sexta-feira, 21 de julho de 2023

Fernando Abrucio* - Recuperar a burocracia é estratégico

Eu & / Valor Econômico

Ela é importante para a qualidade das políticas públicas e para a garantia da democracia

As eleições presidenciais de 2022 deram vários recados, mas um não recebeu a atenção necessária no debate público: Bolsonaro não foi reeleito porque fracassou no campo das políticas públicas e o eleitorado preferiu a memória dos governos Lula, bem mais efetivos na provisão de direitos e serviços públicos, especialmente para os mais pobres. O fracasso bolsonarista começou quando decidiu sucatear a burocracia, perdendo as condições de gerar respostas adequadas às demandas do país. Essa lição precisa também ser assimilada pela nova gestão lulista, que, além de evitar o caminho desastrado de seu antecessor, precisará dar passos a mais para melhorar a administração pública.

É impossível produzir políticas públicas adequadas sem uma burocracia qualificada, engajada, com capacidade e autonomia básicas para tomar decisões técnicas e controladas por parâmetros democráticos. Esse receituário reconhecido internacionalmente, com múltiplas evidências científicas, foi negligenciado pela gestão bolsonarista. Quatro fatores levaram a esse equivocado projeto de enfraquecer a profissionalização da gestão pública.

O primeiro foi uma percepção liberal infantil ou extremamente ideologizada que imaginava que o mercado resolveria os mais importantes dilemas coletivos do país. O condutor desse modelo foi o ministro Paulo Guedes, alguém que nunca tinha tido experiência como gestor público e, como um amador que era, preferiu ideias à realidade. Resultados: pioraram os principais problemas sociais do país e o seu chefe, o presidente Bolsonaro, não se reelegeu.

Uma segunda fonte dessa visão foi a crença de que a digitalização do setor público resolveria todas as questões gerenciais e de produção de serviços. A literatura tem mostrado a importância do governo eletrônico em vários campos, desde a melhoria de processos até o aumento da transparência governamental - este último ponto não era o forte da proposta bolsonarista, por exemplo. Só que ele não será capaz de dar conta de várias ações governamentais que precisam de gente qualificada, a não ser num cenário completamente distópico no qual a inteligência artificial substitui todos os humanos. A tecnologia é fundamental em áreas como educação, saúde, meio ambiente, mas não substituirá o professor, o médico e muito menos o fiscal do Ibama - quem tinha dúvidas disso, os números do desastre florestal enterraram essa concepção essencialmente antiburocratas.

Mas nem só de ideários vivia o desmonte bolsonarista da burocracia. Duas de suas motivações relacionam-se mais com seu projeto político de extrema direita e de perpetuação no poder. O primeiro era destruir todas as políticas públicas ancoradas no espírito da Constituição de 1988, de ampliação de vários direitos. Assim, houve o ataque à burocracia ambiental, educacional, sanitária, assistencial e mesmo a quem garantia o alicerce básico do Estado, como o pessoal do Itamaraty.

Neste sentido, a motivação aqui não era um liberalismo despreparado, nem uma visão ingênua sobre tecnologia, que ampararam a meta de enfraquecimento do serviço civil - e vale aqui separá-los dos militares, que ganharam benesses e cargos, sem que tivessem competência para lidar com várias de suas novas responsabilidades. Foi um projeto de redução da cidadania democrática, de destruição ambiental, de política externa isolacionista e ligada aos grupos de extrema direita internacionais. Havia um conteúdo político-ideológico por trás da proposta de enfraquecimento da burocracia.

O círculo motivacional contra a burocracia completava-se com o projeto bolsonarista de autocracia, de criar um governo sem controle democrático, algo que esperava que se aprofundaria com a reeleição. Para tanto, havia vários “inimigos institucionais” que deveriam ter seus poderes limitados, como a Federação e o STF, e entre os quais estava também a burocracia federal. Controlar os burocratas era não só uma forma de evitar que tomassem decisões técnicas em prol de políticas públicas odiadas pelo bolsonarismo, mas era, ainda, um instrumento para gerar obediência total a decisões autocráticas e, por vezes, ilegais, como no caso das joias sauditas ou na maracutaia da vacina de Bolsonaro.

Já surgiram alguns estudos mostrando como a burocracia federal foi fundamental para controlar os arroubos autoritários do governo Bolsonaro, com destaque para os trabalhos de Gabriela Lotta. Se não fossem os funcionários públicos de carreira, talvez o estrago do bolsonarismo teria sido ainda maior, com mais mortes pela covid-19, mais desmatamento, menos oportunidades educacionais para cotistas, mais corrupção e maior arbítrio dos “rei e seus amigos”. Recuperar a burocracia federal é sair desse buraco gerencial e democrático em que o Brasil entrou.

O governo Lula começou a trilhar essa reconstrução com o anúncio de vários concursos para áreas que estavam sucateadas. Os pontos nevrálgicos de apagão de pessoal começaram a ser atacados, com processos seletivos para o IBGE - que quase não conseguiu fazer o Censo -; para as agências reguladoras, CVM e Banco Central, que estão a ponto de paralisia em algumas de suas atividades; para o Ibama e outra áreas ambientais, fundamentais para a política de preservação da Amazônia; para o INSS, cuja vergonhosa fila não se resolverá apenas com a digitalização; além de outros postos fundamentais para formulação, monitoramento e avaliação das principais políticas sociais.

A contratação de pessoal qualificado é o primeiro passo dessa recuperação da burocracia, processo que não deve mirar apenas para trás, mas precisa igualmente se voltar para o futuro da administração pública. Seguindo esse raciocínio, será preciso ter uma agenda mais ampla de reformas para se ter um Estado adequado às necessidades do século XXI.

Isso passa, primeiramente, pela mudança do modelo homogêneo e meramente conteudista de concurso público que vigora no Brasil. Já há um grupo no governo federal pensando neste assunto, e é importante frisar que os funcionários públicos precisam de competências e habilidades que vão além do sentido enciclopédico das provas que têm sido sua porta de entrada. Ademais, os processos seletivos devem abarcar toda a estrutura burocrática, incluindo os cargos em comissão e modelos mais flexíveis de contratação, obviamente com regras diferenciadas para cada uma dessas camadas governamentais.

A formação continuada da burocracia é outro aspecto essencial para prepará-la para os desafios desse mundo cada vez mais cambiante. Nesta linha, é fundamental fortalecer as escolas de governo federais, em particular a Escola Nacional de Administração Pública (Enap), que pode ser não só a executora e/ou parceira de outras instituições nessa enorme tarefa formativa, mas deve ser um centro de reflexão e difusão sobre as competências necessárias ao Estado do século XXI. Vale frisar aqui um papel-chave do governo federal no campo da profissionalização da administração pública brasileira: ele precisa atuar como um indutor e apoiador da melhoria das capacidades estatais nos estados e municípios brasileiros.

O fato é que a recuperação do aparato burocrático brasileiro vai depender de uma aliança federativa colaborativa entre a União e os governos subnacionais. A maioria dos entes locais, especialmente (mas não só) os municípios até 50 mil habitantes, tem baixas capacidades de produzir e implementar políticas públicas, num quadro marcado ainda por grandes desigualdades territoriais no plano das qualificações político-administrativas.

Por essa razão, o governo Lula deveria recuperar a burocracia federal para que ela seja cumpridora de suas funções específicas e atue, ao mesmo tempo, como instrumento de melhoria mais ampla do Estado brasileiro. Sempre é bom repetir que não será possível resolver todos os problemas do país o gerenciando de Brasília, de modo que, dada a descentralização de grande parte das políticas públicas, o quadro altamente qualificado de burocratas federais deve ser parceiro da modernização das administrações públicas estaduais e municipais.

Há um conjunto grande de reformulações da gestão pública brasileira que devem ser enfrentadas nos próximos anos, em temas como a coordenação governamental, o incentivo à inovação gerencial, a maior flexibilização organizacional, a melhoria dos instrumentos de responsabilização da administração pública, o melhor uso dos mecanismos de governo eletrônico, entre os principais assuntos.

Não obstante essa lista extensa que deve ser objeto de debate para futura modificação, se o governo Lula conseguir recuperar a autonomia e a dignidade da burocracia federal, trazendo como novidade mudanças nos processos seletivos, reforço das políticas de formação continuada (interligada com os grandes temas contemporâneos) e, com grande destaque, construir uma parceria estratégica para fortalecer as capacidades estatais dos estados e municípios, já terá feito uma enorme transformação.

Para que os que só pensam pela lógica partidária ou da polarização, vale ressaltar: recuperar a burocracia federal é estratégico para o longo prazo, para além dos governos de ocasião. Isso vale para a qualidade das políticas públicas e para a garantia da democracia. Essa é uma das maiores lições do desastre bolsonarista.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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