Valor Econômico
Programa que por coincidência começou a
funcionar nesta semana
Há exatos cinco anos o então candidato a
presidente Ciro Gomes (PDT) prometia em sua terceira tentativa frustrada em
chegar ao Palácio do Planalto “tirar as pessoas do SPC”. O pedetista foi o
primeiro a jogar luz sobre o tema em uma campanha eleitoral. O programa
Desenrola que por coincidência começou a funcionar nesta semana parece ser
livremente inspirado na promessa de campanha do pedetista, mas com uma
diferença essencial: a proposta de Ciro sinalizava para a imposição da força do
governo sobre o sistema financeiro. Já o programa de Lula 3 conta com o endosso
explícito do mercado.
As dimensões do problema que Ciro se propôs a enfrentar e que Lula está enfrentando são espantosas. Em maio de 2018, dados do Serasa apontavam para uma massa de 61,4 milhões de CPFs inadimplentes, o que por si só já abarcava 40,3% da população adulta do Brasil. Em maio deste ano eram 71,9 milhões de pessoas com o nome sujo, ou 44% dos brasileiros maiores de idade. É um contingente superior àquele dos beneficiados pelo Auxílio Brasil durante a pandemia, o que significa que programa governamental nenhum irá atingir tantos em tão pouco tempo.
O propósito tanto de Lula quanto de Ciro
era o mesmo: favorecer uma renegociação de dívidas que devolvesse grande parte
deste contingente para o mundo do crédito. Nas palavras de Lula nessa
terça-feira: “Vai se aproximando o fim do ano, o Dia da Criança, é muito
importante que as pessoas estejam libertas de suas pequenas dívidas para fazer
outra dívida”. Este objetivo por si só amplia a base de potenciais clientes do
sistema financeiro. De quebra, retira créditos que estavam no passivo das
instituições financeiras como irrecuperáveis.
A promessa de Ciro sinalizava, contudo,
para um possível conflito com o mercado. O então candidato falava em “utilizar
a força do governo federal para negociar essas dívidas com os credores”. Conforme
relembra o antigo coordenador dos programas de governo de Ciro, Nelson Marconi,
o entendimento era que seria desnecessária a criação de estímulos para que o
setor privado aderisse ao programa. Bancos públicos seriam usados para forçar
as demais instituições a serem generosas nas concessões.
Como se tratava de uma promessa de campanha
e não de um programa de governo, impossível saber se seria essa a forma de
implementação. Se fosse, não se pode descartar que produzisse muita espuma e
pouca água.
No programa do petista que já começou a
funcionar há uma clara parceria com os bancos. E se oferece um grande atrativo
para eles se envolverem.
O Desenrola tem duas etapas: a que começou
nesta semana cria um incentivo fiscal para que bancos privados aceitem renegociar
dívidas de pessoas com renda até R$ 20 mil. Cada real de desconto na dívida
vira um real de crédito tributário presumido. A estimativa do governo é que 30
milhões de negativados possam ser beneficiados, o que significaria um total de
crédito presumido máximo de R$ 50 bilhões.
A próxima etapa, que deve entrar em vigor
em setembro, promove leilões de dívidas financeiras e não financeiras até R$ 5
mil, para a faixa de renda que recebe até dois salários mínimos, com aval do
Tesouro. Neste caso a taxa de juros proposta é de 1,99% mensal, o que
anualmente representaria um juro acima de 20%, segundo Marconi.
Este crédito presumido configura um
benefício fiscal entre os maiores da atualidade e tem uma vertente inovadora.
“É inusual renúncia fiscal para atividades financeiras. Nunca observamos algo
parecido”, afirmou o advogado tributarista Fernando Zilveti, diretor do
Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Não à toa a financeira XP
divulgou na terça-feira relatório em que técnicos da instituição afirmam ver o
Desenrola com “bons olhos”.
A parceria entre o governo federal e o
mercado para impulsionar o Desenrola começou ainda durante a campanha. Em
posicionamento divulgado em abril, a Febraban deixou claro: a instituição e
seus associados estavam “diretamente envolvidos na concepção e no
desenvolvimento do programa Desenrola desde o período da campanha eleitoral,
quando foi procurada pelo atual governo para auxiliar tecnicamente sobre o
conceito e a plataforma necessária para a medida, o que também ocorreu durante
a transição e até o presente momento”.
O programa Desenrola confirma um padrão já
observado no primeiro governo de Lula que se reafirma agora; o lulismo concebe
propostas orientadas para todo mundo ganhar, tanto a base como a cúpula da pirâmide
social. O crédito consignado, quando foi concebido em 2003, assim foi
apresentado. O Fies também.
Definitivamente não é do feitio de Lula
arbitrar perdas. Face ao momento que o Brasil atravessa, não haverá muitas
ocasiões como a proporcionada pelo Desenrola. Um sinal nesta direção pôde ser
observado essa semana. Havia a previsão de que a reforma do Imposto de Renda
tramitasse de forma concomitante à reforma tributária no Senado, mas não será
mais assim. O adiamento para o fim do ano da proposta que deverá trazer a
tributação de dividendos, é eloquente sobre a delicadeza da arbitragem.
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