domingo, 17 de setembro de 2023

Míriam Leitão - Jogo para livrar Jair Bolsonaro

O Globo

Se prevalecesse a tese de Mendonça e Nunes Marques, o 8 de janeiro se transformaria em uma baderna sem propósito, isentando o ex-presidente

O começo do julgamento dos vândalos de 8 de janeiro separou o Supremo Tribunal Federal em duas linhas opostas. Se fosse majoritária a tese dos ministros Nunes Marques e André Mendonça, de que não foi uma tentativa de golpe de Estado, o processo jamais chegaria ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Se não há crime, não há criminoso. Se não foi tentativa de golpe, não existem golpistas, e muito menos o principal mentor do atentado à democracia. A tentativa de livrar Bolsonaro bem no início desse julgamento fracassou. A quinta-feira terminou com mais uma dor de cabeça para o ex-presidente: a informação publicada pela revista Veja de que o dinheiro da venda dos relógios foi entregue a ele “em mãos” pelo tenente-coronel Mauro Cid.

Marques e Mendonça usaram argumentos rudimentares. Mendonça disse que um golpe de Estado não é só derrubar o governo, mas ter um plano para estabelecer uma nova ordem. “Eu preciso definir o que eu vou fazer com o Congresso, o que eu vou fazer com o STF, o que vai ser feito com a imprensa, com a liberdade das pessoas, com o meio universitário”. Ele disse que não vira isso nos “manifestantes”. Dado que ele não viu o planejamento, não foi golpe.

A tese é um assalto à inteligência alheia. Todos os atos golpistas que ocorreram durante o governo Bolsonaro e que chegaram ao ápice no 8 de janeiro tinham um lema claro que estava nas faixas, camisetas e palavras de ordem. Eles pediam a volta do AI-5. No Brasil, esses três caracteres são suficientes para revelar o plano que o ministro Mendonça não viu. Significa eliminar todos os direitos e garantias individuais, fechar o Congresso, tirar os ministros indesejados do Supremo, censurar a imprensa, invadir universidades, prender, torturar e matar os dissidentes. Esse era o plano, era a “nova ordem”. AI-5 foi isso. Pedir a sua volta tem um inequívoco significado. Para quem não entendeu a senha dos três caracteres malditos, os golpistas foram ainda mais claros quando pediram em faixas e camisetas a “intervenção militar”.

André Mendonça tentou um caminho escorregadio, o de culpar o governo que aquela turba ameaçou. Ele disse que fora ministro da Justiça e que havia se preparado para as manifestações de 7 de setembro, nos anos anteriores, e não entendia por que essas providências não foram tomadas. Foi quando o ministro Alexandre de Moraes lembrou que também ocupara o mesmo cargo. “Com todo o respeito, Vossa Excelência querer falar que a culpa do 8 de janeiro é do ministro da Justiça”. A propósito, as manifestações para as quais Mendonça diz ter se preparado eram a favor do governo ao qual servia. Não era uma multidão hostil e antidemocrática que destruiu os prédios dos Três Poderes.

O que houve nesse início de julgamento não foi apenas uma divergência jurídica. Se prevalecesse a tese de Mendonça e de Nunes Marques o resultado seria isentar Jair Bolsonaro. O projeto era transformar o 8 de janeiro em apenas uma baderna sem propósito, sem liderança, sem periculosidade. Assim estaria protegido o chefe e inspirador da confusão.

Foram tentados diversos argumentos. Todos sem sentido, mas na mesma direção. O de que não houve tentativa de golpe porque ele não se consumou. O ministro Alexandre de Moraes respondeu com ironia, dizendo que o crime é a tentativa de golpe. Se o golpe se consumasse eles não estariam ali para julgar. Sustentaram também, que foi um movimento sem liderança e planejamento. Isso contraria a realidade dos acampamentos que ficaram três meses em frente aos quartéis, do chamado para a “festa da Selma”, das provas de financiamento. Mas por que enfileirar argumentos inconsistentes? Foi um negacionismo com propósito. Se fosse apenas um ataque anárquico, só os executores pagariam a conta. Se o plano desse certo, difícil seria apagar tudo o que Bolsonaro disse e fez para solapar a institucionalidade brasileira durante os quatro anos do seu mandato.

Há muito o que Bolsonaro tem a acertar com a Justiça nas diversas frentes de investigação. A delação de Mauro Cid vai esclarecer muita coisa. A reportagem de capa da Veja, da repórter Marcela Mattos, revela que Cid entregou a Bolsonaro diretamente o dinheiro da venda de peças do acervo público. O ex-ajudante de ordens acha que isso foi imoral mas não ilegal. Aí é que Cid se engana.

 

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