Eu & / Valor Econômico
Ela é importante para a qualidade das
políticas públicas e para a garantia da democracia
As eleições presidenciais de 2022 deram
vários recados, mas um não recebeu a atenção necessária no debate público:
Bolsonaro não foi reeleito porque fracassou no campo das políticas públicas e o
eleitorado preferiu a memória dos governos Lula, bem mais efetivos na provisão
de direitos e serviços públicos, especialmente para os mais pobres. O fracasso
bolsonarista começou quando decidiu sucatear a burocracia, perdendo as
condições de gerar respostas adequadas às demandas do país. Essa lição precisa
também ser assimilada pela nova gestão lulista, que, além de evitar o caminho
desastrado de seu antecessor, precisará dar passos a mais para melhorar a
administração pública.
É impossível produzir políticas públicas adequadas sem uma burocracia qualificada, engajada, com capacidade e autonomia básicas para tomar decisões técnicas e controladas por parâmetros democráticos. Esse receituário reconhecido internacionalmente, com múltiplas evidências científicas, foi negligenciado pela gestão bolsonarista. Quatro fatores levaram a esse equivocado projeto de enfraquecer a profissionalização da gestão pública.
O primeiro foi uma percepção liberal
infantil ou extremamente ideologizada que imaginava que o mercado resolveria os
mais importantes dilemas coletivos do país. O condutor desse modelo foi o
ministro Paulo Guedes, alguém que nunca tinha tido experiência como gestor
público e, como um amador que era, preferiu ideias à realidade. Resultados:
pioraram os principais problemas sociais do país e o seu chefe, o presidente
Bolsonaro, não se reelegeu.
Uma segunda fonte dessa visão foi a crença
de que a digitalização do setor público resolveria todas as questões gerenciais
e de produção de serviços. A literatura tem mostrado a importância do governo
eletrônico em vários campos, desde a melhoria de processos até o aumento da
transparência governamental - este último ponto não era o forte da proposta
bolsonarista, por exemplo. Só que ele não será capaz de dar conta de várias
ações governamentais que precisam de gente qualificada, a não ser num cenário
completamente distópico no qual a inteligência artificial substitui todos os
humanos. A tecnologia é fundamental em áreas como educação, saúde, meio
ambiente, mas não substituirá o professor, o médico e muito menos o fiscal do
Ibama - quem tinha dúvidas disso, os números do desastre florestal enterraram
essa concepção essencialmente antiburocratas.
Mas nem só de ideários vivia o desmonte
bolsonarista da burocracia. Duas de suas motivações relacionam-se mais com seu
projeto político de extrema direita e de perpetuação no poder. O primeiro era
destruir todas as políticas públicas ancoradas no espírito da Constituição de
1988, de ampliação de vários direitos. Assim, houve o ataque à burocracia
ambiental, educacional, sanitária, assistencial e mesmo a quem garantia o
alicerce básico do Estado, como o pessoal do Itamaraty.
Neste sentido, a motivação aqui não era um
liberalismo despreparado, nem uma visão ingênua sobre tecnologia, que ampararam
a meta de enfraquecimento do serviço civil - e vale aqui separá-los dos
militares, que ganharam benesses e cargos, sem que tivessem competência para
lidar com várias de suas novas responsabilidades. Foi um projeto de redução da
cidadania democrática, de destruição ambiental, de política externa
isolacionista e ligada aos grupos de extrema direita internacionais. Havia um
conteúdo político-ideológico por trás da proposta de enfraquecimento da
burocracia.
O círculo motivacional contra a burocracia
completava-se com o projeto bolsonarista de autocracia, de criar um governo sem
controle democrático, algo que esperava que se aprofundaria com a reeleição.
Para tanto, havia vários “inimigos institucionais” que deveriam ter seus
poderes limitados, como a Federação e o STF, e entre os quais estava também a
burocracia federal. Controlar os burocratas era não só uma forma de evitar que
tomassem decisões técnicas em prol de políticas públicas odiadas pelo
bolsonarismo, mas era, ainda, um instrumento para gerar obediência total a
decisões autocráticas e, por vezes, ilegais, como no caso das joias sauditas ou
na maracutaia da vacina de Bolsonaro.
Já surgiram alguns estudos mostrando como a
burocracia federal foi fundamental para controlar os arroubos autoritários do
governo Bolsonaro, com destaque para os trabalhos de Gabriela Lotta. Se não
fossem os funcionários públicos de carreira, talvez o estrago do bolsonarismo
teria sido ainda maior, com mais mortes pela covid-19, mais desmatamento, menos
oportunidades educacionais para cotistas, mais corrupção e maior arbítrio dos
“rei e seus amigos”. Recuperar a burocracia federal é sair desse buraco
gerencial e democrático em que o Brasil entrou.
O governo Lula começou a trilhar essa
reconstrução com o anúncio de vários concursos para áreas que estavam
sucateadas. Os pontos nevrálgicos de apagão de pessoal começaram a ser
atacados, com processos seletivos para o IBGE - que quase não conseguiu fazer o
Censo -; para as agências reguladoras, CVM e Banco Central, que estão a ponto
de paralisia em algumas de suas atividades; para o Ibama e outra áreas
ambientais, fundamentais para a política de preservação da Amazônia; para o
INSS, cuja vergonhosa fila não se resolverá apenas com a digitalização; além de
outros postos fundamentais para formulação, monitoramento e avaliação das
principais políticas sociais.
A contratação de pessoal qualificado é o
primeiro passo dessa recuperação da burocracia, processo que não deve mirar
apenas para trás, mas precisa igualmente se voltar para o futuro da
administração pública. Seguindo esse raciocínio, será preciso ter uma agenda
mais ampla de reformas para se ter um Estado adequado às necessidades do século
XXI.
Isso passa, primeiramente, pela mudança do
modelo homogêneo e meramente conteudista de concurso público que vigora no
Brasil. Já há um grupo no governo federal pensando neste assunto, e é
importante frisar que os funcionários públicos precisam de competências e
habilidades que vão além do sentido enciclopédico das provas que têm sido sua
porta de entrada. Ademais, os processos seletivos devem abarcar toda a
estrutura burocrática, incluindo os cargos em comissão e modelos mais flexíveis
de contratação, obviamente com regras diferenciadas para cada uma dessas
camadas governamentais.
A formação continuada da burocracia é outro
aspecto essencial para prepará-la para os desafios desse mundo cada vez mais
cambiante. Nesta linha, é fundamental fortalecer as escolas de governo
federais, em particular a Escola Nacional de Administração Pública (Enap), que
pode ser não só a executora e/ou parceira de outras instituições nessa enorme
tarefa formativa, mas deve ser um centro de reflexão e difusão sobre as
competências necessárias ao Estado do século XXI. Vale frisar aqui um
papel-chave do governo federal no campo da profissionalização da administração
pública brasileira: ele precisa atuar como um indutor e apoiador da melhoria
das capacidades estatais nos estados e municípios brasileiros.
O fato é que a recuperação do aparato
burocrático brasileiro vai depender de uma aliança federativa colaborativa
entre a União e os governos subnacionais. A maioria dos entes locais,
especialmente (mas não só) os municípios até 50 mil habitantes, tem baixas
capacidades de produzir e implementar políticas públicas, num quadro marcado
ainda por grandes desigualdades territoriais no plano das qualificações
político-administrativas.
Por essa razão, o governo Lula deveria recuperar
a burocracia federal para que ela seja cumpridora de suas funções específicas e
atue, ao mesmo tempo, como instrumento de melhoria mais ampla do Estado
brasileiro. Sempre é bom repetir que não será possível resolver todos os
problemas do país o gerenciando de Brasília, de modo que, dada a
descentralização de grande parte das políticas públicas, o quadro altamente
qualificado de burocratas federais deve ser parceiro da modernização das
administrações públicas estaduais e municipais.
Há um conjunto grande de reformulações da
gestão pública brasileira que devem ser enfrentadas nos próximos anos, em temas
como a coordenação governamental, o incentivo à inovação gerencial, a maior
flexibilização organizacional, a melhoria dos instrumentos de responsabilização
da administração pública, o melhor uso dos mecanismos de governo eletrônico,
entre os principais assuntos.
Não obstante essa lista extensa que deve
ser objeto de debate para futura modificação, se o governo Lula conseguir
recuperar a autonomia e a dignidade da burocracia federal, trazendo como
novidade mudanças nos processos seletivos, reforço das políticas de formação
continuada (interligada com os grandes temas contemporâneos) e, com grande
destaque, construir uma parceria estratégica para fortalecer as capacidades
estatais dos estados e municípios, já terá feito uma enorme transformação.
Para que os que só pensam pela lógica
partidária ou da polarização, vale ressaltar: recuperar a burocracia federal é
estratégico para o longo prazo, para além dos governos de ocasião. Isso vale
para a qualidade das políticas públicas e para a garantia da democracia. Essa é
uma das maiores lições do desastre bolsonarista.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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