O Globo
As falhas cognitivas do presidente só
aumentam, e as perguntas a que deverá responder também
Sempre ele — o inconfundível e universal apego ao poder por quem dele se alimenta. Alguns se contentam com o pequeno poder de funcionário de repartição para agarrar-se ao cargo de chefete. Outros, uma vez conquistado o topo do poder político, elaboram mil e uma construções edificantes para largá-lo somente in extremis — quando derrotados pelas mesmas urnas que os elegeram. Raras são as exceções. Jacinda Ardern, eleita em 2017 para governar a Nova Zelândia, tinha apenas 43 anos quando comunicou à nação que esgotara o combustível necessário para manter-se no poder. Faltavam poucos meses para a conclusão do mandato de seis anos, mas ela constatou que não conseguiria mais atender às exigências do cargo.
— Os políticos são humanos — explicou. —
Nós damos tudo o que podemos, pelo tempo que pudermos. E então chega a hora.
Para mim, a hora é esta.
Simples assim. Foi uma grande governante,
que soube encarar como poucos os desafios da pandemia de Covid-19 e cortar pela
raiz um surto terrorista de supremacistas brancos, inédito no país. A
naturalidade com que desembarcou na Assembleia Geral da ONU, trazendo a
tiracolo a filha que ainda amamentava, falou mais alto que todos os discursos
de chefes de Estado somados.
O mundo do atual presidente dos Estados
Unidos é outro, ou melhor, é o de sempre. Apesar de quase oito em cada dez
eleitores americanos considerarem Joe Biden,
de 80 anos, velho demais para tentar a reeleição, o presidente e seu Partido
Democrata teimam em manter a ficção de que somente ele será capaz de
derrotar Donald Trump pela
segunda vez em 2024. Trata-se de uma aposta de alto risco. Não que Biden tenha
desperdiçado por completo o voto de confiança recebido em 2020. A taxa de
desemprego do país é mínima, a inflação diminuiu, os salários mais baixos, o
sindicalismo e a economia de transição receberam empuxos consideráveis. Ainda
assim, prevalece a percepção geral de que a renda familiar caiu, e a taxa de
juros chega aos píncaros de 20 anos atrás.
Sem falar no tema que suscita calafrios nos
assessores do presidente: nascido e formatado pelo século XX, Biden conseguiu
chegar à Casa Branca sem ter aprendido a conviver com as demandas da
comunicação do século XXI, em que seu adversário Donald Trump reina como
poucos. Moldado no jornalismo praticado pelos tabloides e por reality shows que
se confundiam com seu império imobiliário, Trump sempre trafegou na política
alternando realidade e entretenimento. Seus apoiadores na vida real lhe são tão
fiéis quanto seus seguidores virais, não importa o número de crimes por que já
responde oficialmente como réu. Embora sejam gravíssimos e sem precedentes para
um ex-presidente dos Estados Unidos (obstrução da Justiça, espionagem, sedição
contra o Estado Democrático, fraudes fiscais, abuso de poder, entre outros), os
crimes de que é acusado e pelos quais, se condenado, poderá cumprir pena de
prisão, até agora só solidificaram seu bloco de fanáticos.
O mesmo não deverá suceder com Biden, agora
que a penca de encrencas de seu filho mais velho com a Justiça adquire a devida
relevância. Na semana passada, aos 53 anos de vida repletos de deslizes, Hunter
Biden tornou-se réu. É acusado de ter omitido ser usuário de drogas quando
preencheu a papelada de compra de um revólver Colt, em 2018. Considerado crime
federal passível de até 10 anos de prisão, deverá resultar em pena bem mais
branda, uma vez que Hunter ficou apenas 11 dias de posse da arma. Ainda assim,
a liderança do Partido Republicano no Congresso aproveitou o fato para abrir um
inquérito de impeachment contra Biden, baseado em sete acusações relacionadas à
vida transgressora do filho.
Era fato corrente em Washington, há
décadas, que o primogênito fazia negócios esdrúxulos na China, tivera
participação esquisitíssima na gigante energética da Ucrânia Burisma,
investigada por corrupção, associara-se a um empresário cazaque não menos
esquisito, vivera como lobista e envolvera-se com empresas de fachada. Os
republicanos agora pretendem demonstrar que Biden sempre soube dos malfeitos do
filho e, tanto na época em que foi vice-presidente de Barack Obama como agora,
muito fez para dificultar as investigações em curso.
Ao contrário de Trump, que ostenta seus
defeitos sem pudor, Biden sempre foi tido como um sujeito insosso, porém
decente, merecedor de complacência, pois perdera a primeira mulher e filha de 1
ano num acidente de carro. Sua dedicação total aos dois filhos que sobreviveram
enterneceu a nação. Mas Beau, o caçula de carreira estelar, morreu de câncer
aos 46 anos, restando Hunter, carregado de problemas e culpa. Um errante na
vida. Oscilava entre negócios milionários e falências épicas, travava embates
com o álcool e a dependência química. Pai dedicado, Biden jamais deu abertura
aos assessores que procuravam alertá-lo sobre o risco político das ligações
perigosas de Hunter. Talvez agora seja tarde demais. O dique foi aberto.
Com a extenuante campanha eleitoral em curso, as falhas cognitivas de Biden só aumentam, e as perguntas a que deverá responder também. Como diria Jacinda Ardern,“a hora é esta” para Biden encerrar sua biografia como o homem que impediu Trump de afundar o país. Mas isso foi em 2020.
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