segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Demétrio Magnoli - Francisco, Putin e a ‘Terceira Roma’

O Globo

O Papa exaltava a trincheira oriental (e ortodoxa) da cristandade

‘Não esqueçam sua herança. Vocês são os descendentes da Grande Rússia: a Grande Rússia de santos, governantes, de Pedro I, Catarina II, aquele império.’ As palavras do Papa Francisco a jovens católicos de São Petersburgo, que surgiram de improviso, em italiano, após um discurso preparado em espanhol, referiam-se ao passado distante. Seus ecos presentes, porém, provocaram indignação em Kiev e júbilo no Kremlin. A guerra russa diz respeito aos “santos”, Pedro e Catarina, “aquele império”.

A Igreja estabeleceu-se em Roma, no Ocidente, e Constantinopla, no Oriente. Depois da tomada de Constantinopla pelos turco-otomanos, em 1453, Santa Sofia foi transformada em mesquita, e a Igreja oriental encontrou amparo na Rússia de Ivan III (1462-1505). Ivan, o primeiro governante a adotar o título de czar, casado com Sofia Paleóloga, sobrinha do último imperador bizantino, converteu Moscou na “Terceira Roma”.

O Império Russo nasceu no berço da aliança entre o trono e o patriarcado. A águia negra de duas cabeças, que formava seu brasão, inspirada no símbolo dos imperadores bizantinos, representa a união entre o poder terreno e o divino. A Rússia pós-soviética recuperou o brasão imperial, pintando a águia bifronte em dourado. Putin ordena sua narrativa de restauração da Grande Rússia em torno da mesma “herança” invocada por Francisco.

O Papa exaltava a trincheira oriental (e ortodoxa) da cristandade, sem atentar para a circunstância de que o passado nunca passa. Na conclusão do improviso, falou na “grande Mãe Rússia” e exortou os jovens a “seguir em frente com ela”, um chamado que poderia ter saído da boca de Putin.

A suposta ameaça representada pela Otan é um pretexto secundário na narrativa russa de legitimação da guerra. Destina-se, basicamente, a oferecer um espantalho aos “amigos de Putin”, de esquerda ou direita, no Ocidente. A justificativa de fundo, explicitada em artigos e discursos do líder russo, é a restauração da “Grande Rússia”. Os únicos conselheiros do chefe do Kremlin, como explicou certa vez o ministro do Exterior Sergei Lavrov, são Ivan IV, o Terrível, Pedro I e Catarina II.

Custa a impérios perder velhos hábitos. Alemanha e Japão precisaram da hecatombe de 1945 para abandoná-los. O Reino Unido pareceu curado depois da humilhação de Suez, mas voltou a acalentá-los de modo paradoxal na hora do Brexit. A França mantém, ainda hoje, presença militar residual no Sahel africano e a Turquia de Erdogan exercita seus músculos na Síria e no Cáucaso. O caso russo, entretanto, é bem distinto, pois o Império resistiu a quase todo o século XX, desmoronando apenas em 1991.

Ensina-se na escola que a Revolução Bolchevique de 1917 destruiu o império dos czares. É meia-verdade. A União Soviética converteu-o num “império vermelho”, conservando as fronteiras traçadas por Catarina II e a soberania russa sobre os povos não russos do Leste Europeu, do Báltico, do Cáucaso e da Ásia Central. Na moldura do Estado soviético, a “Mãe Rússia” sobreviveu à tempestade secular que varreu os demais impérios. O imperialismo russo personificado por Putin sustenta-se sobre os pilares de uma herança muito recente.

A antiga aliança dos czares com a Igreja foi restaurada. O patriarca de Moscou abençoa, em cerimônias públicas, soldados que partem para a Ucrânia. Elogiando a mensagem de Francisco, o porta-voz do Kremlin assegurou que “toda a sociedade e as escolas trabalham duro” para transmitir aos jovens o “legado” da Grande Rússia. Na Rússia que sonha com a restauração imperial, o passado e a religião estão empapados com o líquido da política.

Dias atrás, o governo russo exibiu um novo livro didático de História, voltado para alunos do secundário, que abrange a “operação militar especial”. Nele, a Ucrânia é descrita como fabricação antirrussa do Ocidente e sua bandeira, como invenção austríaca para persuadir os ucranianos de que são diferentes dos russos. O Papa, que condenou várias vezes a guerra imperial russa, precisa prestar mais atenção ao espírito de um tempo em que a História voltou a ser uma arma de conquista.

 

4 comentários:

Claudio Serricchio disse...

Demétrio Magnoli sendo Demétrio Magnoli...o Pretencioso, dando lições para o Papa...

marcos disse...

Claudio sendo Claudio, bardoto.

MAM

marcos disse...

Excelente! Mas o Papa é argeutino...

MAM

ADEMAR AMANCIO disse...

Demétrio demetriando.