O Estado de S. Paulo
Atenuar seu processo é um esforço de mão
dupla. Mas é mais fácil para o vencedor cuidar de suas obras e ignorar o
vencido do que o contrário
O episódio que envolveu o ministro
Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma reacendeu a luz amarela da polarização
política. Uma hipótese é de que seria atenuada depois das eleições. Os
acontecimentos de 8 de janeiro serviram para varrer essa ilusão. Na verdade, as
portas dos quartéis já tinham virado acampamentos, algumas estradas foram
bloqueadas, não havia ainda uma sensação de normalidade.
Já se foram seis meses de novo governo e o
esperado processo de pacificação nacional não se consumou. Não há culpados
porque trabalhamos com variáveis que escapam ao nosso controle: a globalização
e suas lacunas, o empobrecimento das classes médias em alguns pontos do mundo,
a emergência da internet com seus milhões de atores anônimos, parte deles
frustrada com o processo político.
No entanto, é possível fazer alguma coisa, além da necessária punição de excessos e do trabalho pedagógico que às vezes se resume a lições de moral.
É preciso, em primeiro lugar, uma vontade
real de atenuar a polarização e, em seguida, um debate sobre os meios de
atingir esse objetivo. Debate difícil, pois os polos sempre reagirão a ele,
denunciando-o como uma capitulação.
Política, justiça, imprensa e academia são
vistos hoje como se formassem um bloco e denunciados como se constituíssem um
sistema monolítico. Sabemos que não é bem assim, mas esse é o discurso de quem
distribui as pílulas vermelhas da rebelião para que, como no filme, as pessoas
se libertem da Matrix.
Creio que isso implica certos cuidados. No
caso do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por exemplo, já foi dada a sentença
máxima, que é a de excluir Bolsonaro das eleições até 2030. O ideal seria
examinar todos os processos juntos, proferir uma só sentença, evitar a sensação
de que Bolsonaro está sendo punido muitas vezes, pelo mesmo crime.
Houve uma especulação que pareceu mais
perigosa ainda. Ela sugeria que o Tribunal de Contas da União (TCU) faria uma
condenação à parte e estenderia a pena de exclusão de Bolsonaro para além de
2030. Seria uma jabuticaba: um tribunal de contas, ao invés de determinar
multas ou restituições, entrar na seara de cassações eleitorais.
Ainda no campo da justiça, dois temas
delicados. O primeiro deles é o processo dos implicados no 8 de janeiro,
inclusive alguns militares como o tenente Mauro Cid. É claro que tentativas
golpistas precisam ser punidas, independentemente de sua eficácia. Nesses
casos, a incompetência não é uma atenuante. Mas o processo de punição implica
julgamento e sentença. A sensação que se tem é de que as pessoas estão presas
há muito tempo. Como os processos correm em sigilo, não há parâmetros para
avaliar se essa sensação procede. Ela fica no ar, sobretudo para familiares e
aliados políticos dos envolvidos.
O segundo campo, em que também é muito
difícil de transitar, é do exercício da liberdade de expressão. Garantida por
Constituições democráticas, ela não é, entretanto, ilimitada. Convive com
outras liberdades e não se pode sobrepor à lei que, por exemplo, proíbe o
racismo e a homofobia.
Temos usado a ideia de que tudo o que é
crime na vida real deve ser também punido no mundo virtual. Não é uma definição
cem por cento precisa, mas serve de base para o debate.
Algumas forças políticas tentam usar a
liberdade de expressão para atingir os próprios fundamentos da democracia.
Neste caso, é iluminada a definição do pensador Isaiah Berlin: a liberdade do
lobo é a morte do cordeiro.
Com todas essas certezas, ainda assim é
difícil de operar algum tipo de censura. O terraplanismo, por exemplo, é apenas
ignorância e deve ser tratado pedagogicamente. Já o movimento antivacina entra
numa área mais cinza: é ignorância científica, mas não tão inofensivo como o
terraplanismo. Um presidente que se coloca contra a vacina merece uma avaliação
distinta e mais severa que um homem comum que acredita que Bill Gates vai inocular
um vírus no seu organismo.
Não conheço o trabalho do humorista Monark.
Lembra apenas a marca da bike que usei no passado. No entanto, tenho lido
artigos assegurando como suas piadas não são capazes de abalar a democracia
brasileira. Neste caso, não seria melhor deixálo em paz do que impulsionar sua
fama? Nos EUA, usam a expressão desplataformizar. Ocorre que as plataformas vão
reaparecendo aqui e ali na internet, as pessoas perdem a audiência até o
momento em que não se divulgue sua nova morada.
Atenuar o processo de polarização é um
esforço de mão dupla. No entanto, é mais fácil para o vencedor cuidar de suas
obras e ignorar o vencido do que o contrário.
No campo político e midiático, a presença
de Bolsonaro não corresponde mais à realidade de sua exclusão do processo
eleitoral e também à sua pouca influência no partido político a que se filiou.
Há todo um caminho aberto para discutir
como atenuar a polarização. Vivemos tão imersos nela nos últimos anos que, às
vezes, tenho a impressão de que não saberíamos viver um processo político
maduro, no qual os atores políticos discordam sem se odiar, as ideias brigam,
mas as pessoas não.
Apostar neste esforço é apostar em novas
conquistas, como foi, por exemplo, a reforma tributária: não ideal, mas
possível num espaço marcado por tantas divergências.
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