segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Fernando Gabeira - Índia na Lua e as razões de perdermos o bonde

O Globo

Pandemia teve peso importante na derrota eleitoral de Bolsonaro. E teve peso importante na sua desgraça pós-eleitoral

Confesso que me impressiona o rastro de inquéritos e processos que Trump e Bolsonaro deixam na esteira de sua saída. Desvio de documentos secretos, joias, tentativa de fraudar eleições, hackers, misoginia, falsos atestados de vacina — acontece de tudo quando baixa a poeira, e se dá o balanço dos dois governos.

Confesso também que me sinto aprisionado a esse entulho processual. Gostaria de falar de outras coisas. Por isso simplificarei um pouco minha descrição do governo Bolsonaro. Possivelmente, ele caiu, como caem os aviões, por múltiplas causas. Mas, no meu entender, foi atropelado pela pandemia.

Bolsonaro se recusou a reconhecer o acontecimento mais importante do século. Apesar de ter contribuído para o alto índice de mortes, de certa forma, foi destruído pelo vírus. A pandemia teve peso importante na derrota eleitoral de Bolsonaro. E teve peso importante na sua desgraça pós-eleitoral. A falsificação de atestados de vacina levou seu ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid, à prisão. Com ele, caíram os telefones celulares e alguns importantes segredos.

Não avançarei nessa novela. Supersimplifico para poder ir adiante, fazer novas perguntas, livrar-me um pouco da tirania dos fatos cotidianos. Uma pergunta meio ingênua que me faço há dias: por que a Índia, e não o Brasil, chegou à Lua? Há razões históricas interessantes. Suponho que conhecê-las talvez nos ajude.

Em quase todos os livros sobre a Índia, o papel estratégico de um estadista como Nehru vem à tona. No início da década de 1950, ele criou os sete primeiros institutos de tecnologia. A atmosfera econômica da Índia era fechada, e os técnicos mais competentes foram para o exterior. Com a abertura econômica da década de 1990, muitos voltaram, e, a partir daí, o país construiu um dos mais imponentes setores de tecnologia da informação (TI) do mundo.

Perdemos esse bonde. Os astros da TI na Índia contribuem não só com a conquista espacial a preços módicos (a viagem à Lua custou muito menos que outros países gastaram). Contribuíram também para a identidade única, um sistema digital que permitiu à Índia economizar milhões de dólares em sua política social. A ajuda a bilhões de indianos, por ineficácia do sistema analógico, representava uma incrível fonte de desperdício. Como aconteceu por aqui no período do auxílio emergencial.

Para que esse gigantesco sistema fosse construído, o governo se moveu. Havia uma comissão especial destinada a desenvolver o conhecimento. Foi ela que recrutou Nandan Nilekani, homem que comandou a tarefa e mais tarde escreveu o livro “Imaginando a Índia, a ideia de uma nação renovada”.

Quando Bolsonaro assumiu o governo no Brasil, isso já estava concluído, e a Índia já havia conquistado novos horizontes, como a inclusão maciça do povo no sistema bancário. Só no primeiro dia do projeto, foram abertas 15 milhões de contas. Está no Guinness World Records de 2015.

Às vezes, sou tentado a concluir que o processo político também foi atingido por nossa fragilidade educacional. Em pleno século XXI, Bolsonaro fez campanha contra as vacinas.

Mas é bom evitar as conclusões fáceis. Os Estados Unidos foram à Lua antes de todo o mundo. Elegeram Trump e podem elegê-lo de novo. É preciso pesquisar mais. O avanço tecnológico tomado isoladamente não pode ser o parâmetro único. Aliás, muitos dos problemas que vivemos são fruto de um culto religioso à tecnologia.

Mas isso é outra conversa.

Ir à Lua é uma extraordinária aventura do conhecimento. Nossa tarefa é avaliar todos os caminhos e escolher aquele que combine avanço tecnológico, político e moral integrados. Mas, aqui nos trópicos, estamos tão perdidos na fumaça cotidiana.

 

6 comentários:

laurindo junqueira disse...

Gabeira: na década de 1980, o Brasil e a Índia estavam no mesmo patamar quanto à cibernética e informática. Nós optamos por destruir a indústria de informática brasileira, a título de "aquilo que é bom para os EUA é bom para o Brasil" (Robert Fields, o avô ...). Hoje, a Índia gera com sua cibernética/informática o mesmo que produz o agronegócio para o Brasil. E nós ajudamos a alimentar com a água e com as proteínas continas nos grãos e nas carnes, o 1,4 bilhão de indianos. Belo artigo, Gabeira!

marcos disse...

Conversa fiada, Laurindo. Nunca houve uma indústria de Informática no Brasil que propugnasse o que a Índia construiu. Conte outra, ou prove o que diz.

MAM

EdsonLuiz disse...

●=》A primeira melhor medida a favor da computação e informática no Brasil foi terem acabado com a reserva de mercado para o produto nacional ; a segunda melhor medida a favor da computação e da informática no Brasil nunca veio.

(E estes últimos presidentes que temos tido, quando tem um dinheirinho para fazer alguma coisa a mais que o feijão com farinha de sempre, eles ROUBAM, como nós sabemos).

■Uma explicação melhor para o sucesso que a Índia vem conseguindo na área de tecnologia é o da aventura da busca pelo conhecimento nesta área, como reflete Gabeira.
▪A índia sempre valorizou a matemática e vem formando por ano mais físicos, matemáticos e engenheiros do que o Brasil forma em décadas. E a Índia forma estes profissionais com muito grande qualidade!
▪E a Índia é realmente uma democracia:: não se vê na política da Índia uma corrida para ver quem vai ter hegemonia e consolidar um poder único. E democracia é fundamental para a educação e a ciência.
(Mas tudo muda e é preciso tomar cuidado, porque o que houve de mais próximo sobre o que eu disse, alguém na política da Índia procurando ter hegemonia, é exatamente o atual primeiro-ministro Narendra Modi, mas o regime ser parlamentarista coloca impecilho a quem busca hegemonia).

No Brasil está faltando
MATEMÁTICA
MATEMÁTICA
MATEMÁTICA
FÍSICA
FÍSICA
FÍSICA
ENGENHARIA
ENGENHARIA
ENGENHARIA.

Mas tem que ser MATEMÁTICA FÍSICA E ENGENHARIA mesmo, e não enganação!
▪Eles, quando fazem um projeto de formar físicos e engenheiros nas coxas, separam um dinheiro, batem bumbo nas ruad e um monte de Celso Barros, Reinaldo Azevedo, Leonardo Sakamoto, Mily Lacombe, Jamil Chede... vêm atrás repetindo:: "Lula está formando engenheiros para o Brasil ! " "Lula está formando físicos para o Brasil ! ". E quando a gente vai ver, os físicos e engenheiros têm a mesma qualidade de profissionais formados nas "UNIESQUINAS".

marcos disse...

Edson Luiz, ótima!

MAM

EdsonLuiz disse...

■Quanto a Jair Bolsonaro ter sido derrotado pelo vírus, como disse Gabeira::
▪Jair Bolsonaro É ele O PRÓPRIO VÍRUS ! E os vírus, mais dia, menos dia, sempre são derrotados pela sociedade, embora sempre façam muitas vítimas antes de serem derrotados.
▪▪=》 No caso do vírus Jair Bolsonaro, não foi tão difícil derrotá-lo por não termos deixado que este vírus criasse imunidade e se fortalecesse e porque ele era muito virulento, e vírus muito virulentos têm pouca habilidade para manter ambientes que lhes favoreçam, eu acho que diria a bióloga Natália Pasternak.

■Mas precisamos combater outros vírus que circulam na política. A nossa política é muito contaminada por vírus e precisa ser saneada.

ADEMAR AMANCIO disse...

Carácoles!