um abaixo-assinado contendo milhares de
adesões.
Com a repercussão, Tarcísio recuou. Na
quinta (20), o governo desistiu da transferência. Em nota oficial, disse que
novas possibilidades para solucionar a questão "serão divulgadas em
breve".
Mudar o problema de lugar está longe de
resolvê-lo. A prisão de traficantes também não é panaceia, já que novos jovens
são recrutados por organizações criminosas.
É preciso aumentar o policiamento para
coibir furtos, mas, enquanto os poderes municipal e estadual não se entenderem
para implementar um programa integrado e interdisplinar de longo prazo (com
saúde, segurança, moradia e geração de renda), a cracolândia continuará
perambulando pela cidade.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado, desde abril, o número de usuários no centro passou de 800 para 1.100.
O escandaloso jeitinho de tolerar o ilegal
O Estado de S. Paulo
Plano do governo de taxar apostas online é
mais um sintoma da pouca importância que se dá à lei. O jogo continua sendo
ilegal. Eventual legalização deve ser debatida antes no Congresso
Os jogos de azar são ilegais no Brasil. A
Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941), que proibiu a jogatina no
País, segue vigente. No entanto, o governo federal anunciou que vai editar uma
medida provisória (MP) para taxar as apostas online. Os porcentuais de cobrança
já estariam definidos: 16% sobre a receita obtida com os jogos e 30% de Imposto
de Renda sobre o prêmio, com isenção até R$ 2.112. Também já foi pensado o
destino do dinheiro a ser arrecadado com as apostas: seguridade social (10%),
Fundo Nacional de Segurança Pública (2,55%), clubes (1,63%), Ministério do
Esporte (1%) e educação fundamental (0,82%).
A rigor, o plano do governo federal é uma
aberração. O poder público não pode ser indiferente à lei. Não faz sentido
cobrar imposto de atividades ilegais, como o tráfico de drogas ou a venda de
órgãos humanos. Atividades ilegais devem ser reprimidas, e não incluídas entre
as fontes de receita. No entanto, em vez de ser tratado como um escândalo, o
caso da taxação das apostas está sendo visto com normalidade por muita gente. E
isso diz muito sobre como as coisas funcionam no País.
Houve inúmeras tentativas para legalizar os
jogos de azar no País, mas todas elas fracassaram. No ano passado, a Câmara
chegou a aprovar, sem maiores discussões, um projeto de lei legalizando a
jogatina, mas o Senado, de forma prudente, não votou a proposta, preferindo
esperar. Até aqui, portanto, se verifica a vontade inequívoca do Legislativo
brasileiro de proibir o jogo. Em 2015, reiterando essa disposição, o Congresso
alterou o Decreto-Lei 3.688/1941 para incluir na pena de multa “quem é
encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro
meio de comunicação, como ponteiro ou apostador”. Em vez de liberar, ele
ampliou e reforçou a proibição.
No entanto, sem maiores alardes – sem o
necessário debate, próprio do regime democrático – , o lobby pela legalização
dos jogos conseguiu incluir, em 2018, no texto da MP 846/2018, sobre o Fundo
Nacional de Segurança Pública, cinco artigos sobre “apostas de quota fixa”,
“sob a forma de serviço público exclusivo da União”, a serem exploradas
mediante autorização ou concessão do Ministério da Fazenda. Foi a velha e
conhecida manobra de aproveitar a tramitação célere de MP para aprovar um tema
politicamente complicado.
Com isso, desde 2018, passou a existir na
legislação brasileira uma autorização genérica para “apostas de quota fixa”. No
entanto, o governo nunca regulamentou o tema. E, pelo próprio teor da redação
final da MP 846/2018 (depois convertida na Lei 13.756/18), era preciso dispor
de uma regulamentação, já que a atividade só pode ser explorada mediante
autorização ou concessão do Ministério da Fazenda. Ou seja, enquanto não houver
a devida regulamentação, nenhuma empresa pode promover apostas no País. No
entanto, a entrada em vigor da Lei 13.756/2018 foi vista como uma liberação
irrestrita da jogatina online.
Trata-se de fenômeno realmente peculiar.
Nenhuma empresa que oferece apostas online no Brasil cumpre os requisitos da
Lei 13.756/2018. No entanto, todas elas entenderam que a nova lei havia lhes
concedido o direito de realizar apostas no País. Com isso, sem mudar uma
vírgula da Lei de Contravenções Penais, a jogatina foi “legalizada” no País. Se
alguém tem dúvida, é só assistir a uns minutos de televisão no Brasil.
No entanto, a escandalosa interpretação da
lei não foi exclusividade das casas de apostas online. O Ministério Público
parece não ter visto maiores problemas. E o próprio governo, ao reparar no sucesso
das apostas esportivas, em vez de buscar a aplicação da lei, viu na jogatina
uma nova fonte de receita.
Jogo de azar é tema complexo, com muitos
efeitos sociais e também sobre o esporte, como mostram os esquemas de
manipulação de partidas. Não cabe solução sorrateira. E a voz final não pode
ser das casas de apostas nem do governo de plantão. Eventual legalização
precisa ser debatida com calma no Congresso. Qualquer atalho viola o regime
democrático.
Aportes privados na gestão do SUS
O Estado de S. Paulo
Saúde é direito de todos, mas, como na
educação, serviços de qualidade estão restritos aos poucos que conseguem pagar.
A iniciativa privada pode aportar excelência à gestão do SUS
“A saúde
é direito de todos e dever do Estado”, diz a Constituição. Para satisfazer esse
direito foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS). Emulando o modelo britânico
(NHS), o SUS se tornou o maior sistema de saúde universal e gratuito do
planeta. Mas o Brasil é um dos 10 países mais desiguais do mundo, e essa desigualdade
tem reflexos flagrantes na saúde. O SUS serve cerca de 75% da população
brasileira. Mas apenas 46% dos gastos brasileiros com saúde são direcionados a
ele. Assim, na saúde perpetua-se o modelo “Belíndia” – o país quimérico que
combina a Bélgica e a Índia –, em que uma parcela concentrada da população paga
caro por serviços de qualidade, enquanto a grande maioria recebe do Estado
serviços gratuitos, mas precários. Como reduzir esse fosso?
Uma medida incontornável, tanto mais se
considerando o envelhecimento da população, é ampliar os gastos públicos com
saúde. Nos últimos dez anos, o gasto com saúde no Brasil aumentou, atingindo
9,6% do PIB – mais do que a média da OCDE, de 8,8%. Mas, como se viu, a maioria
desse gasto é privada e atende poucos, deixando o SUS subfinanciado. A parcela
do Orçamento público à saúde, 10,5%, é menor do que a média da OCDE, de 15,3%.
O Instituto de Estudos para Políticas de
Saúde (Ieps) estima que, para cobrir as necessidades de financiamento do SUS,
será preciso aumentar o gasto público dos atuais 3,9% do PIB para 6% até 2030.
O Ieps recomenda quatro estratégias para tanto: reduzir substancialmente
renúncias fiscais em saúde; realocar recursos de outras áreas; fomentar o
aumento de gastos por outras entidades do pacto federativo; e ampliar a
tributação de setores econômicos que inflijam custos sobre a saúde, como
bebidas açucaradas, alimentos ultraprocessados, álcool e tabaco.
Outra necessidade concomitante é melhorar a
gestão dos recursos públicos. O Banco Mundial estima que 30% dos recursos da
União destinados ao SUS são mal empregados. Aqui as parcerias com o setor
privado podem ter um papel crucial.
Um modelo importante têm sido as
contratualizações, nas quais Organizações Sociais de Saúde e instituições
filantrópicas gerenciam os serviços de saúde pública. Segundo o ranking da
Organização Pan-Americana da Saúde, dos 17 hospitais públicos mais bem
avaliados, 15 têm gestão privada.
Outra possibilidade é a transferência de
expertise para o SUS por parte de hospitais de referência. Com esse objetivo,
foi criado em 2009 o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS
(Proadi-SUS). Por meio dele, seis hospitais filantrópicos de excelência
reconhecida pelo Ministério da Saúde (Einstein, Oswaldo Cruz, SírioLibanês,
HCor, Beneficência Portuguesa e Moinhos de Vento) atuam em projetos de
capacitação de recursos humanos, pesquisa, avaliação e incorporação de
tecnologias, gestão e assistência especializada.
Os projetos são geridos com recursos
correspondentes à isenção fiscal de impostos como PIS, Cofins e cota patronal
do INSS. Em mais de 13 anos, foram investidos cerca de R$ 7,9 bilhões, em cerca
de 750 projetos. Entre os benefícios destacam-se a redução de filas de espera;
qualificação de profissionais; pesquisas de interesse da saúde pública; gestão
do cuidado apoiado por inteligência artificial e melhorias de gestão. Segundo
levantamento reportado pelo Estado, um dos programas – o Saúde em Nossas Mãos,
de treinamento de profissionais em UTIs para combater um dos grandes problemas
das unidades fechadas, a infecção hospitalar – evitou em 6 anos mais de 11 mil
casos de infecção e salvou mais de 4 mil pessoas. Calcula-se que o projeto
tenha gerado uma economia de R$ 548 milhões aos cofres públicos.
Assim como a saúde, há direitos previstos
pela Constituição cujo acesso, em muitos casos, já está praticamente
universalizado. Mas falta atingir a excelência. Há um amplo leque de serviços
públicos que podem ser geridos ou qualificados pela iniciativa privada.
Experiências como a do Proadi deveriam ser levadas em conta nos serviços
públicos de infraestrutura, cultura, seguridade social e, sobretudo, educação.
O incrível caso da ITA
O Estado de S. Paulo
Era tão previsível que a companhia aérea
iria falir que espanta ter sido autorizada a operar
A decretação de falência da Itapemirim
Transportes Aéreos (ITA) pela 1.ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de
São Paulo não surpreendeu absolutamente ninguém. Afinal, a empresa já estava
inoperante desde 17 de dezembro de 2020, quando, às vésperas do Natal, anunciou
de supetão – aí sim, para perplexidade de milhares de passageiros, muitos deles
em áreas de embarque de aeroportos – a suspensão “temporária” de seus voos, que
jamais conseguiu retomar.
O que mais impressiona nesse caso é que
nada disso suscitou uma discussão séria sobre eventuais mudanças nas normas e
nos protocolos para garantir a segurança e os direitos de consumidores,
funcionários e demais agentes do setor. Houve grande celeuma nas semanas
seguintes à suspensão abrupta da operação, pouco mais de cinco meses depois do
voo inaugural, mas, ao que se saiba, não foi tomada nenhuma providência para
aperfeiçoar o regramento para operação em uma área que requer expertise.
A participação fugaz da ITA no mercado de
transporte aéreo é intrigante em todos os aspectos. Os investidores, do Grupo
Itapemirim, tentavam consumar a recuperação judicial de seu principal negócio,
a Viação Itapemirim, que mais tarde também faliu; o setor aéreo operava então
em meio à crise provocada pela pandemia de covid; três anos antes o grupo
anunciara com estardalhaço a compra da Passaredo, que foi desfeita em seguida
pela companhia regional, sob a alegação de que a Itapemirim não havia cumprido
os termos acordados.
A entrada de uma nova companhia de aviação
em plena pandemia foi muito incentivada e comemorada pelo governo federal em
2020. Em outubro, em uma das suas tradicionais lives, o então presidente Jair
Bolsonaro gravou um vídeo no qual recebia de seu ministro da Infraestrutura,
Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, a miniatura de um “busão da
Itapemirim”. Os dois iniciaram, então, um diálogo farto em elogios à nova
companhia aérea que, àquela altura, já figurava no topo das listas de
reclamações no Procon. Viraram meme na internet dois meses depois.
Ao contrário do transporte urbano de
passageiros, geralmente feito pelo sistema de concessão do poder público a
empresas privadas, o transporte aéreo segue o modelo de autorização. Não há uma
disputa pública, mas o postulante à operação do serviço deve cumprir uma série
de exigências impostas pelo órgão regulador, no caso a Agência Nacional de
Aviação Civil (Anac). Muito se questionou, na época, como a Anac havia
autorizado o funcionamento de uma empresa sem qualquer experiência no ramo e
controlada por um grupo já em dificuldades. A agência garantiu ter cumprido
todas as exigências legais.
Não se discute que, para fomentar novos empreendimentos, o País deve incentivar a livre concorrência e facilitar trâmites burocráticos, mas é evidente que isso deve ser feito de forma criteriosa, capaz de inibir o caos provocado por aventureiros. O setor aéreo está repleto de exemplos de companhias extintas, como Transbrasil, Varig, Vasp e Avianca. Mas um caso tão peculiar como o da ITA deveria ser usado para aprimorar regras que, ao que tudo indica, deixam a desejar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário