sexta-feira, 21 de julho de 2023

César Felício - Sem perdas para arbitrar no Desenrola

Valor Econômico

Programa que por coincidência começou a funcionar nesta semana

Há exatos cinco anos o então candidato a presidente Ciro Gomes (PDT) prometia em sua terceira tentativa frustrada em chegar ao Palácio do Planalto “tirar as pessoas do SPC”. O pedetista foi o primeiro a jogar luz sobre o tema em uma campanha eleitoral. O programa Desenrola que por coincidência começou a funcionar nesta semana parece ser livremente inspirado na promessa de campanha do pedetista, mas com uma diferença essencial: a proposta de Ciro sinalizava para a imposição da força do governo sobre o sistema financeiro. Já o programa de Lula 3 conta com o endosso explícito do mercado.

As dimensões do problema que Ciro se propôs a enfrentar e que Lula está enfrentando são espantosas. Em maio de 2018, dados do Serasa apontavam para uma massa de 61,4 milhões de CPFs inadimplentes, o que por si só já abarcava 40,3% da população adulta do Brasil. Em maio deste ano eram 71,9 milhões de pessoas com o nome sujo, ou 44% dos brasileiros maiores de idade. É um contingente superior àquele dos beneficiados pelo Auxílio Brasil durante a pandemia, o que significa que programa governamental nenhum irá atingir tantos em tão pouco tempo.

O propósito tanto de Lula quanto de Ciro era o mesmo: favorecer uma renegociação de dívidas que devolvesse grande parte deste contingente para o mundo do crédito. Nas palavras de Lula nessa terça-feira: “Vai se aproximando o fim do ano, o Dia da Criança, é muito importante que as pessoas estejam libertas de suas pequenas dívidas para fazer outra dívida”. Este objetivo por si só amplia a base de potenciais clientes do sistema financeiro. De quebra, retira créditos que estavam no passivo das instituições financeiras como irrecuperáveis.

A promessa de Ciro sinalizava, contudo, para um possível conflito com o mercado. O então candidato falava em “utilizar a força do governo federal para negociar essas dívidas com os credores”. Conforme relembra o antigo coordenador dos programas de governo de Ciro, Nelson Marconi, o entendimento era que seria desnecessária a criação de estímulos para que o setor privado aderisse ao programa. Bancos públicos seriam usados para forçar as demais instituições a serem generosas nas concessões.

Como se tratava de uma promessa de campanha e não de um programa de governo, impossível saber se seria essa a forma de implementação. Se fosse, não se pode descartar que produzisse muita espuma e pouca água.

No programa do petista que já começou a funcionar há uma clara parceria com os bancos. E se oferece um grande atrativo para eles se envolverem.

O Desenrola tem duas etapas: a que começou nesta semana cria um incentivo fiscal para que bancos privados aceitem renegociar dívidas de pessoas com renda até R$ 20 mil. Cada real de desconto na dívida vira um real de crédito tributário presumido. A estimativa do governo é que 30 milhões de negativados possam ser beneficiados, o que significaria um total de crédito presumido máximo de R$ 50 bilhões.

A próxima etapa, que deve entrar em vigor em setembro, promove leilões de dívidas financeiras e não financeiras até R$ 5 mil, para a faixa de renda que recebe até dois salários mínimos, com aval do Tesouro. Neste caso a taxa de juros proposta é de 1,99% mensal, o que anualmente representaria um juro acima de 20%, segundo Marconi.

Este crédito presumido configura um benefício fiscal entre os maiores da atualidade e tem uma vertente inovadora. “É inusual renúncia fiscal para atividades financeiras. Nunca observamos algo parecido”, afirmou o advogado tributarista Fernando Zilveti, diretor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Não à toa a financeira XP divulgou na terça-feira relatório em que técnicos da instituição afirmam ver o Desenrola com “bons olhos”.

A parceria entre o governo federal e o mercado para impulsionar o Desenrola começou ainda durante a campanha. Em posicionamento divulgado em abril, a Febraban deixou claro: a instituição e seus associados estavam “diretamente envolvidos na concepção e no desenvolvimento do programa Desenrola desde o período da campanha eleitoral, quando foi procurada pelo atual governo para auxiliar tecnicamente sobre o conceito e a plataforma necessária para a medida, o que também ocorreu durante a transição e até o presente momento”.

O programa Desenrola confirma um padrão já observado no primeiro governo de Lula que se reafirma agora; o lulismo concebe propostas orientadas para todo mundo ganhar, tanto a base como a cúpula da pirâmide social. O crédito consignado, quando foi concebido em 2003, assim foi apresentado. O Fies também.

Definitivamente não é do feitio de Lula arbitrar perdas. Face ao momento que o Brasil atravessa, não haverá muitas ocasiões como a proporcionada pelo Desenrola. Um sinal nesta direção pôde ser observado essa semana. Havia a previsão de que a reforma do Imposto de Renda tramitasse de forma concomitante à reforma tributária no Senado, mas não será mais assim. O adiamento para o fim do ano da proposta que deverá trazer a tributação de dividendos, é eloquente sobre a delicadeza da arbitragem.

 

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