O Globo
O Papa exaltava a trincheira oriental (e
ortodoxa) da cristandade
‘Não
esqueçam sua herança. Vocês são os descendentes da Grande Rússia: a Grande
Rússia de santos, governantes, de Pedro I, Catarina II, aquele império.’ As
palavras do Papa
Francisco a jovens católicos de São Petersburgo, que surgiram de
improviso, em italiano, após um discurso preparado em espanhol, referiam-se ao
passado distante. Seus ecos presentes, porém, provocaram indignação em Kiev e
júbilo no Kremlin. A guerra russa diz respeito aos “santos”, Pedro e Catarina,
“aquele império”.
A Igreja estabeleceu-se em Roma, no Ocidente, e Constantinopla, no Oriente. Depois da tomada de Constantinopla pelos turco-otomanos, em 1453, Santa Sofia foi transformada em mesquita, e a Igreja oriental encontrou amparo na Rússia de Ivan III (1462-1505). Ivan, o primeiro governante a adotar o título de czar, casado com Sofia Paleóloga, sobrinha do último imperador bizantino, converteu Moscou na “Terceira Roma”.
O Império Russo nasceu no berço da aliança
entre o trono e o patriarcado. A águia negra de duas cabeças, que formava seu
brasão, inspirada no símbolo dos imperadores bizantinos, representa a união
entre o poder terreno e o divino. A Rússia pós-soviética recuperou o brasão
imperial, pintando a águia bifronte em dourado. Putin ordena sua narrativa de
restauração da Grande Rússia em torno da mesma “herança” invocada por
Francisco.
O Papa exaltava a trincheira oriental (e
ortodoxa) da cristandade, sem atentar para a circunstância de que o passado
nunca passa. Na conclusão do improviso, falou na “grande Mãe Rússia” e exortou
os jovens a “seguir em frente com ela”, um chamado que poderia ter saído da
boca de Putin.
A suposta ameaça representada pela Otan é
um pretexto secundário na narrativa russa de legitimação da guerra. Destina-se,
basicamente, a oferecer um espantalho aos “amigos de Putin”, de esquerda ou
direita, no Ocidente. A justificativa de fundo, explicitada em artigos e
discursos do líder russo, é a restauração da “Grande Rússia”. Os únicos
conselheiros do chefe do Kremlin, como explicou certa vez o ministro do
Exterior Sergei Lavrov, são Ivan IV, o Terrível, Pedro I e Catarina II.
Custa a impérios perder velhos hábitos.
Alemanha e Japão precisaram da hecatombe de 1945 para abandoná-los. O Reino
Unido pareceu curado depois da humilhação de Suez, mas voltou a acalentá-los de
modo paradoxal na hora do Brexit. A França mantém, ainda hoje, presença militar
residual no Sahel africano e a Turquia de Erdogan exercita seus músculos na
Síria e no Cáucaso. O caso russo, entretanto, é bem distinto, pois o Império
resistiu a quase todo o século XX, desmoronando apenas em 1991.
Ensina-se na escola que a Revolução
Bolchevique de 1917 destruiu o império dos czares. É meia-verdade. A União
Soviética converteu-o num “império vermelho”, conservando as fronteiras
traçadas por Catarina II e a soberania russa sobre os povos não russos do Leste
Europeu, do Báltico, do Cáucaso e da Ásia Central. Na moldura do Estado
soviético, a “Mãe Rússia” sobreviveu à tempestade secular que varreu os demais
impérios. O imperialismo russo personificado por Putin sustenta-se sobre os
pilares de uma herança muito recente.
A antiga aliança dos czares com a Igreja
foi restaurada. O patriarca de Moscou abençoa, em cerimônias públicas, soldados
que partem para a Ucrânia. Elogiando
a mensagem de Francisco, o porta-voz do Kremlin assegurou que “toda a sociedade
e as escolas trabalham duro” para transmitir aos jovens o “legado” da Grande
Rússia. Na Rússia que sonha com a restauração imperial, o passado e a religião
estão empapados com o líquido da política.
Dias atrás, o governo russo exibiu um novo
livro didático de História, voltado para alunos do secundário, que abrange a
“operação militar especial”. Nele, a Ucrânia é descrita como fabricação
antirrussa do Ocidente e sua bandeira, como invenção austríaca para persuadir
os ucranianos de que são diferentes dos russos. O Papa, que condenou várias
vezes a guerra imperial russa, precisa prestar mais atenção ao espírito de um
tempo em que a História voltou a ser uma arma de conquista.
4 comentários:
Demétrio Magnoli sendo Demétrio Magnoli...o Pretencioso, dando lições para o Papa...
Claudio sendo Claudio, bardoto.
MAM
Excelente! Mas o Papa é argeutino...
MAM
Demétrio demetriando.
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