Eu & / Valor Econômico
O julgamento do caso acabará se tornando um
julgamento de brancos: os valores subjacentes às leis são majoritariamente os
de um direito que reflete os interesses das categorias sociais politicamente
dominantes
É esclarecedora a entrevista que a ministra
dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, deu a João Valadares, do Valor. Ficam claros os impasses
e indecisões, relativos à questão do chamado marco temporal para invalidação do
direito dos indígenas ao seu território de ocupação imemorial.
Este é o país dos crimes conexos. Não só em
relação aos territórios indígenas, mas também em relação aos problemas sociais
relativos a pendências históricas quanto aos direitos das populações
originárias. Ainda temos escravidão e trabalho escravo. O Brasil ainda é,
portanto, o país do atraso. É no marco desse atraso que foi criado o problema
do marco temporal.
A entrevista é expressão de consciência social, da unidade na diferença dos povos indígenas brasileiros. E das dificuldades políticas e partidárias a que se faça valer o seu direito de posse imemorial das terras que são parte da sua cultura territorial. Eles têm sido saqueados impunemente com base no falso pressuposto de que “índio não tem querer”, como me disse um notório grileiro de terra indígena no Mato Grosso.
No entanto, esse saque antissocial e
anticapitalista encontrará pela frente as populações que foram lesadas em algum
momento da história do país pelos autores dessa modalidade violenta, na
acumulação primitiva de capital, de saque do patrimônio dos frágeis.
Indígenas, quilombolas e sem-terra,
excluídos e lesados desenvolveram uma significativa consciência de identidade e
de vítimas da privação injusta que lhes compromete a sobrevivência social e a
devida participação na definição dos destinos do país. A questão fundiária, no
seu amplo sentido, vem se tornando cada vez mais uma questão política e cada
vez mais uma questão de confronto de direitos que compromete a possibilidade da
democracia e a de um pacto viável pelo desenvolvimento econômico com
desenvolvimento social.
Os historicamente beneficiários da
concentração da propriedade e da distribuição desigual de poder e renda
dificilmente conseguirão manter seus privilégios. Cada vez mais considerados
pelas vítimas e por aqueles que se identificam com sua causa como usufrutuários
da iniquidade.
O julgamento do caso acabará se tornando um
julgamento de brancos: os valores subjacentes às leis são majoritariamente os
de um direito que reflete os interesses das categorias sociais politicamente
dominantes. A menos que os juízes encontrem nele brechas que permitam julgar
com base na realidade socialmente pluralista do Brasil.
Se isso não ocorrer, se confirmará que os
indígenas brasileiros não são juridicamente iguais, mas desiguais e socialmente
inferiores. A propriedade capitalista da terra será socialmente superior à
condição humana dos que dela carecem para sobreviver com dignidade.
Pode-se ver indícios de que a concepção de
marco temporal poderá se tornar legal sem ser legítima. Quem legitima o direito
do indígena é o indígena, ainda que dependa do reconhecimento de legitimidade
de outras categorias sociais.
Numa sociedade cuja luta social pelo
direito à diferença e, portanto, à legitimidade e legalidade da diferença, está
ela no centro da tensa agenda política do país. Reduzir à concepção branca de
terra-mercadoria o direito imemorial do índio ao seu território é uma violência
a mais na deplorável história de violências contra as populações originárias.
Penso que a decisão do STF incidirá sobre o
conjunto da questão agrária, envolvendo suas vítimas não indígenas, na medida
em que pesa sobre o direito de propriedade da terra um conjunto acumulado de
indefinições decorrentes de violações históricas de direitos das populações
subalternas. Exatamente em relação à interpretação formal do direito à terra
por parte dos que tinham poder e dominação sobre seus agregados e servos.
Quando alternativas de direito, na questão
da terra, foram escamoteadas com a fragilização das vítimas de sujeição em
formas degradadas de trabalho. O poder da força na sujeição dos subalternos
como fator de lesão de direitos contidos nas leis é uma questão também
pendente, subjacente a uma concepção de direito baseada na suposta legitimidade
da privação de direito dos socialmente frágeis.
O tema do marco temporal contém a
possibilidade de legalizar uma fraude contra tradições e costumes do indígena,
a “lei do índio”, com base na “lei do branco”, a de apenas uma parcela da
população, a dos que concebem a terra como mera mercadoria.
Agora, porém, as vítimas se tornaram novos
sujeitos de vontade política e de direito. O STF se defronta, portanto, com um
momento social e politicamente decisivo da história do Brasil. Terá que decidir
o que deve ser cidadania: privilégio de alguns ou direito de todos.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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